segunda-feira, 28 de maio de 2018

Grafite na Agulha: 46) Um "engenheiro" no Japão

Sempre me disseram que sou um cara esquisito. E eu acredito, e concordo — toda vez que me olho no espelho. Sou nota dissonante no coro (geral) dos contentes. Por essas e outras, gastei mais de quatro décadas procurando os soldados pra meu exército, o de um homem só. O foda dessa busca é que, quando encontrava alguém, esse alguém fazia parte de outro exército, visto que se alistara em seu próprio... exército de um homem só. Já adolescente, quando todos gostavam de Paralamas, Titãs, Legião, eu (embora gostasse também de todos esses) viajava mais na infinita estrada de uns caras esquisitos vindos lá dos pampas, cujo cantor insistia em cantar, com a maior naturalidade, o erre gaúcho (que é igual ao de Sampa, embora — quase — todos o reneguem). O que me chamava muito a atenção neles era que, como eu, eles tinham fé cega e pé atrás.

Futuramente, virei compositor de emepebê, e notei que quase nenhum de meus parceiros dava muita pelota (Pelotas?) pr'aquela banda esquisita lá do sul. A maioria de meus chegados tinha passado pelo Clube da Esquina, pela Tropicália, por Secos e Molhados, João Gilberto... E eu, que tinha passado por tudo isso, não renegava meu lado Brock — não confundir com Brics. E assim, fui sempre um engenheiro, pois, como eles, nunca fui nem engenheiro de porra nenhuma... muito menos do (ao) Havaí. A timidez de Humberto é irmã da minha, o judaísmo de Maltz quiçá seja irmão de meu "falso" catolicismo e de meu sobrenome Nogueira. Os óculos de Licks flertam com os meus... Ah, Licks, esse guitarrista tão enigmático, com seu visual comportadinho e sua guitarra jazzística... Que banda de rock teve tudo isso nos idos dos indefectíveis anos 1980?

Humberto Gessinger foi meu pré-Chico Buarque. E ainda hoje, reouvindo seu som, considero-o um dos maiores poetas da (AAAAAHHHH!!!) MPB. Sim, porque Gessinger desde novo flertou com ela. Acabo de ler uma biografia dos Engenheiros (Infinita Highway: uma carona com os Engenheiros do HawaiiAlexandre Lucchese) pela qual soube que ele, ainda adolescente, teve, por um tempo, um grupo de choro. O que coincide com minha inicial paixão de letrista por Noel Rosa. Não sou daqueles fãs babões que acham que tudo o que o ídolo compõe é bom, mas, filtrando, percebo que Gessinger teve mais acertos que erros, tanto em melodia quanto em letra — e sem esquecer as parcerias, nas quais ele entrou como letrista; como Chico com Edu Lobo, Vinicius com seus tantos parceiros etc. E uma coisa que teimo em afirmar — e que não encontra eco em meus amigos — vai precisar de parágrafo novo:

Sempre achei Gessinger um letrista mais apurado que todos os outros da galera oitentista: Renato Russo, Cazuza, Herbert Vianna etc. Os outros eram até esforçados, e admito que também amei Legião Urbana, mas sempre achei Renato mais messiânico que lírico. Renato Russo faz ecos hoje em artistas como Criolo; Cazuza estava mais pra Gonzaguinha (esses que apunhalam o coração e o expõem sobre a mesa); mas Gessinger — pra mim, ao menos — sempre esteve noutra sintonia. Como Chico, que, sem sofrer, entendeu todo o sofrimento dos excluídos. Chico provavelmente foi um pouco mais além, pois entendeu mais amplamente, ao passo que Humberto entendia tudo quanto mais se aprofundava em si mesmo...

Mas há controvérsias. E não serei eu quem as vai resolver. O fato é que eu ouvi Engenheiros durante aqueles anos em que um homem vai se formando; depois, passei a ouvir Chico durante aqueles anos em que um homem já está (ou se sente) formado; e hoje, às vésperas dos 50, praticamente não passo um dia sem ouvir Caetano. "Pra entender... nada disso é tudo; tudo isso é fundamental." E pra entender mais ainda basta ler os parágrafos acima pra sacar que tô na maior enrolation, pois na verdade queria falar sobre vários discos dos Engenheiros, pois vários deles me marcaram de forma indelével, cada um a seu tempo, e tanto que nem sou capaz de saber qual é meu preferido... Portanto, resolvi fechar os olhos e deixar o coração enxergar.

Foi assim que cheguei àquela pérola de 1987, também conhecida como A Revolta dos Dândis. Lembro (minto) como se fosse hoje que quem me apresentou esse disco foi um brodaço-aço-aço-aço que já mora há um milhão de anos nos Isteites; e lembro também que nós dois, juntamente com outro bróder (que depois virou pastor evangélico e renegou nossa amizade), dançamos — e bebemos — muito ao som de Infinita Highway — entre outras desse discaço. Os caras que viviam então longe demais das capitais falavam as mesmas coisas que nós, que vivíamos longe demais do centro de Sampa, queríamos dizer (ouvir?). Eu, na época, nem sabia o que era um dândi (e até hoje tenho ainda dúvidas de que saiba), tampouco sabia a diferença entre Fidel e Pinochet (do disco anterior), mas estava seguro de que compartia com eles todas as suas inseguranças ("você precisa de alguém que te dê segurança"). 

Assim como até hoje acredito nessa máxima: "a dúvida é o preço da pureza; e é inútil ter certeza." E é chegado o momento de fazer uma confissão: sempre achei (depois de adulto, of course) bandas de rock meio bobas. Aquela necessidade de ter três ou quatro caras comprando sua briga. Visto que a briga de cada um de nós é individual. Mas ao mesmo tempo sempre entendi o desejo individual de cada adolescente de ser popular, o que justifica a presença de vários cabeludos ocupando o mesmo espaço. Assim, me espanta mais a longevidade dos Rolling Stones que a abrupta separação dos Beatles. Sobretudo porque eu vivo em constante separação de mim comigo mesmo. O que me diz que é chegada a hora de pedir perdão a todos por falar neste texto mais de mim que dos Engenheiros. Mas cada um de nós tem seu filtro, sua ótica, pra falar de quem ama.

Pra entender... basta dizer que adoraria que cada um de vocês ouvisse esse disco (e os outros 123 da banda) com meus ouvidos; que lesse o encarte com meus olhos; e que gozasse com meu prazer (o único show que vi dois dias seguidos foi o d'O Papa É Pop). Agora, relendo, acho que fiquei aquém do que me propus a escrever, mas beleza, não dá pra resumir em uns tantos parágrafos a história de décadas de admiração. Pra finalizar, queria dizer apenas que, Engenheiros, eu os amo, lamento a ruptura e continuo amando os pedaços que se espalharam por aí. Sobretudo, amo a filosofia gessingeriana, que, de tão gaúcha, aproxima-se da minha cearense e nogueiriana dúvida — o preço da pureza?

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A Revolta dos Dândis (1987 — BMG)

Lado A
1. A Revolta dos Dândis I
2. Terra de Gigantes
3. Infinita Highway
4. Refrão de Bolero
5. Filmes de Guerra, Canções de Amor
Lado B
1. A Revolta dos Dândis II
2. Além dos Outdoors
3. Vozes
4. Quem Tem Pressa Não Se Interessa*
5. Desde Aquele Dia
6. Guardas da Fronteira — participação de Júlio Reny

Todas as canções acima são de Humberto Gessinger, exceto *, de Humberto Gessinger e Carlos Maltz.

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Ouça o disco na íntegra aqui:




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8 comentários:

  1. O que aconteceu com ele, aconteceu com Oswaldo Montenegro e outros. Condenado a ser espinafrado pela imprensa simplesmente por ser chato.
    Eu sou a favor da libertação do Gessinger! Porque pra ser sincero, pra mim ele também era mais poético que todos os outros.

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    1. Hahaha! O pior, Sonk, são os chatos sem talento. E há tantos... Lancemos, a exemplo da turma pró-Lula, Humberto Livre. rs

      Abraços,
      Léo.

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  2. Engenheiros do Hawaii! Começando pelo título da banda, que engenharia seria essa? Seria a engenharia das pranchas de surf no Hawaii? Esse título é bem a cara dos anos 80 debochado (risos). Só que a despretensão desse título lembra à minha adolescência, porém quando começamos a fazer análise de algumas letras, percebemos que as mesmas não são tão inocentes assim, pelo contrário, como na canção "A Revolta dos Dândis", que faz uma alusão ao "O Estrangeiro", de Alberto Camus. E aí que a coisa muda de figura! Porque a Banda trabalha muito bem as palavras como se estivessem em um processo de elaboração da engenharia poética remetendo ao mestre João Cabral de Melo Neto. E aí percebi que a brincadeira do título era séria e a proposta da banda foi sensacional tornando assim uma das minhas bandas preferidas dos anos 80. Parabéns Léo, por ter escrito sobre eles. Essa gauchada mandou muito bem! saudades dessa época!

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    1. Só e simplesmente amo o Humbertão!! Fui a todos os shows que pude. O último foi em 2012, do Pouca Vogal. Uma certa feita falei isso que Humberto era melhor que Cazuza(que também amo) e @zamig@s idos e vividos e viajados, tiraram uma onda da minha cara, como que me dizendo que eu nasci e cresci pelo Sul e o mais longe que havia ido na vida era para a Argentina e não conhecia de nada, com direito ainda a algumas alusões de bairrismo. Saiba que seu texto foi bem-vindo, acolhido e amado!

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    2. Muito bem dito, digo, escrito, Totó. Mas não desconversa, não! Lembro que, na época, entre tantas rivalidades — você Caetano, eu Chico; você Dustin Hoffman, eu De Niro; você Curíntia, eu Parmêra —, você era Legião, eu Engenheiros. Hahaha!

      Abraços,
      レオ。

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    3. Uia, Deisy! Que bom saber que, pra além de Sabina, temos outras afinidades. Concordo com você. Sempre achei Gessinger melhor que Cazuza, Renatu Russo, Herbert Vianna & cia. E, "pra ser sincero", acho que, dessa galera toda do rock nacional, o único que tem poesia pra peitá-lo é o Arnaldo Antunes, e isso depois de ter saído dos Titãs (e antes de ter entrado nos Tribalistas. rs).

      Beijos,
      レオ。

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  3. Ok, vindo aqui à sua gaveta aberta e, como tinha que começar por algo, fui aonde - supus - a minha afetividade estava espelhada. Não sei sua idade, Nogueira, mas desconfio que é próxima da minha, pois a história que vc conta diz respeito a uma paralela com a minha. Vc comenta do parça que ficou um crente reaça. Tenho vários. Aprendemos juntos um tantão de coisa, sobre mulheres, fumo, pó, música, arte em geral, cultura, política, ativismo, sonhos, utopias. Agora a coisa degringolou e... ah, deixa pra lá. Importante é que em 80% do texto, vi um espelho projetando imagens de minha formação. principalmente nessa identificação como Engenheiros e, no meu caso, com Camisa de Vênus. Mas esse castelo, aqui, foi erguido em areia, e logo Gessinger e Nova foram acomodados por esse esteta num lugar intermediário, onde vivem até hoje. Valeu! Abraçaço!

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    1. Salve, Franelas! Folgo em lê-lo por aqui e saber também um pouco de suas experiências, digamos, mundanas. Querido, estou com 47 (só pra sua informação). Fico contente em saber que meus rabiscos encontraram ecos do lado daí da telinha. Se aprochegue mais. Quem sabe não encontra também outras prosas que possam agradá-lo.

      Abração,
      レオ。

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