segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Crônicas Desclassificadas: 195) A loira da loja de conveniência

Escrevi este conto/crônica há exato um ano menos dez dias (hoje, quando o publico, é madrugada de 17 de setembro de 2019). Quase o havia esquecido, quando me deparei com ele ali, quietinho e esperançoso entre meus guardados. Resolvi que era tempo de lhe dar voz (vida?). Antes, acrescento apenas que, claro, é uma obra de ficção.

***

Era quase meia-noite quando enfim escapulira da estação após mais um dia de desgastante jornada laboral. Contudo, não estava triste, pois o saárico verão asiático havia recém-acabado e, ao contrário do Brasil, seu país, mas onde as estações teimam em ludibriar os viventes, ali o calendário era obedecido pelos astros como se se tratasse de bons alunos da escola primária. O foda foi que, sem guarda-chuva, foi pego no contrapé por uma chuva que, melhor que a mulher do tempo, trazia ventos pré-tufão. Mais um. Já seria o terceiro ou o quarto aquele ano?

Só de "reiva" — e pra ver se o temporal amenizava um pouco —, resolveu entrar na loja de conveniência mais próxima, que não ficava a mais de dez metros da saída norte da estação. O que não o salvou de chegar ali já uns 35,7% molhado. Assim que entrou, o outrora aconchegante ar-condicionado, que no verão tantas vezes o acolhera com uma sensação térmica de 18 graus, recebia-o novamente com a mesma temperatura, o que o fez bater os dentes de frio — além do mais, acostumado com o calor que o desidratava até uma semana antes, não trazia agasalho na combalida mochila.

Foi quando a viu. Ou melhor, foi visto por ela, uma loira de olhos claros e cabelos curtos, que, da fila do caixa, lhe abria um imenso e caloroso sorriso. Lembrou-se imediatamente do Brasil, onde isso acontecera uma centena de vezes; só que lá ele era mais um em meio a tantos. Independente da etnia ou da cidade-natal, eram todos brasileiros, e ele, como tal, se havia acostumado a ser maioria. Agora, a situação era completamente diferente. E tanto que na maioria das vezes em que, cansado após o final de um extenuante dia de trabalho, conseguia um assento livre num vagão lotado de trem, notava que a maioria das pessoas — principalmente as do sexo feminino — evitava se sentar a seu lado, como se ele fosse um leproso ou algo do gênero.

Sim, sentia na pele a vingança dos orientais sobre o branco estadunidense opressor. E ele, que, brasileiro, não tinha nada a ver com essa dívida de décadas, sofria calado. Vez em quando dava uma cheirada no sovaco ou aplicava na palma da mão um autoteste de bafômetro (vai que a questão era um mau hálito...), mas só pra ter certeza de que o problema não era mais pessoal que genérico. Mas agora não. Agora acabara de receber um maravilhoso sorriso numa gélida loja de conveniência. E ele sabia reconhecer as variantes de um sorriso. E olha que havia várias... variáveis.

Foi na condição de expert que percebeu que aquele não era — simplesmente — um sorriso de flerte. Claro, podia ser; afinal, eram dois ocidentais que se trombavam numa chuvosa e fria noite de outono numa capital oriental. Nada mais natural que um olhar procurasse o calor do outro. Mas o sorriso dela quase parecia lhe pedir socorro. Sentiu um arrepio lhe desenhar um risco de alto a baixo pela espinha, baixou os olhos e seguiu até o setor de biritas. Lembrou-se mesmo de que a esposa lhe havia pedido uma ou duas coisas, que, sem muito pensar, enfiou no carrinho.

Na hora em que escolhia a cerveja, reparou que ela abandonara a fila e agora pedia a ajuda de uma funcionária pra encontrar determinado produto. Foi assim que a ultrapassou na fila. Pagou em espécie, não sem antes mostrar à moça do caixa o point card e perder uns dois minutos tentando contar as tantas moedas da carteira pra poder pagar o valor exato (ali, os dois zeros a mais da moeda local o enfureciam na hora do troco, quando costumava ser "presenteado" com uma infinidade de vis (e insignificantes) metais.

Antes de sair, dando uma tosca pescoçada pra trás notou que ela havia estado exatamente atrás dele na fila e agora lhe lançava novo sorriso, este já meio maroto, fazendo-o entender que fora espectadora da ridícula cena de sua contagem de moedas. Lá fora, chovia forte agora. Com a encharcada mochila nas costas e uma sacola na mão direita, abriu a lata da recém-comprada cerveja e o som lhe soou como música... brasileira ("chove, chuva"...). Andou sem pressa pela chuvosa avenida (estaria sendo seguido?). Quase que como se fosse um culpado com medo de um agente do FBI num daqueles filmes estadunidenses, deu uma discreta olhadela pra trás e viu que... sim, ela o seguia. Teria visto novo sorriso no rosto dela ou seriam seus nervos... ou as gotas da chuva?

Fez algo que não costumava fazer, obediente que era das regras: atravessou a avenida fora da faixa. Não era crime nenhum, afinal ele estava sem guarda-chuva numa noite chuvosa e seu apartamento se encontrava diametralmente no lado oposto. Sem falar que àquelas alturas, e com aquele dilúvio, nenhum servidor da lei iria se preocupar em pará-lo. Uma certeza o invadiu: sim, ela também cometia igual delito. Virou a cabeça pra trás já sabendo que havia ganho a aposta consigo mesmo; sim, ela o seguia. Teve a coragem de lhe enviar um ousado aceno de cabeça, que foi devolvido por ela. 

Na calçada da outra extremidade, passou por mais uma loja de conveniência e virou a primeira à esquerda, agora já dono de uma confiança que quase o assustava. Sabia que ela o iria seguir; assim, a primeira coisa que faria seria lhe dizer qualquer coisa em português. Bom, se ela não entendesse, tinha a capacidade de repetir a mesma frase em mais umas cinco ou seis línguas; em última instância, podia mesmo se utilizar de seu precário japonês (vai que ela era uma russa, polonesa ou...). Não olhou pra trás durante todo o minuto em que diminuiu o ritmo na intenção de que ela o alcançasse.

Quando enfim se decidiu a dar uma espiadela de canto de olho, notou que ela não estava mais lá. Então entendeu: ela cruzara a avenida na diagonal porque, não tendo achado o que procurava na primeira loja de conveniência, vira a outra do outro lado da avenida e resolvera tentar a sorte nesta. Ou seja, sua decisão não tinha nada a ver com ele. Mas não havia problema nenhum; ele era um feliz homem casado com uma esposa maravilhosa. Portanto, não procurava nenhuma aventura. Quando muito, uma nova amizade, alguém que lhe respondesse a um cumprimento simples numa língua mais próxima à sua. Só isso.

Já decidiu; amanhã, no mesmo bat-horário, vai entrar na mesma loja de conveniência e pegar a mesma batcerveja. Vai que...

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