Pra começar 2020 com o pé bom, o esquerdo (com o qual sempre entro nos aviões), resolvi, como primeira publicação do ano, tratar de música e homenagear o bom e velho Caê, que continua produzindo a mil, compondo belas canções e gravando discos incríveis. O que, convenhamos, dificulta meu trabalho de escolher apenas cinco dele. Em minha defesa, alego que as melhores de Caetano variam de tempos em tempos. Como sua obra é extensa e de grande qualidade, sempre há aquela que em determinada época gruda em nossos ouvidos e não sai nem com reza. Resolvi, portanto, trazer pra cá cinco que pertencem a momentos (meus) diferentes, mas que, cada uma a seu modo, marcou profundamente minha trajetória de ouvinte e, por que não?, de compositor também.
5) MENINO DEUS
Lado B da obra de Caetano, essa canção fez sucesso originalmente em gravação da banda A Cor do Som, mas só bateu em mim intensamente anos depois, no disco Noites do Norte ao Vivo, cantada pelo próprio autor num registro singelo e emocionante feito apenas em voz e violão. E é interessante traçarmos um paralelo entre os dias de hoje e a época em que a música foi lançada por vez primeira, ainda em 1978. A imagem de Jesus no seio das religiões sempre é propagandeada de um modo assexuado, puro, neutro, angelical; entretanto, na literatura e no cinema o filho de Deus costuma ser retratado de um modo mais humanizado.
Assim, pra mim é menos com tristeza que com pavor que vejo toda a atual revolta em torno do especial do Porta dos Fundos que mostra um Jesus gay, quando Caetano, já nos idos de 1970, pregava a redenção do mundo pela sexualidade do menino de Nazaré. Aliás, esta é uma imagem cristã que me toca mais. O celibato, a abstinência, o jejum e tantos outros impedimentos (pra não dizer censuras) que nos propõem meio que já perderam a razão de ser. Proponho humildemente a redenção por meio do prazer mais que de sua negação. Amém.
Menino Deus
Caetano Veloso
4) MENINO DO RIO
Adoro Baby Consuelo (hoje, do Brasil), sua voz, sua interpretação, sua presença de palco e a força sensual que sua figura representa no imaginário da (quase) comportada MPB. Tanto que é com tristeza que vejo sua guinada religiosa (como já havia acontecido com Baden Powell... e tem acontecido com tantos outros). Entretanto, vi há poucos anos um show dos Novos Baianos e percebi que, felizmente, essa neobeatice não interferiu em sua figura eletrizante no palco. No tópico anterior, tratei de um menino divino humanizado, neste trato de um humano divinizado, o menino do Rio capturado pelos olhos de um homem deslumbrado, quase estrangeiro, que não se melindra ao tecer elogios a outro do mesmo sexo que o seu. Uma composição além de seu tempo, que encontrou na voz de Baby (baby, I love you) sua mais completa tradução.
Menino do Rio
Caetano Veloso
3) SOU VOCÊ
A refilmagem de Orfeu dirigida por Cacá Diegues seguramente não está entre seus melhores trabalhos, apesar de ser um filme esteticamente bonito. Entretanto, foi acertada a escolha de Caetano Veloso pra estar à frente de sua trilha sonora, pois só um baiano desabusado poderia ter a coragem de criar novas canções pr'um clássico brasileiro cuja trilha sonora original (tanto da peça quanto do primeiro filme) era impecável. E, pra mim, Caetano é justamente o ponto alto da refilmagem. Essa sua canção Sou Você já me levou às lágrimas uma infinidade de vezes, além de ter sido uma baita oportunidade pra Toni Garrido mostrar seus dotes de intérprete numa canção excepcional. Falando nisso, esperem aí que vou preparar um drinque, reouvir a canção e dar mais uma choradinha. Daqui a pouco eu volto...
Sou Você
Caetano Veloso
2) FORÇA ESTRANHA
Algumas das mais contundentes canções de Caetano foram compostas pra Roberto Carlos, como Como Dois e Dois e Muito Romântico, e é realmente uma pena que essa dobradinha não tenha ido avante; perderam eles e perdemos nós. Só que Força Estranha, como o próprio título já entrega, está em outro patamar, é uma joia não só do cancioneiro brasuca, mas um patrimônio da humanidade. Tanto, que tem versões em espanhol e em italiano — esta, quase melhor que a original. Deve haver em outras línguas, mas essas duas já representam bem. É um verdadeiro exemplo de como uma canção se molda a um intérprete (e vice-versa), aliás o "no ar" do verso "por isso essa força estranha no ar" foi sugestão do Rei; não havia na composição original. Pra mim, trata-se de uma das mais belas homenagens já feitas ao ofício do canto. Há muito tempo já deixou de ser Caetano, já deixou de ser Roberto, extrapolou, virou algo muito maior... "É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão"...
Força Estranha
Caetano Veloso
1) TIGRESA
Quando descobri Chico Buarque meio que entrei num transe (numa transa?) enlouquecido e enlouquecedor. Passei praticamente um ano de minha vida ouvindo só Chico. Eu devia ter por volta de 16 anos e era semianalfabeto no que se referia a MPB, por isso me deparar, naquela época e com aquela idade, com uma obra tão gigantesca e maravilhosa foi demais pra mim. Quando, por fim, já tinha decifrado (e sido devorado por) esse trabalho tão ímpar, rolou um vazio que é parecido com aquele que nos acomete quando terminamos de ler um grande livro ou de ver um grande filme. Veio aquele desejo de "quero mais".
Então, tentei repetir o processo com Caetano, mas não funcionou muito bem. Velô, apesar de também genial, tem uma obra mais cheia de altos e baixos, até porque experimentou mais que o colega, mas o fato é que aquele choque elétrico que foi de 220 inicialmente se encaixou num 110 básico. Amo a obra de Caetano, mas foi um amor construído lentamente. Diria que com Chico foi paixão que virou amor, com Caetano foi amizade que virou amor. Mas nessa época em que eu procurava um sucessor pra todo aquele deslumbre dos sentidos, até que vez por outra o baiano me proporcionava alguns momentos de desbunde, como foi a audição primeira de Tigresa, uma enorme canção psicodelicamente sem refrão e com métrica dylaniana que me arrebatou — e arrebata ainda. Talvez seja a única canção dele que estou pronto pra reouvir em qualquer hora. E por que não agora?
Tigresa
Caetano Veloso
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PS: A menção honrosa fica a cargo de Desde que o Samba é Samba, cujos versos eu gostaria de ter escrito. Só não a escolhi entre as cinco porque nesse caso não lhe poderia ter dedicado essa menção honrosa.
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Minhas Top5; todas:
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Eu gosto de Caetano Veloso. Acho bom.
ResponderExcluirEsta rara aparição por aqui (antes tão frequente) merece comemoração! Ainda que apenas pra dizer que acha Caetano bom (rsrs). Eu, ao contrário, acho-o genial. Tem momentos irregulares, mas, como frisei no texto, porque ousou mais, e nem toda ousadia resulta bem.
ExcluirBeijão, Curci!
レオ。
Leozim, que ótimas escolhas. Claro que minhas opções não seriam estas, mas há músicas lindas no repertório que mandou!
ResponderExcluirEriquim, o legal é isso. Se todas as listas fossem iguais o mundo seria bem menos interessante, né? No mais, em se tratando de Caetano, há pelo menos outras 50 que poderiam estar no lugar das que escolhi. Mas diga lá, quais seriam as suas?
ExcluirBeijão,
レオ。
"Diria que com Chico foi paixão que virou amor, com Caetano foi amizade que virou amor." Diria que tem um poema nessa crônica. Vários poemas. Aqui, há braços, meu bom!
ResponderExcluirSalve, Escobar! E eu diria que tem poema nesse seu comentário.
ExcluirAbração!
レオ。