Acompanhei superficialmente a polêmica que envolveu Aranha, o goleiro do Santos, e a torcida do Grêmio, e, particularmente, a torcedora gremista, eleita entre tantos pra ser bode expiatório do impensado ato. E, quando digo superficialmente, não é porque não me sinta tocado. É justamente pelo contrário, porque tal tema me embrulha o estômago e me faz me deparar com a triste realidade que escancara que, em pleno século XXI, e ainda mais no Brasil, ainda há pessoas tão atrasadas a ponto de se sentirem superiores pelo simples (e aleatório) detalhe da cor da pele. Sobretudo, pela gratuidade. E olha que eu, na condição de nordestino que mora em Sampa, já senti – não poucas vezes – na carne e, mais, na alma o que é ser vítima de preconceito.
Mas há muitas outras questões importantes além das do negro e do nordestino. Há a do pobre, a do homossexual, a das drogas, a do aborto, e por aí vai. A lista é longa. E, no meio disso tudo, paira o fantasma do politicamente correto, que engessa o cidadão, impedindo-o de ser espontâneo, transformando-o em um sujeito sem matizes, sempre tendo congelado no ar o dedo em riste em direção às fuças do outro (como a jornalista do plim-plim, a tal poeta, quando entrevistou a presidente). O politicamente correto transforma-nos todos em "soldados do bem", aptos a atirar a primeira pedra na madalena da vez. Daí pra nos vermos transformados em linchadores "é dois palitos". E o ninho onde mais surgem tais criaturas é o das redes sociais, lar de bestas raivosas, justiceiros e quetais, todos gritando em nome da família e dos bons costumes.
Não estou querendo polemizar, apenas constato um sinal de nossa época. Por exemplo: voltando ao caso do primeiro parágrafo, notei que houve um linchamento da torcedora gremista. Não concordo com seu ato, em absoluto, e acho, sim, que a Justiça deve ser rigorosa nesses casos e ponto. Espero que não só ela, mas também todos os outros que pensam como ela, cedo ou tarde, caiam nas garras da Lei. Acredito, sim, que, se fulano não aprende por uma via, ensinemos-lhe por outra. Mas aí, ponto final. Quem lincha em praça pública está, de certa forma, fazendo autopropaganda, pondo-se ao lado dos "do bem". Aliás, hoje em dia, ando ouvindo muito essa expressão. Confesso que tenho certo medo dela, pois eu mesmo, que me considero um cara com mais qualidades que defeitos, quando acuado, não sei do que meu "Mr. Hyde" é capaz.
O que quero dizer é que pagar ódio com ódio é voltar à cantilena bíblica do Velho Testamento que pregava "olho por olho, dente por dente". Acredito mais na inteligência, no humor e – por que não? – na gentileza. Vejam a atitude do jogador Daniel Alves nos gramados espanhóis, quando um imbecil lhe jogou uma banana. Comeu-a e, comendo-a, engoliu com um simples gesto toda a leva de retardados mentais que o queriam humilhar. Chegar ao século XXI não é fácil. Temos em demasia sábios, filósofos, poetas, entre tantos outros que nos antecederam. Então, ser um cidadão de nosso século envolve uma responsabilidade grande. Por essas e outras, é preciso tomar cuidados pra não retroceder. Falo isso do ponto de vista do indivíduo pra consigo próprio.
Caso contrário, abriremos as jaulas interiores e nos entregaremos todos ao ato de devorarmo-nos uns aos outros, quem sabe nas novas e luxuosas "arenas" que foram concebidas pra receber os jogos da Copa. Exemplo: não vejo diferença entre o ato de "justiça" de acorrentar um adolescente negro a um poste e o de incendiar a casa de uma torcedora racista. Não é porque abomino seu gesto que posso me dar o direito de incendiar sua casa, pondo a vida de outras pessoas em risco. Percebem? Razões pra qualquer coisa, cada um tem as suas. Os fulanos que acorrentaram o rapaz ao poste também sentiam que, no fundo de suas almas, estavam fazendo um bem à sociedade. É assim que agem os que não creem mais nas instituições. Você e eu talvez estejamos mais parecidos com eles do que imaginamos.
E eis que vem a público o paladino da moral Edson Arantes do Nascimento, também conhecido como Pelé. Aliás, faço uma correção: pra mim, está bem claro que Pelé é um cara e Edson, outro. Não à toa o próprio Edson sempre se refere a Pelé na terceira pessoa. Está explicado: Pelé é um gênio, já Edson não passa de um camarada que enriqueceu à custa do trabalho daquele e, na condição de rico, virou um poço de contradições. Mas Pelé, digo, Edson, assim como Caetano, está sempre pronto a dar seu depoimento sobre os mais variados assuntos. E não é que Edson pôs a culpa no goleiro Aranha? Segundo suas próprias palavras, "Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria que parar. Acho que temos que coibir o racismo, mas não é em um lugar público".
Ah, tá. Então, se não é em lugar público, lugar de coibir o racismo só pode ser em casa, lugar privado, né? O que Pelé, digo, Edson não entende é que os tempos são outros. Se ninguém abrisse a boca pra reclamar, a escravidão certamente existiria até hoje. Todos os avanços sociais ocorrem por meio de muita luta. Não à toa, quando as camadas mais pobres da sociedade começam a melhorar de vida, viajar de avião, pôr seus filhos em boas escolas etc., lá vêm os endinheirados de sempre reclamar. Mas isso é outro assunto. Foquemos. O engraçado da reverberação desse depoimento do melhor jogador do mundo foi que ele acabou sendo criticado pelo Fenômeno, nosso Ronaldo Nazário, que classificou de desastroso o comentário do "Rei". Até aí, tudo bem. Diria mesmo louvável. O problema é que Ronaldo, quando critica tais falas, sente-se um branco criticando o racismo.
Lembro que, em outra ocasião, também a respeito de um caso sobre racismo no futebol, o Fenômeno me veio com uma não nazária, mas hilária. Um momento, vou ao google e já volto. Achei! Disse ele, com todas as letras: "Acho que todos os negros sofrem. Eu, que sou branco, sofro com tamanha ignorância." Ronaldo, branco? Veem como a questão é complexa? Não dá pra solucionar na base do mocinho x bandido... Pois bem, pra terminar, a propósito do assunto, aproveito pra fazer uma propaganda antecipada: está em vias de ser lançado (pela editora Reformatório, que acaba de lançar um livro de crônicas de Zeca Baleiro) meu primeiro romance, Filho da preta!, que conta (em primeira pessoa) a história de um negro que, tendo nascido com a epiderme clara, sentia-se (a exemplo de Ronaldo) branco. É um livro polêmico, pois põe o dedo em certas feridas abertas de nossa sociedade, mas por isso mesmo o considero um livro necessário. As mazelas brasileiras todas que expus acima o afiançam.
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