Eu não sei nada sobre a paz. Desde que me entendo por gente, estou em guerra. Estive em guerra contra minhas raízes, contra meus prazeres, contra minha fé (posteriormente, contra a falta dela), contra minha preguiça... E isso vem de antes de eu nascer. Já na barriga de minha mãe imagino que eu estivesse em guerra pra não sair lá de dentro. Depois estive em guerra contra a escola, contra a leitura obrigatória de Machado de Assis (mais tarde eu iria entrar em guerra pra deixar de lê-lo), contra minha extrema timidez que me causava rubor e um rombo no coração. Enfim, sou um guerreiro. E, enquanto isso, bombas explodiam em várias partes do planeta. E eu, que, apesar de guerreiro de minhas causas, sempre estive em guerra contra as guerras, rezava pra que elas não chegassem até aqui pra atrapalhar as minhas.
Bem, eu devia estar escrevendo sobre a paz, mas o que quero dizer com isso tudo é que descobri que não existe paz sem guerras. Foi sempre assim na história da humanidade. Então, no caso particular de minhas guerras, entrei nelas como um modo desesperado de encontrar minha paz interior, penetrar em meu âmago pra tentar, por meio do autoconhecimento, alcançá-la. Como dizia Chico Buarque (e Ruy Guerra, é bom lembrar) em sua Sonho Impossível (versão de The Impossible Dream), "Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz?". O fato é que a paz é um desejo quase utópico, visto que o homem não sabe o que é usufruir dela. Todas as vezes que um povo atinge certo nível de emancipação, lá vem outro povo querer tirar-lhe o que aquele conseguiu. E tome guerra!
A questão é que cada um quer a paz pra si, mas vê o outro como inimigo a ser derrotado pra que possa desfrutar dela. Assim, a existência do outro é prova cabal da impossibilidade de haver paz. Se estou no trabalho e a competência de um colega depõe contra minha própria incompetência, tenho que destruí-lo. Vá lá, conseguir que o despeçam já tá de bom tamanho. Só que, mesmo que eu consiga isso, não vou conseguir me livrar de minha própria incompetência. Portanto, tirar o colega do caminho não vai me ajudar a encontrar a paz. Pelo contrário, é sua permanência a meu lado, o fato de eu estar ali dia a dia tendo-o como exemplo vivo de competência, que pode me fazer ser um pouco menos incompetente, pois posso me espelhar nele, aprender com ele.
O quadro acima é hipotético, esse eu não sou eu, mas admito que já fui e que um dia poderei voltar a ser. O exemplo é válido, pois o podemos aplicar no macro. Se um país teme seu vizinho porque este conseguiu resolver questões básicas que o primeiro ainda teima em não enxergar, não adianta entrar em guerra e roubar todas as conquistas desse país mais desenvolvido, pois, quando este passar a ser governado pelos incompetentes invejosos, todas essas conquistas irão por água abaixo. Assim, o mais sábio a fazer é ir visitá-lo, humildemente, estudar de que formas conseguiu seus avanços e tentar copiá-los, aplicando em seu próprio país os métodos que o vizinho usou pra chegar aonde chegou. Entenderam? Nesse caso, a guerra é mais trabalhosa e menos frutífera que a paz.
Todo mundo é a favor da paz. É como o inverso da corrupção. Todo mundo é contra corrupção. Só que clamar isso não nos faz melhores seres humanos. "Sou a favor da paz!" "Sou contra a corrupção!" Balelas. Estamos apenas dizendo o óbvio, repetindo o que já ouvimos de nossos pais, avós, bisavós etc. E, enquanto isso, jovens são mandados pra disparar metralhadoras (ou cortar cabeças) num país longínquo sem que movamos uma palha. Não é nosso problema. E, ao mesmo tempo, os caras que elegemos pra nos governar aumentam seus próprios salários e suas benesses, fora o que adquirem por baixo do pano. Isso se chama hipocrisia e não tem nada a ver com paz. Paz é outra coisa, porém, admito, não faço a menor ideia do que seja, visto jamais ter topado com ela no meio do caminho.
Um dos maiores (em todos os sentidos) romances da literatura universal leva a paz no título, mas atrelada a seu oposto: Guerra e paz, do russo Tolstói. E, de quebra, é também o romance com maior número de personagens. Como não o li ainda (tá em minha estante, esperando acabar minha preguiça), prefiro falar de outra obra que aborda os dois opostos: a canção A Paz, de João Donato e Gilberto Gil. Esta, embora não tenha guerra no título, não a deixa de fora: "A paz / Invadiu o meu coração/ De repente, me encheu de paz/ Como se o vento de um tufão/ Arrancasse meus pés do chão/ Onde eu já não me enterro mais./ A paz/ Fez o mar da revolução/ Invadir meu destino; a paz/ Como aquela grande explosão/ Uma bomba sobre o Japão/ Fez nascer o Japão da paz/ Eu pensei em mim/ Eu pensei em ti/ Eu chorei por nós/ Que contradição/ Só a guerra faz/ Nosso amor em paz/ Eu vim/ Vim parar na beira do cais/ Onde a estrada chegou ao fim/ Onde o fim da tarde é lilás/ Onde o mar arrebenta em mim/ O lamento de tantos ais."
Tá bom ou quer mais? Sem falar na galera do paz e amor, nas pás, no Green Peace, em La Paz, nos que enchem os pacovás, na atriz Paz Vega (que tira a paz de qualquer um), nas misses que só querem a paz no mundo, na morte (que é a paz derradeira), no PAS (Pedro Alexandre Sanches), sem falar que a paz foi feita pra quem lhe apraz, mas além dela tem Barrabás, as crises conjugais, o que é demais, os efeitos especiais, o quem sabe faz, o Goiás (o time), o haverás, o incapaz, o jamais, o leva e traz, os mortais (e os imortais), os neandertais, o ousarás, os patuás, o quais-quais, o rapaz, os simonais (e seus wilsons), os tais, os umbilicais, o (Pero) Vaz (de Caminha), os xarás, o zás-trás e a canção Quero que Vá Tudo pro Inferno, que Roberto não canta mais.
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PS1: Na crônica anterior, falei que uma colega revisora chamada Eliane havia sido minha primeira cobaia. Agora, no caso desta, foi outra colega revisora, Eliana, quem, sem saber o motivo de eu lhe pedir que dissesse uma palavra, sugeriu "paz". Missão cumprida.
PS2: Trilha sonora — Gilberto Gil, A Paz (João Donato – Gilberto Gil)
PS2: Trilha sonora — Gilberto Gil, A Paz (João Donato – Gilberto Gil)
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Eu também, sou a favor da paz....e contra a corrupção. Sou até, contra a pedofilia.
ResponderExcluirQuem me conhece, sabe, que eu sou uma moça de bem.
Calma! (Que poderia ser a prima da paz)
É só ironia. (Que poderia ser a prima, "elegantéééérrima", da guerra)
Ironia nível: "Se reclamar, vai ficar pior".
Brincadeira, Léo!
O texto, verdadeiramente, ficou ótimo! Muito!
Continue com teu desafio, isso só tá te deixando melhor!
Beijo e sucesso!
Valeu, Vanessa!
ExcluirSó pra explicar: todo mundo que se preze deve ser a favor da paz e contra a corrupção; só quis mostrar no texto que, sem reconhecermos nossa própria parcela de culpa nesse mecanismo hipócrita, nada disso tem valor.
Beijos,
Léo.
Sim. Lógico! Entendi, exatamente assim. E concordo.
ExcluirPor isso que escrevo, com ar de ironia.
Qual o sentido de ser contra a paz e a favor da corrupção? Quem poderia dizer que é? Mas, dificilmente a gente enxerga onde está nossa culpa, tão nitidamente quanto a gente enxerga onde está a culpa do outro.
E até que ponto a gente consegue ser tão firme nos nossos valores, se estamos apenas aprendendo, sobre tudo, o tempo todo, né? E o sentido das coisa, então, que estão sempre mudando?
Sem ironia, digo que:
A paz é mais prazerosa que a guerra.
E a corrupção dá muito mais assunto que isso, começando pela imposição de leis que vão contra nosso própria natureza, e que nos coloca, consciente ou não, em uma estrutura que se desenvolve em corrupção, violência e que pode acabar em guerra.
Vou fazer uma confissão:
Essas palavrinhas, mais polêmicas, são as minhas preferidas.
Enobrece a prosa. Nossa!
rsrsrsrsrs.... :) !
Falou e disse, Vanessa!
ExcluirÓ, eu sou chegado também numa polêmica, mas muitas vezes não são os assuntos que são polêmicos, são as pessoas que são tradicionalistas e óbvias e rezam pela cartilha do senso comum...
Beijos,
Léo.
Isso, isso!
ExcluirGosto das palavras polêmicas, que levam sempre a um aprofundamento, intelectual, de alma, ou que for.
Das pessoas que polemizam no raso, tô fora!
bjbj
Boa! Quem polemiza no raso, quando chega no fundo, se afoga. rs
ExcluirBj,
Léo.