segunda-feira, 13 de abril de 2015

Crônicas Desclassificadas: 160) Perdido na manifestação (como cego em tiroteio)

Nesse domingo, eu disse "Hoje me vingo". Assim meio sem jeito, cobri o peito com uma estampa de Che Guevara e fui encarar Sampa, dar à tapa a cara. Já na escada, ouvi da mulher um "É piada? Tá procurando treta? Pode trocar essa camiseta!". Obediente, acedi. Acendi a luzinha da razão, meti uma regata sobre o coração – que me dizia "bata!" – e ganhei a rua, que é sua, mas também é minha, calminha! Rolava no escutador uma canção de amor (à arte) de Kléber Albuquerque que dizia que essa tal de poesia é coisa que vicia – "sou poeta que sabe que a morte é certa e ainda canta. Sou criança que sabe que a vida é dança enquanto dança. Sou artista operário operando o maquinário desse trem de ilusões. São só canções, são só canções, não valem nada, eu sei". Mas aí parei...

A muvuca da Paulista não estava pra artista. Vi muito sem cuca na maior energia exigindo a volta da tirania. Vi uns brancos subindo nos tamancos, uns leitores da Veja tomando cerveja, uma legião de amarelo formando um castelo (de areia) de légua e meia. Atravessar a avenida foi trabalho suicida. Vez ou outra eu via um útil inocente no meio daquele mar de gente de alto poder aquisitivo querendo nova inquisição... e eu ali, vendo tudo ao vivo e balançando com a cabeça que "não". No meio daquela branca onda maciça, achei que estava na Suíça. Só de vez em quando, enquanto eu ia (des)andando, via um pobre (a maioria trabalhando). Havia um bando de pit bulls rosnantes (ainda mais que antes), umas loiras fazendo bico pra selfie... que mico!

Um caminhão do Vem pra Rua atravessado no meio da Paulista vendia a lua pra turista. Palavras de ordem eram berradas aos que concordem (perdoem a falta de concordância, é implicância); alguns cartazes em inglês, outros em francês, dirigiam-se, talvez, à mídia internacional. Afinal, era importante dizer (pra BBC?) que quem bate panela tem razão de bater nela. Um bando orgulhoso de coxinhas ia e vinha, com camiseta estampada pra se mostrar pra moçada. Esses tinham estofo! Achei fofo. A cena lembrava as baladas da Vila Madalena durante a Copa. Opa! Só que com pouco policiamento, porque o descontentamento dos contentes não carece de grande contingente. Gente bonita, perfumada, bem-vestida e animada não leva bala de borracha dos homens de farda. Cê acha? Já a galera pobre, preta ou parda...

Mas eu preciso explicar o que fazia naquele lugar: manifestação? Não. Eu ia era ao Parque Trianon. O domingo tava bom, ensolarado, e me deu vontade de perder um ou outro quilo acumulado, daí que nada melhor que uma caminhada, curtindo um som bom. Só que não. Tinha a manifestação, com seus caminhões de som no último volume vomitando queixumes com requintes de baba aos ouvintes emboabas. E só eu de transeunte. E o porquê, nem me pergunte. Cismo que deva ter rolado certo masoquismo ou mórbida curiosidade de ver a horda da ordem invadindo a cidade e bradando contra a corrupção alheia (sim, porque a nossa a gente não alardeia). E, no Cunha, ninguém punha; quanto ao Renan, passe amanhã...

De repente, pensei que havia voltado ao passado quando um caminhão a meu lado começou a tocar manjada canção: "Eu te amo, meu Brasil, eu te amo. Meu coração é verde, amarelo, branco, azul-anil..." Tasqueopariu! Afastei-me bem depressa; ouvir uma canção dessas não traz bom presságio. Ágil como maratonista, continuei cruzando a Paulista, ultrapassando humanos obstáculos (precisei ser bom de cálculo)... Mas, pra ser sincero, deixando de lado o lero-lero, até que vi, sim, alguns brasileiros, enfim. Trabalhadores espertos que, deixando de lado o errado e o certo da manifestação, aproveitavam a ocasião pra defender seu quinhão. Ao contrário da multidão, talvez por não se sentirem donos de nada, nem tinham a cara pintada nem vestiam verde-amarelo. São os que sempre ficam com os farelos...

Tais brasileiros pareciam agulha num palheiro. Uns vendiam pipoca, outros cola (coca). Vi gente vendendo corneta, uns vendiam camiseta anti-Lula no meio do pula-pula. Pobre é bicho inteligente, onde houver gente lá está ele sorridente, "leve três, pague dois". Nada como um peão na frente dos bois. Não faltou quem vendesse água... ou umas brejas, pra afogar a mágoa da manada afogueada. Pintou coletivo de dotô, pode apostar que vem camelô. E numa manifestação, cidadão, pode crer que é bem melhor que num trem rumo ao cafundó. Afinal, a renda per capita é bem maior, cáspita! Dessa forma, enquanto a burguesia não se conforma, o pobre "terceirizado" se sente valorizado, vendendo seu produto bruto como no atacado. É a lei do mercado do mundo cão. Um torce pra Alemanha, o outro ganha o pão.

Ufa! Saí da estufa e entrei no Trianon. Tudo de bom. Só então pude ligar de novo o iPod. Vê se pode! Agora era Gabriel de Almeida Prado quem cantava uma de sua lavra com Daniel Ramos (em que boa companhia estamos!): "Até o homem cobra Deus por não se mostrar presente. Coração cobra da mente, terra cobra da semente. Tudo cobra. Respirar é combustível, mas é dose de veneno. Peito cobra: cada vez que bate, é uma batida a menos." Muito pertinente ouvir essa canção ilhado, cercado de manifestação por todos os lados. Lá de dentro, ainda podia ouvir os brados. Aumentei o volume. E acelerei o passo. Pensei: "a questão se resume em ocupar meu espaço", afinal, tá tão na moda ocupe isso, ocupe aquilo, que parece chouriço vendido a quilo.

Bem que eu tentei. Não deu meia hora, escutei: "Moço, a gente vai fechar!" Soltei um "já?". "Sim, por causa da manifestação, vamos fechar mais cedo." Taí, essa é a esperança que venceu o medo. Na volta, parecia mais tranquilo (ou talvez já estivesse familiarizado com aquilo). Brinquei com uma garotinha que vinha com uma bexiga e já esperei, da parte do pai, briga. Nada. Ele nem viu. E a garotinha me sorriu. Enternecido, pensei com meus botões: "nem tudo está perdido." Me afastei dos leões que gritavam "chega!" e meio às cegas, pelo instinto, pelo faro, abandonei o recinto enquanto ainda estava claro. Seguindo, de casa, o rastro, agora ouvia Marcio Policastro: "Mas hoje eu não vou me defender e nem preciso atacar. Deixei o meu tanque de guerra na garagem. Não, não tenho medo de você; tô vendo o seu corpo falar. Você não traz nenhum perigo à minha autoimagem."

É. "Fora Dilma" não dá rima.

***

8 comentários:

  1. Realmente Alberto Manguel foi pertinente em seus comentários acerca da associação de sabores como alimento não apenas da mente, mas de todos os sentidos, indissociável a certos textos literários. Alcanças o nível dos melhores "Chefs" com os sabores variados e tão bem dosados nesta crônica digna de guarnecer as mais distintas mesas da literatura pátria... No mais: E la nave vá!
    Tim! Tim!
    Regina Makarem

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    1. Oi, Regina!

      Embora não mereça, agradeço por suas palavras. De quebra, ganho mais um autor pra ler (andei pesquisando sobre ele antes de te responder): Alberto Manguel.

      Valeu, queridona!

      Beijo,
      Léo.

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  2. Chamo-te, corajoso
    Embora a ausência
    De balas, cassetetes e gases
    Atirou-se a convivência
    Da fala dos vorazes
    Imagino-te, blindado
    Perdido entre cartazes
    Com discurso tão lesado
    Eu, no meio dessas frases
    Teria meu figado azedado

    rsrsrsrs.....Não resisti





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  3. Léo, no tempo em que a Folha de São Paulo podia ter seu nome escrito com F, maiúsculo; e abrigava Jornalistas com J, maiúsculo, você seria presença Obrigatória. Vai escrever assim lá na... lá na Carta Capital? Alô, Mino Carta!! Você tem que conhecer o Léo!

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    1. Cava, tenho treinado no blogue esse tempo todo justamente pensando em, num futuro não muito longínquo, escrever pra algum jornal. Se eles existirem ainda até lá... rs

      Beijão,
      Léo.

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