Mais uma vez conto com a contribuição da talentosa (e generosa) pena de Helena Tassara em minha coluninha sobre discos. E Helena vem preencher uma lacuna que persistia ainda por aqui: a falta de um disco de Elis. Acrescento que não houve coincidência, este texto foi pensado pra ser publicado na semana em que estreia o filme sobre a cantora. Costumo apresentar aqui o/a colaborador/a, mas, como Helena é reincidente, deixo o link de seu texto anterior, pois lá estão informações sobre ela e deliciosa prosa a respeito do disco Alucinação, de Belchior (aqui). Antes de irmos ao texto sobre Elis, preciso avisar aos apressados que se trata de leitura pra fortes, pois Helena usou e abusou de seu talento de pesquisadora pra trazer pra cá um trabalho detalhista digno de constar de cadernos de cultura de jornais de primeira linha. Aos preguiçosos, sugiro leitura em conta-gotas, pois cada palavra escrita vale muito a pena. De quebra, fica aqui também como farto material pra futuros pesquisadores. Vamos a ele, pois:
Falso Brilhante, de Elis Regina
Por Helena Tassara
Falso Brilhante, de Elis Regina
Por Helena Tassara
Não seria delicado começar com a mesma frase de outra colaboração minha para este mesmo blog, mas é inevitável porque, de fato, em 1976 eu tinha 15 anos e muitas convicções. E ouvia muita música fechada num mundo adolescente, dentro das quatro paredes de meu quarto. Era um tempo em que fones de ouvido eram apenas instrumentos para profissionais, não existiam aparelhos de som portáteis para se carregar na bolsa, no bolso ou nas mãos.
Até então, Elis Regina, seu estilo e seu cantar não participavam de meu universo musical. Como cantora e personalidade, ela estava associada sobremaneira, ao menos para mim, a fatos históricos e políticos que, embora ainda não tivessem ficado para trás, àquela altura eu preferia ignorar. O fato é que, como nossos pais (os meus, pelo menos), na luta contra a guitarra elétrica, lá no fim dos anos 1960, a família tinha ficado do lado dos tropicalistas mutantes. Além disso, éramos leitores do Pasquim e fãs do Henfil, que, afinal de contas, tinha enterrado e desenterrado a coitada no seu “Cemitério dos Mortos-Vivos” por conta de um episódio malcontado em que ela se apresentou cantando nas Olimpíadas do Exército (Elis foi detida, interrogada e coagida pelos militares a fazer isso, mas na ocasião, ninguém soube).*
Até então, Elis Regina, seu estilo e seu cantar não participavam de meu universo musical. Como cantora e personalidade, ela estava associada sobremaneira, ao menos para mim, a fatos históricos e políticos que, embora ainda não tivessem ficado para trás, àquela altura eu preferia ignorar. O fato é que, como nossos pais (os meus, pelo menos), na luta contra a guitarra elétrica, lá no fim dos anos 1960, a família tinha ficado do lado dos tropicalistas mutantes. Além disso, éramos leitores do Pasquim e fãs do Henfil, que, afinal de contas, tinha enterrado e desenterrado a coitada no seu “Cemitério dos Mortos-Vivos” por conta de um episódio malcontado em que ela se apresentou cantando nas Olimpíadas do Exército (Elis foi detida, interrogada e coagida pelos militares a fazer isso, mas na ocasião, ninguém soube).*
Por essas e por outras, muito embora logo depois Elis tenha dado uma guinada para o lado “do bem”, falando e atuando publicamente contra a ditadura, ficou na memória um ranço desconfortável colado a sua figura. E o que ela representava naquele momento não cabia no rol de minhas convicções. Sua música não me interessava, sua afetação não me atraía. Entendo hoje que era um tipo de preconceito, faço mea-culpa. Era um mundo de muita patrulha, do lado de cá, e de muita repressão, do lado de lá. Porém, sobretudo, eu achava que ela “gritava” demais, apesar de sua notória e extraordinária afinação, o que não tinha nada a ver com política.
Em resumo, eu não tinha nenhum disco de Elis Regina disponível por perto, nem na minha discoteca, nem na de meus pais. É claro que, como a maioria dos brasileiros, eu conhecia bem sua voz, que ouvia através das ondas do rádio que, diga-se de passagem, era muito mais diverso do que este que conhecemos nos dias que correm, não era segmentado e tocava de tudo um pouco.
Certo dia, em 1976, fui assistir ao espetáculo Falso Brilhante, que fazia sucesso estrondoso desde de dezembro do ano anterior no Teatro Bandeirantes em São Paulo. Não lembro muito bem como isso aconteceu, uma vez que meus pais preferiam teatro e cinema a shows de música e, como já disse, não ouviam Elis. Por isso, estou segura de que eles não estavam comigo nesse dia. Acho que algum/a conhecido/a da família me convidou e eu fui. Na verdade, fiz essa exceção porque fiquei curiosa: sabia que Elis cantava duas lindas e emblemáticas canções do alucinado Belchior (Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida) que eu já conhecia e ouvia dia e noite, noite e dia. Talvez eu tenha sido um caso raro de alguém que foi introduzido a Elis Regina pelas mãos de Belchior e não o inverso.
O fato é que saí do teatro abismada. Emocionada. Perturbada. Encantada. Fascinada. Tanto que voltei para revê-la sozinha outras duas vezes.
Curto parênteses. Descubro agora, ao pesquisar mais sobre o tema para escrever este texto, que o espetáculo abria com um número instrumental da valsa Fascinação (F. D. Marchetti, em versão para o português de Armando Louzada, gravada pela primeira vez em 1943 por Carlos Galhardo) e terminava com a magistral interpretação de Elis para essa mesma canção (que depois foi trilha sonora da novela global O Casarão, um épico sobre a história do desenvolvimento de São Paulo escrito por Lauro César Muniz). Coincidência ou ecos distantes de minha memória afetiva, não sei. Mas acho que a palavra mais adequada para descrever a Elis Regina que ficou em mim a partir desse momento é essa mesma: fascinação.
Falso Brilhante não era apenas um show, era um espetáculo teatral musical, uma megaprodução com características inéditas e pouco vistas até aquele momento na história da música popular brasileira.** Uma ousadia que, talvez, só tenha sido superada por Maria Bethânia, com seu estilo de intérprete dramático-teatral e que já tinha produzido e protagonizado (e continuaria a produzir e a protagonizar pelos anos seguintes) espetáculos entregues para a direção e a criação de profissionais renomados do teatro, com roteiro, cenários e figurinos complexos, simbólicos e inovadores.*** Eram shows que misturavam músicas inéditas com pérolas saídas do baú do extenso cancioneiro nacional, leituras de textos poéticos e dramáticos garimpados nos livros de sua educação erudita baiana ou escritos sob encomenda.
Não sei se por inspiração ou se por desejo de superar os feitos de Bethânia no palco, assim também foi o Falso Brilhante de Elis, dirigido por Miriam Muniz e com direção de arte, bonecos e figurinos de Naum Alves de Souza, ambos importantes expoentes das artes teatrais já naquela ocasião. Infelizmente, por questões que não cabem explicar aqui, não restou nem um único desenho ou esboço do magnífico trabalho realizado por Naum!
O roteiro, incluindo a seleção das canções, foi uma criação coletiva de toda a equipe e era dividido em duas partes ou atos bem diversos.
Na primeira, em que se destacava o aspecto teatral, Elis fazia uma espécie de crítica musical retrospectiva de sua vida e da história do país, cantando grandes sucessos seus e de outros, nacionais e estrangeiros.
Na segunda, a música ficava em primeiro plano, e ela cantava canções inéditas cuidadosamente escolhidas para destacar suas qualidades vocais, apresentadas com arranjos exclusivos feitos por César Camargo Mariano, com quem, na ocasião, vivia um casamento bastante conturbado.
A ordem de execução das músicas de acordo com a reconstituição de Rafaela Lunardi seguia a seguinte playlist:
Primeira parte: 1) Abertura: Retrato / Fascinação (instrumental); 2) Cantigas de Roda / Criança Feliz / Trevo de 4 Folhas / Mamãe / O Jornaleiro / A media luz / Le Lac de Come; 3) No Dia em que Eu Vim-me Embora; 4) Cidade Maravilhosa (instrumental); 5) Dobrado do 4º Centenário; 6) O Guarani / Uno / Olhos Verdes / Singing in The Rain / Volare (Dipinto di Blu) / Hymne a l'amour / La puerta / Gira-Gira / Diz que Tem / Canta Brasil / Aquarela do Brasil; 7) Berimbau (instrumental); 8) Arrastão / O Morro Não Tem Vez / Reza / Canto de Ossanha / Deixa / Lapinha / Upa, Neguinho; 9) Hino da Batalha da República; 10) Glória, Glória, Aleluia (Vencendo, vem Jesus).
Segunda parte: 11) Gracias a la vida; 12) Vida de Artista (instrumental); 13) Los hermanos; 14) Quero; 15) O que Tinha de Ser (gravada por Elis em 1974) / Tatuagem; 16) Agnus Sei (gravada por Elis em 1973); 17) Jardins da Infância; 18) Como Nossos Pais; 19) Transversal do Tempo (gravada por Elis em 1977); 20) Velha Roupa Colorida; 21) O Homem de La Mancha (de 1972, que Elis nunca gravou); 22) O cavaleiro e os moinhos; 23) Um por Todos, Todos por Um; 24) O Mestre-Sala dos Mares (gravada por Elis em 1974); 25) Nessa Data (de 1975, que Elis não gravou); 26) Fascinação – link para o setlist do show reconstituído aqui.
Falso brilhante, o espetáculo, foi produzido e engendrado pela própria Elis. Seu nome de batismo foi tirado de uma frase do bolero Dois pra Lá, Dois pra Cá, de João Bosco e Aldir Blanc (gravada por ela em 1974 e que não estava no setlist do novo espetáculo). Além de ser um elo com seu trabalho anterior de grande reconhecimento popular, a expressão desmistifica a fama e remete à realidade da dura vida do artista que transita entre a loucura da criação e a luta pelo vil metal, entre o desejo de liberdade e a pressão das gravadoras e do mercado, entre o reconhecimento e o carinho dos fãs e a solidão da vida pós-palco, entre a exposição da mídia e o desejo de privacidade.
Elis Regina se preparou durante meses, com aulas de interpretação e expressão corporal, para atuar muito mais do que como a cantora que todos conheciam bem: no palco ela se transformava em atriz interpretando, criticamente, a própria história em retrospecto e apresentando absoluto domínio do corpo e da voz. Os números principais, especialmente na primeira parte, eram intercalados por cenas com jingles, pot-pourris musicais, citações instrumentais de conhecidas melodias, projeções de desenhos animados produzidos especialmente pelo animador José Rubens Siqueira (dos quais também não sobrou um único frame) e declamação de textos e poesias. Havia também muita coreografia e mímica: o gestual era preciso, ensaiado e marcado; as performances eram repletas de recursos teatrais, elementos circenses e adereços cênicos, tanto na encenação como na ambientação e na caracterização visual do elenco. Elis trocava de roupa em cena, acrescentava e tirava elementos de seu figurino, usava perucas exageradas, forte maquiagem. E cantava em várias línguas com entonação e sotaque perfeitos. Era tudo preparado para celebrar a grande artista que ela sempre foi.
Apoiada na atuação dos músicos/atores/dançarinos de sua trupe (que era grande), Elis tornava-se uma espécie de repórter de seu tempo, ao mesmo tempo que construía uma versão romanceada de si mesma, de sua trajetória como estrela na constelação da música brasileira. Dava sua própria versão para uma carreira artística que foi tão meteórica quanto polêmica. É bom lembrar que, na ocasião, com pouco mais de 30 anos de idade, Elis já tinha longa estrada profissional, nos palcos e na televisão, fazendo sucesso no Brasil e no exterior desde os 20, e grande fama de encrenqueira, invejosa, ciumenta e brigona.
O espetáculo mirava o futuro, explicitando os novos rumos que a artista queria imprimir para sua carreira e, ao mesmo tempo, falava do presente, refletindo sobre os anos de chumbo e sobre a situação política de exceção que o país e os hermanos da América Latina viviam. Usava e abusada da linguagem da brecha, das entrelinhas, dos não ditos, dos subterfúgios, para criticar a repressão e o regime ditatorial. Elis Regina tornava-se uma artista engajada, contrabalançando sua já alcançada popularidade com a tão almejada aceitação da crítica e da classe artística intelectualizada.
Em resumo, eu não tinha nenhum disco de Elis Regina disponível por perto, nem na minha discoteca, nem na de meus pais. É claro que, como a maioria dos brasileiros, eu conhecia bem sua voz, que ouvia através das ondas do rádio que, diga-se de passagem, era muito mais diverso do que este que conhecemos nos dias que correm, não era segmentado e tocava de tudo um pouco.
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Certo dia, em 1976, fui assistir ao espetáculo Falso Brilhante, que fazia sucesso estrondoso desde de dezembro do ano anterior no Teatro Bandeirantes em São Paulo. Não lembro muito bem como isso aconteceu, uma vez que meus pais preferiam teatro e cinema a shows de música e, como já disse, não ouviam Elis. Por isso, estou segura de que eles não estavam comigo nesse dia. Acho que algum/a conhecido/a da família me convidou e eu fui. Na verdade, fiz essa exceção porque fiquei curiosa: sabia que Elis cantava duas lindas e emblemáticas canções do alucinado Belchior (Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida) que eu já conhecia e ouvia dia e noite, noite e dia. Talvez eu tenha sido um caso raro de alguém que foi introduzido a Elis Regina pelas mãos de Belchior e não o inverso.
O fato é que saí do teatro abismada. Emocionada. Perturbada. Encantada. Fascinada. Tanto que voltei para revê-la sozinha outras duas vezes.
Curto parênteses. Descubro agora, ao pesquisar mais sobre o tema para escrever este texto, que o espetáculo abria com um número instrumental da valsa Fascinação (F. D. Marchetti, em versão para o português de Armando Louzada, gravada pela primeira vez em 1943 por Carlos Galhardo) e terminava com a magistral interpretação de Elis para essa mesma canção (que depois foi trilha sonora da novela global O Casarão, um épico sobre a história do desenvolvimento de São Paulo escrito por Lauro César Muniz). Coincidência ou ecos distantes de minha memória afetiva, não sei. Mas acho que a palavra mais adequada para descrever a Elis Regina que ficou em mim a partir desse momento é essa mesma: fascinação.
Falso Brilhante não era apenas um show, era um espetáculo teatral musical, uma megaprodução com características inéditas e pouco vistas até aquele momento na história da música popular brasileira.** Uma ousadia que, talvez, só tenha sido superada por Maria Bethânia, com seu estilo de intérprete dramático-teatral e que já tinha produzido e protagonizado (e continuaria a produzir e a protagonizar pelos anos seguintes) espetáculos entregues para a direção e a criação de profissionais renomados do teatro, com roteiro, cenários e figurinos complexos, simbólicos e inovadores.*** Eram shows que misturavam músicas inéditas com pérolas saídas do baú do extenso cancioneiro nacional, leituras de textos poéticos e dramáticos garimpados nos livros de sua educação erudita baiana ou escritos sob encomenda.
Não sei se por inspiração ou se por desejo de superar os feitos de Bethânia no palco, assim também foi o Falso Brilhante de Elis, dirigido por Miriam Muniz e com direção de arte, bonecos e figurinos de Naum Alves de Souza, ambos importantes expoentes das artes teatrais já naquela ocasião. Infelizmente, por questões que não cabem explicar aqui, não restou nem um único desenho ou esboço do magnífico trabalho realizado por Naum!
O roteiro, incluindo a seleção das canções, foi uma criação coletiva de toda a equipe e era dividido em duas partes ou atos bem diversos.
Na primeira, em que se destacava o aspecto teatral, Elis fazia uma espécie de crítica musical retrospectiva de sua vida e da história do país, cantando grandes sucessos seus e de outros, nacionais e estrangeiros.
Na segunda, a música ficava em primeiro plano, e ela cantava canções inéditas cuidadosamente escolhidas para destacar suas qualidades vocais, apresentadas com arranjos exclusivos feitos por César Camargo Mariano, com quem, na ocasião, vivia um casamento bastante conturbado.
A ordem de execução das músicas de acordo com a reconstituição de Rafaela Lunardi seguia a seguinte playlist:
Primeira parte: 1) Abertura: Retrato / Fascinação (instrumental); 2) Cantigas de Roda / Criança Feliz / Trevo de 4 Folhas / Mamãe / O Jornaleiro / A media luz / Le Lac de Come; 3) No Dia em que Eu Vim-me Embora; 4) Cidade Maravilhosa (instrumental); 5) Dobrado do 4º Centenário; 6) O Guarani / Uno / Olhos Verdes / Singing in The Rain / Volare (Dipinto di Blu) / Hymne a l'amour / La puerta / Gira-Gira / Diz que Tem / Canta Brasil / Aquarela do Brasil; 7) Berimbau (instrumental); 8) Arrastão / O Morro Não Tem Vez / Reza / Canto de Ossanha / Deixa / Lapinha / Upa, Neguinho; 9) Hino da Batalha da República; 10) Glória, Glória, Aleluia (Vencendo, vem Jesus).
Segunda parte: 11) Gracias a la vida; 12) Vida de Artista (instrumental); 13) Los hermanos; 14) Quero; 15) O que Tinha de Ser (gravada por Elis em 1974) / Tatuagem; 16) Agnus Sei (gravada por Elis em 1973); 17) Jardins da Infância; 18) Como Nossos Pais; 19) Transversal do Tempo (gravada por Elis em 1977); 20) Velha Roupa Colorida; 21) O Homem de La Mancha (de 1972, que Elis nunca gravou); 22) O cavaleiro e os moinhos; 23) Um por Todos, Todos por Um; 24) O Mestre-Sala dos Mares (gravada por Elis em 1974); 25) Nessa Data (de 1975, que Elis não gravou); 26) Fascinação – link para o setlist do show reconstituído aqui.
Falso brilhante, o espetáculo, foi produzido e engendrado pela própria Elis. Seu nome de batismo foi tirado de uma frase do bolero Dois pra Lá, Dois pra Cá, de João Bosco e Aldir Blanc (gravada por ela em 1974 e que não estava no setlist do novo espetáculo). Além de ser um elo com seu trabalho anterior de grande reconhecimento popular, a expressão desmistifica a fama e remete à realidade da dura vida do artista que transita entre a loucura da criação e a luta pelo vil metal, entre o desejo de liberdade e a pressão das gravadoras e do mercado, entre o reconhecimento e o carinho dos fãs e a solidão da vida pós-palco, entre a exposição da mídia e o desejo de privacidade.
Elis Regina se preparou durante meses, com aulas de interpretação e expressão corporal, para atuar muito mais do que como a cantora que todos conheciam bem: no palco ela se transformava em atriz interpretando, criticamente, a própria história em retrospecto e apresentando absoluto domínio do corpo e da voz. Os números principais, especialmente na primeira parte, eram intercalados por cenas com jingles, pot-pourris musicais, citações instrumentais de conhecidas melodias, projeções de desenhos animados produzidos especialmente pelo animador José Rubens Siqueira (dos quais também não sobrou um único frame) e declamação de textos e poesias. Havia também muita coreografia e mímica: o gestual era preciso, ensaiado e marcado; as performances eram repletas de recursos teatrais, elementos circenses e adereços cênicos, tanto na encenação como na ambientação e na caracterização visual do elenco. Elis trocava de roupa em cena, acrescentava e tirava elementos de seu figurino, usava perucas exageradas, forte maquiagem. E cantava em várias línguas com entonação e sotaque perfeitos. Era tudo preparado para celebrar a grande artista que ela sempre foi.
Apoiada na atuação dos músicos/atores/dançarinos de sua trupe (que era grande), Elis tornava-se uma espécie de repórter de seu tempo, ao mesmo tempo que construía uma versão romanceada de si mesma, de sua trajetória como estrela na constelação da música brasileira. Dava sua própria versão para uma carreira artística que foi tão meteórica quanto polêmica. É bom lembrar que, na ocasião, com pouco mais de 30 anos de idade, Elis já tinha longa estrada profissional, nos palcos e na televisão, fazendo sucesso no Brasil e no exterior desde os 20, e grande fama de encrenqueira, invejosa, ciumenta e brigona.
O espetáculo mirava o futuro, explicitando os novos rumos que a artista queria imprimir para sua carreira e, ao mesmo tempo, falava do presente, refletindo sobre os anos de chumbo e sobre a situação política de exceção que o país e os hermanos da América Latina viviam. Usava e abusada da linguagem da brecha, das entrelinhas, dos não ditos, dos subterfúgios, para criticar a repressão e o regime ditatorial. Elis Regina tornava-se uma artista engajada, contrabalançando sua já alcançada popularidade com a tão almejada aceitação da crítica e da classe artística intelectualizada.
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Fiz esse prólogo gigante sobre o espetáculo porque o disco Falso Brilhante, lançado em fevereiro de 1976, só existe por causa dele, sendo claramente seu subproduto. Tecnicamente, ele pode até mesmo ser considerado “menor” em relação ao show e aos álbuns anteriores de Elis. Porém, apesar de todas as dificuldades e restrições, ele é um épico que poderia ter sido muito melhor. E eu digo isso basicamente por dois motivos.
Primeiro porque, com apenas dez canções, as inéditas (exatamente o número de faixas que cabiam numa bolacha de vinil padrão) o álbum é uma síntese de estúdio, um total de 35 minutos para um espetáculo de mais 2 horas de duração. De fato, e de acordo com minha memória afetiva, ele não faz jus à proposta do show. Sinto falta de um disco duplo (ou triplo), gravado ao vivo com boas condições técnicas (de som e de imagem) e com uma bela edição de fotos no encarte. Algumas delas, feitas por Cristiano Mascaro, estampam a parte interna do disco de vinil original e servem apenas para dar água na boca. Poderia, por exemplo, ter sido um disco como Drama 3º Ato (1973), de Maria Bethânia, que registra o roteiro do show na íntegra, ainda que com qualidade precária para os padrões de hoje, deixando-o eternizado para a história. Infelizmente, isso não aconteceu com Falso Brilhante.
Hoje, além de matérias jornalísticas divertidas realizadas pela TV Cultura de São Paulo (que, naqueles tempos duros, era nossa reserva cultural moral e de resistência na televisão), restam algumas gravações realizadas pela equipe da Rede Bandeirantes (teatro, emissora de televisão e rádio) com trechos de pouca qualidade sonora e de imagem, feitos às pressas por conta do sucesso do espetáculo. São apenas registros de valor histórico e, como pesquisadora, sou obrigada a dizer que é muitíssimo melhor do que nada.
Em segundo lugar, como dizia acima, ele é um disco “menor” pelas questões técnicas extremas que envolveram a urgência e a pressão com que foi gravado e que na ocasião não se tornaram públicas. Detalhes da epopeia que foi a gravação de Falso Brilhante podem ser conhecidos na excelente biografia Elis Regina – nada será como antes, escrita pelo jornalista Júlio Maria (São Paulo: Master Books, 2015), que eu vou resumir a seguir.
O espetáculo fez muito sucesso de público e de crítica imediatamente, logo após a estreia. Foi uma surpresa, com certeza feliz, mas inesperada, tanto para a própria Elis como para sua gravadora. Ninguém podia imaginar que haveria tanta procura por ingressos, e a temporada foi se estendendo, com sessões sempre lotadas, todas as noites, durante cinco dias da semana (de quarta a domingo), incluindo a venda de cadeiras extras. Assim, a produção não encontrava tempo (nem condições físicas) para parar e gravar um disco com as canções do show. Temiam, ademais, interromper o bom retorno que a bilheteria estava produzindo. Afinal, todos os custos de criação de Falso Brilhante, que teve um longo período de ensaios, tinham sido integralmente pagos pela empresa produtora que Elis tinha em sociedade com seu marido. O espetáculo tinha manutenção caríssima (com itens que iam do aluguel do teatro até o cachê de grande elenco de atores, músicos e técnicos) e, embora a razão aconselhasse alguma prudência, o casal havia empatado a maior parte de suas economias na produção. Por outro lado, era preciso aproveitar o embalo do sucesso e a repercussão na mídia, lançando o quanto antes um disco na praça. Naqueles tempos, discos vendiam e rendiam muito dinheiro. E ela tinha um contrato para honrar com a gravadora, que exigia a produção de um LP anual.
Por essas e por outras, o Falso Brilhante foi gravado e mixado, na íntegra, em apenas dois dias nos estúdios Phillips/Phonogram, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, com seus 16 canais recém-inaugurados. Isso aconteceu numa segunda e terça-feiras, no curto intervalo de folga entre as apresentações das sessões regulares do show em São Paulo. Um feito extraordinário, de fato, que só pôde ser realizado graças à energia criativa e ao tino comercial do produtor Marco Mazzola (da atual MZA Music), sem contar a genialidade e a capacidade vocal de Elis, que matou a pau “de prima”, como se diz por aí. Ou seja, apesar de os músicos estarem muitíssimo bem afiados e afinados pela exaustiva temporada de apresentações, não houve tempo para ensaios ou repetições, para gravações dos instrumentos em separado e virtuosismos, muito menos para descanso físico ou resguardo vocal da própria Elis. O resultado foi a produção de um disco único que, apressado e sem muita ousadia ou invenção, deixou para a posteridade aquelas que foram consideradas as dez melhores e novas canções do espetáculo, gravadas praticamente tal e qual eram apresentadas ao vivo, só que em estúdio. E o disco ao vivo, que foi sem dúvida planejado e desejado, nunca saiu.
No disco, síntese do espetáculo como disse acima, fica ainda mais patente a opção da linhagem política da nova fase de Elis, expressa na escolha de canções de artistas militantes, cujas canções eram objeto explícito de censura, como as duplas Chico Buarque e Ruy Guerra e João Bosco e Aldir Blanc.
Estes últimos, que já eram autores de vários de seus sucessos anteriores (como Agnus Sei, de 1973, e O Mestre-Sala dos Mares, de 1974, apenas para citar duas canções que ela também interpretava no show), assinam Jardins de infância, O Cavaleiro e os Moinhos e Um por Todos. É um conjunto que evoca a memória de tristes tempos em que é preciso se esconder, se esquecer e que, por mais que não queiramos ver, ficam e ficarão marcados na alma; um tempo em que é preciso resistir, acreditar no Sol e lutar contra os moinhos para “arrebentar a corrente que envolve o amanhã”; um tempo de luta e de heróis, quixotes e mosqueteiros, “eu por mim mesma, todos por mim”, “um por todos e todos por um”.
Com suas escolhas de repertório e seu comportamento impulsivo e desbocado, a Elis Regina purista e sambista dos anos 1960 – quem diria? – na metade dos anos 1970 foi se tornando um ícone da canção de protesto. Poucos anos mais tarde, em 1979, esse processo culminou com a explosão de O Bêbado e a Equilibrista (também de João Bosco e Aldir Blanc), que ficou marcada como a canção da anistia, fundamental na trilha sonora do Brasil que assistia à volta dos exilados políticos e à abertura, ainda que lenta e gradual. E então Henfil fez as pazes com Elis.
Outro exemplo desse engajamento foi a escolha de Tatuagem, que, apesar de ser uma canção de amor louco (como eram os amores de Elis), pertence à trilha criada por Chico Buarque e pelo cineasta Ruy Guerra para a peça Calabar, o elogio da traição (1973), escrita pela dupla. Calabar, embora ambientada no Brasil holandês do século 17, faz uma analogia explícita ao regime militar, fala de privação de liberdade e de injustiça política e, é claro, foi sumariamente proibida pela censura na ocasião, sendo liberada anos depois com restrições. Disco e peça. Elis não foi a primeira a gravá-la, sendo precedida por cantoras do calibre de Maria Bethânia, Elizeth Cardoso, Célia e Cristina Buarque, entre outras, além do próprio Chico e do Zimbo Trio. É um clássico da resistência, “cicatriz risonha e corrosiva, marcada a frio, ferro e fogo, em carne viva”.
Como não poderia deixar de ser, Falso Brilhante traz inéditas de um novato. Dessa vez, a quase estreia era de Belchior, um dos muitos rapazes latino-americanos que Elis fez questão de “descobrir” e “lançar” ao mundo das estrelas populares da música. Com influência da música folk e do rock, na linhagem de Bob Dylan, as duas canções de Belchior, escolhidas a dedo e no K7 por sua intérprete, tratam da grande desilusão da juventude dos anos 1970, que vivia o rápido declínio das utopias e dos valores do mundo de “paz e amor” dos movimentos hippies da década anterior, caminhando a passos largos, rápidos e lépidos de volta ao velho modo de vida burguês e capitalista. Vendo à distância – entre o dedo apontado para “você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” e a óbvia resistência de quem não quer ver que “no presente, a mente, o corpo é diferente e que o passado é uma roupa que não nos serve mais” –, trata-se de duas profecias fundamentais do mago Belchior que constituíram o coração e a alma do show.
Para se ter noção da importância, do impacto e do sucesso que o duo de Belchior teve em Falso Brilhante, além de abrirem o disco as duas canções estão no compacto duplo de Elis lançado quase simultaneamente ao LP; ou seja, são duas de quatro. O próprio Belchior aproveitou o embalo e correu para lançar Alucinação (aquele disco que eu já ouvia sem parar) com sua própria versão das canções.
O álbum tem também duas canções engajadas escritas e cantadas em espanhol. Uma delas, a milonga Los hermanos, do cantor, instrumentista, escritor e compositor argentino Ataualpa Yupanqui (pseudônimo inca para um descendente do mundo quéchua), é uma ode à união, à fraternidade e à liberdade dos povos latino-americanos, explorados e subjugados historicamente por ditaduras e colonialismos. Elis se iguala e se irmana aos hermanos latinos que são tantos “que no los puedo contar”, reverencia os mortos e neles busca força para seguirmos “andando, curtidos de soledad y en nosotros nuestros muertos pa’ que nadie quede atrás”, seguindo com “la esperanza delante y con los recuerdos detrás”, para enfim encontrar “una hermana muy hermosa que se llama libertad”.
A outra, Gracias a la vida, é ao mesmo tempo uma elegia à vida e uma celebração de morte, com forte conotação política. É a canção-testamento da cantora e compositora chilena Violeta Parra, que se tornou sucesso em todo o mundo com as gravações da argentina Mercedes Sosa (1971) e da norte-americana Joan Baez (1974), ambas cantautoras de protesto. Mas é também simplesmente o que é: um lindo e singelo agradecimento emocionado da artista à vida “que me ha dado tanto, me ha dado la risa y me ha dado el llanto... y el canto de todos que es mi propio canto...”
Por fim, para virar definitivamente o disco e terminar, além de Fascinação – a linda valsa dos castelos e das ilusões perdidas, das venturas e quimeras mil que destoa um pouco no contexto engajado do show e sobre a qual já falei acima –, Elis grava Quero, de Thomas Roth, um músico publicitário com diversas parcerias famosas, mas pouco conhecido do público.
É uma canção inocente, pueril, um rock-rural de espírito ambientalista, uma balada natureba, pós-hippie e um pouco lisérgica, que remete a um dos grandes sucessos anteriores de Elis, Casa no Campo, de Tavito e Zé Rodrix, de 1972. É uma lista de quereres, desejos simples e ao mesmo tempo impossíveis, o idílio de uma vida de sonho, em paz e tranquilidade, sem angústias e preocupações, sem guerras ou conflitos internos e externos, uma vida que ela mesma nunca conseguiu ter.
PS1: Por muito tempo, o LP Falso Brilhante esteve de fora de meu setlist. Em 2015, fui surpreendida pelo convite de Fred Alves Pinto (diretor de arte) e de Fábio Zavala (produtor executivo) para participar da equipe do filme Elis, que estava em produção, sob a direção de Hugo Prata. Minha sócia Solange Santos e eu mergulhamos no universo e na vida de Elis Regina, lendo muito e pesquisando imagens de referência para a reconstituição ficcional de sua vida nas telas: elementos que permitissem a recriação dos ambientes e dos momentos-chave da época em que ela viveu – teatros, festivais, bastidores, ensaios, gravações, shows, entrevistas, casas noturnas, residências –, buscando imagens dos objetos de decoração existentes nos locais em que ela morou, dos cenários dos palcos em que cantou, das marcas de cigarro que fumou, dos prêmios que ganhou, das roupas que vestiu, dos cortes de cabelo que usou... enfim, tudo que era preciso para compor o visual de época do filme. Nossa pesquisa também ofereceu material de referência para os figurinos criados por Cristina Camargo e para a maquiagem e a caracterização dos personagens feitas por Anna van Steen. E foi nessa viagem profissional que eu reencontrei o velho Falso Brilhante na estante de discos e pude reacender minhas memórias. Emoção adicional, na busca das escassas informações existentes sobre os cenários e figurinos do show, conheci (e conversei demoradamente com) Naum Alves de Souza poucos meses antes de sua morte. Infelizmente, com tantas histórias para contar em tão pouco tempo, a edição final do filme não traz uma reconstituição completa do visual lindo e complexo que o artista criou para o “Falso Brilhante. Mas, sem dúvida, ele está lá, muito presente.
PS2: Elis, de Hugo Prata, está pronto e é emocionante. A atriz Andreia Horta – vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado de 2016 por seu papel no filme – dá um show de interpretação, trazendo de volta à vida, de maneira impressionantemente convincente e realista, o sorriso largo, as inseguranças e os conflitos da grande cantora Elis Regina. Seus companheiros de tela e de vida também encantam e nos deixam em estado de graça e nostalgia. É ver para crer, cantar e chorar. Apenas uma ressalva: que seja em uma boa e confortável sala de cinema, numa tela bem grande, com projeção de qualidade e som de primeira, mesmo que custe caro. Em cartaz a partir de 24 de novembro próximo, em todo o país, Elis é diversão garantida para todos os públicos e pano para manga nas discussões sobre a história da música popular brasileira.
Com suas escolhas de repertório e seu comportamento impulsivo e desbocado, a Elis Regina purista e sambista dos anos 1960 – quem diria? – na metade dos anos 1970 foi se tornando um ícone da canção de protesto. Poucos anos mais tarde, em 1979, esse processo culminou com a explosão de O Bêbado e a Equilibrista (também de João Bosco e Aldir Blanc), que ficou marcada como a canção da anistia, fundamental na trilha sonora do Brasil que assistia à volta dos exilados políticos e à abertura, ainda que lenta e gradual. E então Henfil fez as pazes com Elis.
Outro exemplo desse engajamento foi a escolha de Tatuagem, que, apesar de ser uma canção de amor louco (como eram os amores de Elis), pertence à trilha criada por Chico Buarque e pelo cineasta Ruy Guerra para a peça Calabar, o elogio da traição (1973), escrita pela dupla. Calabar, embora ambientada no Brasil holandês do século 17, faz uma analogia explícita ao regime militar, fala de privação de liberdade e de injustiça política e, é claro, foi sumariamente proibida pela censura na ocasião, sendo liberada anos depois com restrições. Disco e peça. Elis não foi a primeira a gravá-la, sendo precedida por cantoras do calibre de Maria Bethânia, Elizeth Cardoso, Célia e Cristina Buarque, entre outras, além do próprio Chico e do Zimbo Trio. É um clássico da resistência, “cicatriz risonha e corrosiva, marcada a frio, ferro e fogo, em carne viva”.
Como não poderia deixar de ser, Falso Brilhante traz inéditas de um novato. Dessa vez, a quase estreia era de Belchior, um dos muitos rapazes latino-americanos que Elis fez questão de “descobrir” e “lançar” ao mundo das estrelas populares da música. Com influência da música folk e do rock, na linhagem de Bob Dylan, as duas canções de Belchior, escolhidas a dedo e no K7 por sua intérprete, tratam da grande desilusão da juventude dos anos 1970, que vivia o rápido declínio das utopias e dos valores do mundo de “paz e amor” dos movimentos hippies da década anterior, caminhando a passos largos, rápidos e lépidos de volta ao velho modo de vida burguês e capitalista. Vendo à distância – entre o dedo apontado para “você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem” e a óbvia resistência de quem não quer ver que “no presente, a mente, o corpo é diferente e que o passado é uma roupa que não nos serve mais” –, trata-se de duas profecias fundamentais do mago Belchior que constituíram o coração e a alma do show.
Para se ter noção da importância, do impacto e do sucesso que o duo de Belchior teve em Falso Brilhante, além de abrirem o disco as duas canções estão no compacto duplo de Elis lançado quase simultaneamente ao LP; ou seja, são duas de quatro. O próprio Belchior aproveitou o embalo e correu para lançar Alucinação (aquele disco que eu já ouvia sem parar) com sua própria versão das canções.
O álbum tem também duas canções engajadas escritas e cantadas em espanhol. Uma delas, a milonga Los hermanos, do cantor, instrumentista, escritor e compositor argentino Ataualpa Yupanqui (pseudônimo inca para um descendente do mundo quéchua), é uma ode à união, à fraternidade e à liberdade dos povos latino-americanos, explorados e subjugados historicamente por ditaduras e colonialismos. Elis se iguala e se irmana aos hermanos latinos que são tantos “que no los puedo contar”, reverencia os mortos e neles busca força para seguirmos “andando, curtidos de soledad y en nosotros nuestros muertos pa’ que nadie quede atrás”, seguindo com “la esperanza delante y con los recuerdos detrás”, para enfim encontrar “una hermana muy hermosa que se llama libertad”.
A outra, Gracias a la vida, é ao mesmo tempo uma elegia à vida e uma celebração de morte, com forte conotação política. É a canção-testamento da cantora e compositora chilena Violeta Parra, que se tornou sucesso em todo o mundo com as gravações da argentina Mercedes Sosa (1971) e da norte-americana Joan Baez (1974), ambas cantautoras de protesto. Mas é também simplesmente o que é: um lindo e singelo agradecimento emocionado da artista à vida “que me ha dado tanto, me ha dado la risa y me ha dado el llanto... y el canto de todos que es mi propio canto...”
Por fim, para virar definitivamente o disco e terminar, além de Fascinação – a linda valsa dos castelos e das ilusões perdidas, das venturas e quimeras mil que destoa um pouco no contexto engajado do show e sobre a qual já falei acima –, Elis grava Quero, de Thomas Roth, um músico publicitário com diversas parcerias famosas, mas pouco conhecido do público.
É uma canção inocente, pueril, um rock-rural de espírito ambientalista, uma balada natureba, pós-hippie e um pouco lisérgica, que remete a um dos grandes sucessos anteriores de Elis, Casa no Campo, de Tavito e Zé Rodrix, de 1972. É uma lista de quereres, desejos simples e ao mesmo tempo impossíveis, o idílio de uma vida de sonho, em paz e tranquilidade, sem angústias e preocupações, sem guerras ou conflitos internos e externos, uma vida que ela mesma nunca conseguiu ter.
PS1: Por muito tempo, o LP Falso Brilhante esteve de fora de meu setlist. Em 2015, fui surpreendida pelo convite de Fred Alves Pinto (diretor de arte) e de Fábio Zavala (produtor executivo) para participar da equipe do filme Elis, que estava em produção, sob a direção de Hugo Prata. Minha sócia Solange Santos e eu mergulhamos no universo e na vida de Elis Regina, lendo muito e pesquisando imagens de referência para a reconstituição ficcional de sua vida nas telas: elementos que permitissem a recriação dos ambientes e dos momentos-chave da época em que ela viveu – teatros, festivais, bastidores, ensaios, gravações, shows, entrevistas, casas noturnas, residências –, buscando imagens dos objetos de decoração existentes nos locais em que ela morou, dos cenários dos palcos em que cantou, das marcas de cigarro que fumou, dos prêmios que ganhou, das roupas que vestiu, dos cortes de cabelo que usou... enfim, tudo que era preciso para compor o visual de época do filme. Nossa pesquisa também ofereceu material de referência para os figurinos criados por Cristina Camargo e para a maquiagem e a caracterização dos personagens feitas por Anna van Steen. E foi nessa viagem profissional que eu reencontrei o velho Falso Brilhante na estante de discos e pude reacender minhas memórias. Emoção adicional, na busca das escassas informações existentes sobre os cenários e figurinos do show, conheci (e conversei demoradamente com) Naum Alves de Souza poucos meses antes de sua morte. Infelizmente, com tantas histórias para contar em tão pouco tempo, a edição final do filme não traz uma reconstituição completa do visual lindo e complexo que o artista criou para o “Falso Brilhante. Mas, sem dúvida, ele está lá, muito presente.
PS2: Elis, de Hugo Prata, está pronto e é emocionante. A atriz Andreia Horta – vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Gramado de 2016 por seu papel no filme – dá um show de interpretação, trazendo de volta à vida, de maneira impressionantemente convincente e realista, o sorriso largo, as inseguranças e os conflitos da grande cantora Elis Regina. Seus companheiros de tela e de vida também encantam e nos deixam em estado de graça e nostalgia. É ver para crer, cantar e chorar. Apenas uma ressalva: que seja em uma boa e confortável sala de cinema, numa tela bem grande, com projeção de qualidade e som de primeira, mesmo que custe caro. Em cartaz a partir de 24 de novembro próximo, em todo o país, Elis é diversão garantida para todos os públicos e pano para manga nas discussões sobre a história da música popular brasileira.
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Vejam o trailer do filme:
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LADO A
1. Como Nossos Pais
(Belchior)
2. Velha Roupa Colorida
(Belchior)
3. Los hermanos
(Atahualpa Yupanqui)
4. Um por Todos
(João Bosco – Aldir Blanc)
5. Fascinação (Fascination)
(F. D. Marchetti – Maurice de Féraudy/versão: Armando Louzada)
LADO B1. Jardins da Infância
(João Bosco – Aldir Blanc)
2. Quero
(Thomas Roth)
3. Gracias a la vida
(Violeta Parra)
4. O Cavaleiro e os Moinhos
(João Bosco – Aldir Blanc)
5. Tatuagem
(Chico Buarque – Ruy Guerra)
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*As charges e os detalhes do episódio do desentendimento com Henfil estão no livro Furacão Elis, de Regina Echeverria (Rio de Janeiro: Nórdica, 1985. p.154-155).
**Para informações completas sobre o show, seu contexto e importância na obra e na carreira de Elis, ver: Em Busca do Falso Brilhante. Performance e projeto autoral na trajetória de Elis Regina (Brasil 1965/1976), de Rafaela Lunardi (dissertação de mestrado, Faculdade de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2011). Disponível aqui.
***Para realizar esses espetáculos, que ficaram na história, Maria Bethânia fez uma acertada parceria com o criador e diretor de teatro Fauzi Arap e com múltiplo artista Flávio Império, diretor de arte, cenógrafo e figurinista. Juntos, Bethânia, Fauzi e Flávio, por exemplo, realizaram os memoráveis Rosa dos Ventos (1971), A Cena Muda (1974) e Pássaro da manhã (1977).
***Para realizar esses espetáculos, que ficaram na história, Maria Bethânia fez uma acertada parceria com o criador e diretor de teatro Fauzi Arap e com múltiplo artista Flávio Império, diretor de arte, cenógrafo e figurinista. Juntos, Bethânia, Fauzi e Flávio, por exemplo, realizaram os memoráveis Rosa dos Ventos (1971), A Cena Muda (1974) e Pássaro da manhã (1977).
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Ouça o LP na íntegra aqui:
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Parabéns Helena!Competência admirável.Texto fantástico.
ResponderExcluirLeo, teus convidados são bárbaros!
muito obrigada pelo comentário!!! beijoooo
Excluire pela leitura, claro!
ExcluirValeu, anônimo! Concordo. Faltou só se apresentar. rs
ExcluirAbraço,
Léo.
Léo adorei esta ante sala do filme Falso Brilhante, fiquei a saber coisas sobre Elis que não sabia e que são importantes para quem é sua fá desde o primeiro som. Em Portugal sempre A veneramos . Helena Tassara foi brilhante nesta crónica obrigada.
ResponderExcluireu é quem agradeço por sua leitura e elogios, Rossas!
ExcluirHelena, a "Rossas" é a portuguesa Mi Vilela. Valeu, Mi!
ExcluirBeijos,
Léo.
eita! com pseudônimo fica difícil... rs!
ExcluirEla tinha me avisado em comentário anterior. rs
ExcluirFiquei muito contente de ver um texto sobre esse disco. Ainda mais pela altíssima qualidade da análise e do escrito. Também as informações são valiosas.
ResponderExcluirGosto de pensar que uma das muitas subcorrentes que se mexem lá no fundão do Falso Brilhante é o prog rock inglês: nos arranjos não lineares da bateria, com mudanças bruscas de compasso (Um por Todos; O Cavaleiro...). Mas essa turma da Elis foi esperta o bastante para (1) evitar os conhecidos excessos dos camaradas ingleses e (2) regionalizar essa influência. Falso Brilhante é um disco muito menos datado e muito mais brasileiro do que se poderia esperar. Elis teve músicos à sua altura, isso é uma felicidade que devemos sempre reconhecer.
Obrigado pelo texto. Parabéns & escreve mais!
opa! podexá Eduardo! gostei de seus comentários musicais sobre arranjos etc. aprendi muito! obrigada!
ExcluirValeu, Eduardo! Faço minhas as palavras da Helena. Por falar nisso, taí, Helena, quando quiser publicar por aqui novidades o espaço é seu.
ExcluirAbreijos,
Léo.
Camarada, este blog é espetacular. Quero morar aqui dentro!
Excluirops! vou considerar... com prazer!
ExcluirConsidere, sim, Helena!
ExcluirEduardo, traga as malas! rs
Nossa... o texto de uma maestrina!
ResponderExcluirG.I.
Muito obrigada, G. I. ! beijoooooooo
ExcluirValeu, G.I. Volte sempre.
ExcluirAbraço,
Léo.
e G.I. é meu querido amigo Gerald Iensen, jornalista e poeta/escritor maranhense!
ExcluirHahaha! Empatamos. Bem-vindo, Geraldo.
ExcluirSensacional!
ResponderExcluirNé não, Curcinha? Valeu!
ExcluirBeijos,
Léo.
só amor! obrigada vanessa! <3
ExcluirSó love, só love!
Excluirmagnifica ,barbara só dois dos inúmeros adjetivos a cronista deste blog...parabéns Helena!!!!!
ResponderExcluirValeu, Jamms! Volte sempre!
ExcluirAbraços,
Léo.
Muito obrigada por suas palavras Jamms!
ExcluirBelo texto - Quanto ao filme,que muitos não gostaram,eu também gostei muito.Quanto ao show ''Falso Brilhante'',uma pena não ter um registro audio-visual-completo.
ResponderExcluirUma pena mesmo... e muito obrigada pelo comentário Ademar!
ResponderExcluirLeozim e Helena, não havia lido, na época, este fabuloso texto, tão cuidado e minucioso. Amei a leitura, apesar de estar sempre acompanhando a trajetória de Elis. Claro que por isso tenho algumas discordâncias com o que foi posto, devido ao "enterro" feito e no que resvalou tal acontecimento.
ResponderExcluirDevo escrever sobre um outro disco da Elis, e é exatamente o ponto da sonoridade colhida por Cesar e Elis para o disco anterior, Elis (1973), em que ela já fazia a devida apropriação de sua autoria no repertório, em som e canção, o que deu a ele o personalíssimo necessário ao artista. Neste disco ela já se apropriava do progressivo à brasileira num repertório, senão completamente, imensamente brasileiro (prefácio ao Falso Brilhante), em que cantava Cabaré e outras canções que "peitavam" o sistema, junto a interpretações determinadas e "definitivas", pelo modo Elis, para canções do clássico da música brasileira.
Por este motivo, detive-me a não concordar que o Falso Brilhante é que seria o redimir de Elis frente ao público mas, neste disco que cito, ela ainda está sob forte ataque de todos os lados. Críticos disseram que era técnico demais, as pessoas não ouviam as canções que, como ela diz no programa Ensaio: "Quem mudou fui eu, não foram as canções", certamente pelo autorrigor estético com que ela havia então se comprometido.
É como uma forma de defesa a Elis que venho falar sobre este disco anterior, pois não creio que uma artista no seu nível viesse a se comprometer, abraçando à ditadura.
Fora isso, Helena, agradeço demais pelo seu texto que me abraçou e trouxe até detalhes que não sabia. E mais, a grandeza com que foi escrito: que esmero, que fabuloso! Virei fã!
Léo, parabéns por ter trazido Helena pro seu espaço, que é tão bem-vinda que merece uma outra participação.
Beijos procês. Parabéns pelo maravilhoso texto. Vai ser guardado com carinho!
Érico, queridão, assim como você Helena é um baita presente que eu, o blogue e os leitores ganhamos. Vou até dar um toque pra ela ler seu comentário.
ExcluirAh, só um detalhe: este não é o primeiro dela aqui não. Há também um sobre o Belchior (o link: https://oxdopoema.blogspot.com/2014/02/ga20-alucinacao-de-belchior-por-helena-tassara.html) que vale muito a leitura.
Abraços, queridão,
レオ。
que bom ler seu comentário. vou reler o texto que escrevi. quem sabe concorde com você?
Excluircomo dizia o prof. Darcy Ribeiro: não tenho compromisso (no sentido de apego) com as minhas ideias. posso muito bem mudar de opinião!
aguardamos ansiosos seu texto!
beijo e obrigada pela leitura!
Helena, o Érico já escreveu o primeiro, sobre a banda pós-Beatles do Paul, os Wings (aqui: http://oxdopoema.blogspot.com/2018/12/ga48-a-vida-selvagem-dos-wings.html).
ExcluirBeijos,
レオ。
PS: Quando vem o terceiro? rs
Helena, eu também sou completamente aberto à mudança de opinião, aliás, quando há um argumento que me faça mudar, eu celebro. Sempre crescimento de conhecimento, evolução de argumentação, de percepção.
ExcluirO tal disco que cito, de 1973, até aparece na nova "série" em que o filme foi adicionado de cenas inéditas do filme e suas atuação (da Elis). E é o próprio Cabaré, em que ela canta as metáforas do Aldir: "Um Cuba Libre treme na mão fria ao triste apocalipse da agonia".
Nós (brasileiros) somos tão passionais que não vemos determinados brilhos no tempo em que eles acontecem. Este disco que comentarei é sim um grande momento para a carreira da Elis, que sai de "músicas fáceis" e resolve abater/combater a ditadura pelas tais metáforas, o que nos trouxe um momento de grande produção lítero-musical, além das grandes canções. Claro!
Falso Brilhante é o apogeu da Elis, inquestionavelmente, pois estava tudo já redescoberto, sua linguagem estava madura e o público voltava a ter porosidade ao que ela apresenta, sem dúvida. Meu único lamento é ter sido somente um disco, quando se sabe de tantas pérolas incluídas no espetáculo, tal qual Transversal do Tempo, que na contracapa prometia o segundo disco do espetáculo, e nunca saiu. (Caetano Veloso fez um belíssimo texto a respeito do Falso Brilhante).
Ainda bem que Elis também foi sempre maravilhosa em torno do repertório, teve a sorte de um César a fazer arranjos e músicos maravilhosos, e seu talento expressivo e verdadeiramente brilhante.
Estarei atento a seus textos - vou ler o do Belchior.
Beijos pra você e pro Leozim