quinta-feira, 9 de abril de 2015

Os manos e as minas: 19) Traçando um paralelo entre "A marca humana", de Philip Roth, e meu "Filho da preta!"

Eu sempre fui um cara tímido. Aliás, mais que tímido, covarde. De repente, descobri que as palavras poderiam me levar a enveredar por arriscados caminhos pelos quais eu jamais pensara que pudesse ir... E com (quase) total segurança. Foi então que elas me transformaram num fanfarrão. E assim me tornei compositor. Ou melhor, letrista de música popular (como bom covarde, minhas melodias são bissextas). Mas aí, sob o jugo da coragem de que as palavras me revestiam, inventei de escrevinhar. Primeiro, contos; depois, crônicas; e, por fim, um romance. Mas não foi algo que eu tivesse elaborado, pensado, ansiado... Foi apenas algo que acabou por ser tão natural quanto respirar, comer, defecar, trepar...

Fazer escolhas na vida (e arcar com suas consequências) nunca foi uma coisa fácil. Cresci numa família de nordestinos católicos. Primeiro, deixei de ser nordestino, ou seja, reneguei minha origem; depois, afastei-me do catolicismo, ou seja, reneguei a "segunda" origem de minha família. Anos depois, dei à luz (no lugar de um tão esperado – por meus pais – neto) um romance que poderia ser lido/visto como a antítese da filosofia familiar (se é que havia alguma). Tanto que, no dia do lançamento do livro, tive coragem de convidar apenas uma prima, que já o havia lido antes do prelo. E então me vi numa sinuca de bico: o romance era extremamente corajoso, polêmico até; já eu continuava sendo um covarde, e adiava o momento de ele cair nas mãos de meus parentes.

Não podendo congelar o tempo, ainda receoso comecei a experiência por alguém que, dentre meu frágil circuito literário familiar, tem mais familiaridade com a leitura: minha cunhada, a quem regalei um exemplar. Meses se passaram, e nem um pio da parte dela. Tomei coragem e lhe escrevi, pra sondar. Suas vagas palavras foram: "Por favor, não fique chateado. Achei alguns pontos legais, mas a história é pesada em seu contexto geral." Touché! Engoli a crítica, depois pensei que realmente ela tinha mesmo mais a desgostar do livro que a gostar... Talvez porque este trate de um tema que, de um modo ou de outro, não está tão longe dela, que sempre morou na periferia e pertence a uma família com forte mistura racial. Cheguei a essa conclusão não por julgamento, mas após alguma reflexão.

Faz-se necessária uma explicação ao leitor que chegou aqui desavisadamente. Resumindo, lancei recentemente pela Editora Reformatório meu primeiro romance, Filho da preta!, cuja sinopse vai a seguir: no dia em que completa 50 anos, Isidoro, bêbado, resolve abrir o coração a um visitante misterioso a quem conta sua vida inteira, desde o dia em que fugiu da pernambucana Vitória de Santo Antão com 18 anos rumo a São Paulo (onde teve muitas profissões, muitas mulheres e muitas experiências) até o dia de seu cinquentenário. O motivo de sua fuga? Queria viver vida de branco! Filho de mãe negra e pai branco, quis o acaso que ele nascesse com a epiderme clara... Ah, e nesse fatídico dia da narração ele descobre que sua filha de 12 anos está estatelada no banheiro, morta. Quem narra a história é o próprio Isidoro, com sua peculiar prosódia. 

Isto posto, vamos a Philip Roth. Minha amiga Helena Tassara, após ler meu livro (leia seu relato sobre ele aqui), contou-me que durante a leitura se lembrou bastante de um romance do supracitado autor que abordava o mesmo tema, A marca humana. Copio suas palavras: "E me surpreendi comigo mesma, ao ler seu livro, por nunca ter feito uma reflexão comparativa entre a realidade brasileira e a norte-americana sob esse ponto de vista. Achei muito relevante e importante a perspectiva que a leitura do seu livro me colocou nesse sentido." O engraçado foi que, ao ler outro livro dele, O complexo de Portnoy, eu já havia tido essa mesma impressão. Portnoy é uma espécie de versão judia (e melhorada) de meu Isidoro. Só que essa tal "marca humana" eu ainda não havia lido.

Como Helena falasse maravilhas do livro, resolvi encarar a leitura. Já escrevi neste espaço que sempre achei Philip Roth um autor supervalorizado. Pois bem, hoje é chegado o momento de eu morder a língua. Minha desculpa é que devo ter começado pelos livros errados. Os dois primeiros que li dele achei assim-assim. Porém, ao ler O complexo de Portnoy (logo na sequência do lançamento de meu FDP!), vi nele algo novo, corajoso: um autor judeu expondo num romance sua própria raça pegando pesado nas tintas, com altas doses de ironia e sarcasmo, chegando ao extremo de detalhar taras e características sexuais recônditas dos seus (e isso em 1969!). Terminei a leitura maravilhado e, confesso, um tanto aliviado. Se ele expunha assim sua raça, por que eu não poderia fazer o mesmo com meu romance? 

Só que aí veio o balde de água fria: Roth é um judeu retratando judeus. Já eu sou um branco retratando um negro. E foi então que A marca humana veio me redimir. Nele, Roth, judeu e branco, conta a história de Coleman Silk, um negro de pele clara que, no intuito de ascender profissionalmente, vira as costas a sua família e resolve... viver vida de branco (e mais, faz-se passar por judeu)! Ou seja, mais ou menos como meu Isidoro. A diferença mais evidente entre as duas personagens é que Isidoro é um sujeito de poucas letras e menores ambições, só quer se ver livre do preconceito; já o tal Coleman é um ambicioso intelectual que acaba se transformando num renomado professor universitário. E, mais, aos 79 anos começa uma relação com uma faxineira de 35 anos e... analfabeta!

Hoje, lendo sobre um negro de 50 anos que, desarmado, ao fugir de um policial (branco), levou deste oito tiros pelas costas (obviamente) e morreu (na Carolina do Sul-EUA), tomei coragem (eu, o covarde) pra retomar este texto, que estava inconcluso fazia várias semanas. Sim, infelizmente livros com essa temática racial ainda são necessários, na pior das hipóteses ao menos pra gerar debate. Assim como eu, quando criança, reneguei minhas raízes nordestinas pra fugir do preconceito, ainda há muitos Colemans Isidoros por aí que são capazes de renegar o passado e a família em busca de um pouco de dignidade. E tantos outros, que não têm como camuflar a cor da pele, continuam recebendo um tratamento "diferenciado" não só da polícia, mas também da sociedade.

Agradeço, pois, a Helena, por me induzir a ser seduzido por tão impactante leitura, e aplaudo a coragem de Philip Roth, que, por meio de seus livros, tem me ensinado a ser um pouco menos covarde (ao menos literariamente). Afinal, seu A marca humana pode ser visto (e lido) como o pai de meu Filho da preta!. E quem escreve sabe que, quando a coisa anda preta lá fora, tons de cinza apenas maquiam a realidade.

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PS1: Você tem três opções pra adquirir o Filho da preta!: 1) entrando em contato comigo; 2) pelo site da Reformatório (aqui); ou 3) na Livraria Cultura (aqui).

PS2: Pra adquirir os livros de Philip Roth, você tem uma infinidade de opções.

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2 comentários:

  1. Que experiência dulcificante, deve ter sido essa, aí.
    Identificar-se, sempre traz alguma coisa de brandura.
    Quanto ao fato de você ser uma pessoa branca, criadora de um personagem negro, em nada desqualifica tua obra. Isso sempre aconteceu com muita frequência, mas com negros e negras na, massificante, maioria das vezes, retratados de forma estereotipada, e você passa além disso com uma baita habilidade.
    Lógico, quero ver mais negros e negras escrevendo e publicando, e outras minorias, em outros espaços de empoderamento, também.
    Como já disse, sou otimista, acredito, é que, a toda mudança antecedem processos bem dolorosos. Né não?
    Beijo e até logo mais!

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    1. Estou de acordo, Vanessa. Também procuro agir com otimismo (apesar de haver momentos em que a bateria descarrega), e espero ver no Brasil mais autores negros (não só tratando de personagens negros). Ah, e também concordo que tais processos costumam ser dolorosos, mas vale a pena passar por eles.

      Beijos,
      Léo.

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