Não sou capaz de jurar, mas acho que essa grande bobagem começou na época em que José Sarney herdou a presidência do Brasil e começou com aquele papo de "brasileiros e brasileiras": De lá pra cá, a coisa só piorou... Já houve entre nós um tempo em que se desejava "paz na terra aos homens de boa vontade"; um compositor popular cantava "esses moços, pobres moços"; cheguei a assistir a um clássico do faroeste que se chamava Da Terra Nascem os Homens; na literatura, fez muito sucesso por estas plagas o romance Capitães de areia; uma peça muito famosa foi intitulada Os pequenos burgueses; havia mesmo um provérbio (se não me engano, árabe) que dizia que "os cães ladram e a caravana passa"; um poeta escreveu "eles passarão, eu passarinho"; etc. etc.
O tempo passou, o mundo mudou, as mulheres subiram uns poucos degraus na escadaria que leva à igualdade de gêneros, chegou o politicamente correto (pra ficar?), a tecnologia transformou-nos em digitadores de dois dedos conectados 24 horas por dia etc. e tal, mas a verdade é que, apesar dos muitos avanços e conquistas, vários de nós sentimos calafrios antes de abrir a boca pra proferir algum pensamento genuinamente nosso, com medo de que venhamos a ferir os brios de outrem. A afirmação vale também em se tratando de pensamentos por escrito. Sempre podemos esbarrar numa dessas palavras não exatamente benquistas (uma amiga recentemente foi chamada de racista por usar a palavra denegrir!). Algumas delas caducaram, outras mudaram de sentido (boceta já foi uma bolsa; cacete já foi um cara chato), outras ainda chegaram com força total...
E, entre essas tantas mudanças, algumas delas me parecem até um tanto contraditórias. Notem que nossa presidente exige que a chamemos presidenta, pra que as mulheres se sintam mais orgulhosas do feito daquela nunca antes alcançado em nosso país. Em contrapartida, quase toda poetisa que conheço exige ser chamada de poeta; a explicação é que a palavra poetisa, com o tempo, perdeu sua força e hoje alcunhar uma mulher com tal palavrão parece algo pejorativo. Assim, essas tantas versejadoras moçoilas só se sentem poetisas de fato se forem chamadas de... poetas! Pensando nisso, não tenho como não me lembrar de Vinicius de Moraes, que era um poeta tão maiúsculo e ainda assim era chamado por todos, carinhosamente, de poetinha.
Mas não percamos o foco: o que queria dizer é que o que define o peso de uma palavra é a magnitude de quem é alcunhado com ela. Voltando a Vinicius, a palavra "poetinha" era por ele engrandecida, ganhava novo status. Agora, se chamamos um desses poetas mequetrefes de poetinha, o sujeito, com toda razão, vai se sentir ofendido. Assim, o importante não é a presidente conseguir o direito de ser chamada de presidenta; o que importa é que ela dê a volta por cima e termine seu segundo mandato com a aprovação que tinha quando iniciou o primeiro. Da mesma forma, se uma fazedora de versos for ruim, tanto faz ela ser poetisa ou poeta, será sempre menor. Aliás, Cecília Meireles, Cora Coralina, Adélia Prado, Lúcia Santos, Elisa Lucinda, entre outras tantas, sempre serão grandes poetisas.
Seguindo nesse raciocínio, e pensando nos plurais atuais, aplicando o reverso do modelo vigente não exagero em dizer que Elis Regina não foi apenas uma de nossas maiores cantoras (se não a maior), mas esteve no alto da pirâmide entre nossos maiores cantores em geral, independente do sexo. Outra de nossas (nossos) grandes deu um título muito acertado a um de seus discos: Plural. Obviamente, estou me referindo a Gal Costa (num tempo em que ela ainda não estava cansada de procurar boas canções novas). Tenho cá comigo que quem realmente é plural não deve ter medo de gênero. Pra descontrair, conto que um amigo que mora nos EUA, ao ver as fotos do lançamento de meu livro, me escreveu: "De calça rosa? Cê tá mudado, hem?" Ao que eu respondi: "A calça era salmão, mas entenda uma coisa: artista não tem sexo."
Não que eu seja assim tão plural... Quer dizer, com meus dois neurônios já posso me sentir pertencente a esse seleto grupo, não? Entretanto (e entrementes), enquanto os plurais são singulares, pra lá dos plurais temos o anal, o bacanal (e o bacalhau), o Carnaval, o descomunal, o excepcional, o fenomenal, o germinal, o habitual, o imoral, o Juvenal, o letal, o mau, o neandertal, o ordinal (e seus ordinários... e ordinárias), o pica-pau, o qual, o racional (e os Racionais MC's), o sensacional, o triunfal, o umbilical, o vital, o xexéu, o zodiacal... e seus respectivos femininos (e femininas). Ultimamente, por exemplo, tenho revisado muito material em que aparecem meninos(as), professores(as), senhores(as)... Se bem que, pensando bem, o "senhoras e senhores" sempre foi utilizado, mas não exageremos, né?
Senão vai virar um tal de desejar "paz na terra aos homens e às mulheres de boa vontade"; os novos cantores populares vão cantar "esses moços e essas moças, pobres moços e moças"; farão um remake do supracitado faroeste que se chamará Da Terra Nascem os Homens e as Mulheres; na literatura, reeditarão o romance de Jorge Amado como Capitães e capitãs de areia; a tal peça de Górki, quando for reencenada, vai ganhar o charmoso título de Os pequenos burgueses e as pequenas burguesas; aquele provérbio supostamente árabe vai passar a dizer que "os cães e as cadelas ladram e a caravana passa"; etc. etc. Em compensação, pensando no poeta, vou ter fé que "eles e elas passarão"... enquanto eu continuarei passarinhando.
Peço perdão aos leitores... e às leitoras (AAAAAAAHHHHH!!!!) por essa quantidade tão plural de bobagens.
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PS1: Outra vez, quem escolheu a palavra fui eu.
PS2: Trilha sonora – Caetano Veloso, Falou Amizade (Caetano Veloso)
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Apenas aumentando a lista dos plurtais: Vinicius de Moraes, o Poeta Plural! Ele era vários!
ResponderExcluirBeijo e Luz!
Tato Fischer
Tato, isso me fez lembrar que no "Samba da Bênção" o próprio Vinicius pede a bênção a outro plural, Moacir Santos, que ele dizia que "não és um só, és tantos".
ExcluirBeijão,
Léo.