sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A Palavra É: 21) Mato

Ah, que saudades do mato! Do matagal, do mato verde, do mato sem cachorro (ou com cachorro), de me esconder no mato, de correr no mato, de deitar no mato, de brincar no mato... Sim, jovem leitor, o mato, além de servir de parque, era também o próprio brinquedo! E a gente nem precisava pôr pra carregar depois; ele é que nos carregava pra lá e pra cá pela vastidão de sua verdura. O mato era foda! Nele, podíamos inventar mil diabruras, travessuras, aventuras... e outras safadezas e sacanagens que não rimam com "ura". Também não era necessário ligá-lo antes do uso, tampouco desligá-lo depois deste. O mato fica ficava ali, on, o tempo todo, e, quando íamos embora, permanecia, majestoso, numa espécie de modo de espera... ops, traduzo: stand-by. Era uma matavilha! E sem a limitação geográfica das atuais quatro paredes. Nem nos cansava a vista, apesar de ser vasto!

E podia ser visto ainda (quase intacto) até os tempos de minha adolescência. Depois, ele foi sendo desmatado, calçado, asfaltado, pichado, e eis que o mato praticamente não passa hoje de uma lembrança dos tempos de criança. Atualmente, ele, onde há, vive na moita, escondido ou baldio por detrás de muros cada vez mais cinza. Claro, o mato ainda pode ser apreciado em velhos filmes ou em algumas cidades do interior que ficam a uma eternidade de distância do século XXI, perdão, 21 (faz um 21!). O mato, não tendo sido tombado pelo Patrimônio Histórico da Natureza – muito pelo contrário –, levou o maior tombo! Arrancaram-no e plantaram em seu lugar árvores esquisitas, enormes, feitas de cimento e metal, de cujos galhos brotam uns frutos estranhos chamados pessoas. Que, aliás, não fazem a menor ideia do que havia antes de essa árvore ter sido plantada ali.

O verde do mato foi, primeiro paulatinamente, depois desarvoradamente, dando lugar à chamada selva de pedra. E isso me lembrou uma canção de uma banda estadunidense, não coincidentemente chamada Guns N' Roses, que dizia assim: "Welcome to the jungle/ We got fun and games/ We got everything you want/ Honey, we know the names/ We are the people that can find/ Whatever you may need/ If you got the money, honey/ We got your disease", que em tradução meia-boca googliana (ligeiramente por mim adaptada) diria: "Bem-vinda à selva/ Nós temos diversão e jogos/ Temos tudo o que você quer/ Querida, sabemos os nomes/ Nós somos as pessoas que podem encontrar/ Tudo o que você pode precisar/ Se você tiver dinheiro, querida/ Nós temos sua doença." (veja o clipe aqui) Bingo! E aqui estamos nós, sem dinheiro, mas já devidamente adoecidos.

E pisando em solo infértil e impermeável, que, por não absorver a água, gera poluídos rios artificiais onde nadam desavisados transeuntes e esquecidos veículos (entre outras coisas) sempre quando a chuva inventa de cair. Verde, pra nós, quando muito, é a cor da camisa do Palmeiras, e olhe lá. E mais: se houver verde nos muros, bora lá pintar de cinza, pra combinar com o céu plúmbeo e nosso coração gris. A propósito, e ao contrário da canção dos rapazes das armas e rosas, o velho Caetano Veloso compôs uma pequena pérola que diz assim: "Não sei onde aprendi a cantar/ Só sei que não consigo esquecer/ Cantiga vem do céu/ Vem do mato e vem do mar/ Faz o meu coraçãozinho doer." (ouça-a aqui, na voz de Gal) Sorte sua, Caetano. Os novos compositores, se afirmassem o mesmo sobre suas canções, estariam mentindo (ou pensando em ganhar uma grana nalgum dos muitos festivais do interior brasuca).

Pensando bem, maldade minha. O compositor pode falar de mato metaforicamente. E, como hoje estou nostálgico, lembrei-me agora do velho Agepê, que em sucesso antigo ilustrou bem o que digo. Saca só: "Quero ir na fonte do teu ser/ E banhar-me na tua pureza/ Guardar em pote gotas de felicidade/ Matar saudade que ainda existe em mim/ Afagar teus cabelos molhados/ Pelo orvalho que a natureza rega/ Com a sutileza que lhe fez a perfeição/ Deixando a certeza de amor no coração/ Deixa eu te amar/ Faz de conta que sou o primeiro/ Na beleza desse teu olhar/ Eu quero estar o tempo inteiro/ Quero saciar a minha sede/ No desejo da paixão que me alucina/ Vou me embrenhar em densa mata só porque/ Existe uma cascata que tem água cristalina/ Aí, então, vou te amar com sede/ Na relva, na rede, onde você quiser/ Quero te pegar no colo/ Te deitar no solo e te fazer mulher." (ouça-a aqui) Quer melhor jeito de falar de mato que falar da mulher dele, a mata?

Ah, mas o que estará pensando o velho mato, esse ancião inofensivo de verdor imato e cheio de seiva nas veias? Estará careca e amarelento cofiando sua barba e pensando no passado, em seus tempos áureos, digo, verdes? Onde estará morando hoje? Será um ermatão, um matosalém, será ainda leito de patos-do-mato e/ou outros animais (assim como ele) em vias de extinção? Cantará velhas cantigas mato-grossenses? Ou, quem sabe, tê-lo-ão já matado de vez? Ah, velho mato, você, que nunca fez mal a ninguém... Terá sido este seu crime? Fosse, em vez disso, um pântano permeado de areia movediça, quiçá o houvessem deixado em paz; mas não, você sempre foi dócil, sempre deixou que qualquer desconhecido deitasse sobre você na maior sem-cerimônia... e deu no que deu. Martirizaram-no, mataram-no, escalpelaram-no, arrancaram sua bela juba de leão sem dentes...

Mas além do mato há as consequências do ato; as orações do beato; as mentiras do candidato; as cartas que eu não dato (nem escrevo mais); as vaidades do estrelato; os que vão às vias de fato (seja em português do Brasil ou de Portugal); os humanos que gostam de gato (aaagh!); as distâncias do hiato; as cabeçadas do insensato; a erudição do literato; os que não terminam o mandato (por bem ou por mal); os que trol(l)am (verbo novo) o novato; os que perdem o olfato; os que desacatam o pacato; os que caem de quat(r)o; os que roubam o nome ao rato; os que pertencem a um sindicato; os que não têm o menor tato; os que apelam pro ultimato; os que cantam com vibrato; os que são tão chatos que chegam a ser xatos; e os que me zoam por não ter conseguido achar rima em "ato" começando pela letra z. A estes, eu perdoo, não mato, porque sou poeta, e poeta que, ademais, quando fala de mato sabe do que está falando.

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PS1: Estava eu querendo escrever algo e sem ideias, quando, à queima-roupa, pedi a minha amiga Solange Rocco que me dissesse a primeira palavra que lhe viesse à mente. E ela disse. Esta prosa, pois, é em parte culpa dela.

PS2: E, pra ficar tudo em casa, a trilha sonora que escolhi (ademais das supracitadas) é de um mano que entende do riscado: Adolar Marin, Paisagem (Adolar Marin).


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