Cada geração tem suas emoções e a trilha sonora que embala suas paixões, mas temo que hoje, com a vulgarização da música e as facilidades de acesso digital a ela, a relação que os amantes tenham com a canção haja mudado – e pra pior. Em minha época, a canção estava intrinsecamente ligada ao ato de se apaixonar, e de forma quase religiosa, quiçá mais. É possível que eu esteja menosprezando essa relação nos dias de hoje, mas uma coisa é certa: só quem foi jovem no tempo dos vinis sabe do que estou falando. E, mais que isso, deve neste exato momento estar se lembrando com uma nostalgia danada de um punhado delas. As lembranças nos vêm às vezes com cores, cheiros, até mesmo com dores tão reais que chegam a ser quase físicas, e, obviamente, com sons de canções que parecem estar tocando no exato momento em que nos lembramos de certas passagens de nossa vida. Ah...
É o caso de minha relação com este disco, que começou em 1985, ano de seu lançamento. Na época, eu, com imberbes 13 anos, era dado a paixões platônicas que eram tão intensas quanto passageiras. Fazendo as contas, acho que na ocasião estava eu no então ginasial, na 7ª série, e, mezzo astigmático, mezzo míope e muito desmiolado, resolvi me apaixonar logo pela garota mais bonita da classe, que se chamava Carla (viram?, ainda me lembro de seu nome!). Só que essa fulana era tão cheia de si mesma que deixava transparecer que não existia ninguém na face da Terra (ou pelo menos em nossa escola) que merecesse um centavo de seus sentimentos. O que, em meu caso, vivendo uma paixão sabidamente (por mim) impossível, era algo que ao menos me deixava menos triste achando que, parafraseando Chico, "se vós não sereis minha, vós não sereis de mais ninguém".
A canção que a resumia ainda não existia, Arnaldo Antunes só a comporia anos depois ("Desce do trono, rainha/ Desce do seu pedestal/ De que te vale a riqueza sozinha,/ Enquanto é Carnaval?/ Desce do sono, princesa/ Deixa o seu cetro rolar/ De que adianta haver tanta beleza/ Se não se pode tocar?"); em compensação, Guilherme Arantes havia composto, na falta de uma, duas que eu me acabava de ouvir no rádio pensando nela. A primeira, Cheia de Charme, era arrebatadora, já na introdução seus enlouquecidos metais me dilaceravam o coração, mas ouvindo-a eu entrava numa espécie de transe e por cerca de quatro minutos tinha a ilusão, mais do que isso, a certeza de que ela era minha e de que Guilherme falava de nós dois (inocente, sabe nada!). Detalhe: como eu ainda não trabalhava, o jeito foi comprar uma fita, esperar a canção tocar no rádio e gravá-la, pra poder ouvi-la um trilhão de vezes.
Na sequência, estourou a segunda, esta mais condizente com minha realidade: Fã Número 1 ("Você nem desconfia/ E o que eu não daria por seu amor/ Onde você anda/ Nem sei como chamo a sua atenção/ Que eu existo/ Aposto que pode dar certo/ Esse romance aberto dentro de mim/ Você nem imagina que eu te inundaria/ Toda de som"). Como vocês já devem ter adivinhado, não deu certo, e, se a primeira canção me iludia e extasiava, esta me levava às lágrimas e ao desespero. E, por falar em lágrimas, imagino que essas tantas que verti, ora por Carla, ora por outras, foram inconscientemente me levando desaguar num mar onde pouco mais de uma década depois o compositor se afogaria, como bem retrata outra canção (esta, de três amigos) que diz que "todas as minhas lágrimas/ Correm pro mar/ Por isso que o mar é salgado, meu amor,/ De tanto eu chorar".
Carla se foi de mim sem dizer adeus, o tempo passou e eis que, três anos depois, agora com 17 anos eu caía de amores por outra garota. Só que então minha fase platônica já parecia ultrapassada, e eu me deparava com um feliz (e curto) período de paixões correspondidas. Foi nessa época que conheci Adriana, uma paraense como dizem lá "pai d'égua"! Deu-se assim: Adriana, irmã mais nova de uma vizinha minha, veio a Sampa por vez primeira passar as férias escolares na casa da irmã mais velha – esta casada e com filhos pequenos. Foi amor à primeira vista – e à queima-roupa! Quando meu olhar caiu no dela, eu até me esqueci de piscar, fiquei ali paralisado como se meu corpo tivesse perdido o controle sobre as funções motoras. E ela me sorriu! Ah, e que sorriso... Ela era dessas que sorriem de orelha a orelha, e seu sorriso transbordou dentro de mim, quase me levando... às lágrimas!
Em pouco tempo, engatávamos um namoro que, ao que tudo indicava, parecia ser sério. O tempo livre que tínhamos, procurávamos passar juntos; era um grude só. Era dezembro, e, por fazer parte da trilha sonora internacional de uma novela (a saber: Bebê a Bordo), uma canção emplacou nas rádios: Build, de uma banda inglesa chamada The Housemartins. De tanto que tocava, naturalmente virou a trilha sonora de nosso romance. Pra quem não a conhece, uma informação chistosa: o vocalista dessa banda, no refrão, cantarolava algo que ninguém entendia, mas que se assemelhava (em português) à palavra "papel", assim que muita gente a batizou de Melô do Papel. Pesquisando pra este texto, fiquei sabendo que ela inclusive saiu em algumas coletâneas de qualidade duvidosa com esse jocoso apelido. Ah, voltando: Adriana chegou a me presentear com o LP da trilha da novela, que continha essa canção, carimbando-a assim como trilha sonora oficial de nosso namoro – o que hoje vejo como ironia do destino.
Vocês estarão se perguntando, pois, onde entra o tal disco de Guilherme na história, não? Calma, que eu chego lá! Aconteceu o que eu temia, mas sabia ser inevitável: o período de férias acabou e seu fim levou de mim a doce Adriana. Fizemo-nos juras e promessas de amor eterno, choramos muito e quase brigamos ao entrar num tema delicado: ela, mais que a mim, amava sua Belém natal; portanto, já foi enfática num ponto: se nossa relação se dirigisse pra algo mais sério, eu teria que fazer as malas e me mudar pra lá – sim, leitores, já discutíamos a hipótese de um casório! O problema era que eu, embora não amasse Sampa tanto assim, fosse por cagaço, imaturidade ou teimosia, por minha vez também não abria mão de morar em minha cidade, e perto de meus pais. Assim, a relação sobreviveu ainda alguns meses, nos quais chegamos a nos comunicar por cartas(!), mas a distância geográfica tratou de pôr nela um rotundo ponto final.
Sou péssimo em datas, assim não saberia dizer se comprei o disco de Guilherme (então, eu já trabalhava e podia me dar a tais luxos) antes ou depois de ela ir embora, o fato é que, se a Melô do Papel embalou meus dias felizes, as pungentes canções desse disco vieram a embalar meus dias tristes. Mas não se trata de figurinha repetida, NÃO! Cada musa merece sua(s) música(s); portanto, não foram aquelas que embalaram minha relação platônica com Carla as que eu ouvia nessa nova fase. Agora, eu descobria outras pérolas do disco, como Você Faz a Moda ("Eu andava à sua procura/ Incapaz de te inventar/ Mas qualquer hora é hora/ Põe tudo pra fora/ Eu quero escutar"), Férias de Verão – obviamente – ("Em que praia abandonada eu te achei/ Em que beira de estrada te deixei/ Em que ano do colégio te conheci/ Em que férias de verão te esqueci/ Logo na primeira tarde eu te amei/ Logo na manhã seguinte te odiei/ Pelas ruas da cidade eu te segui/ Mas na forte tempestade eu te perdi")...
... Mas tinha mais: chorei muito ouvindo Estrela Sensual ("Eu me apaixonei/ Sem sequer pensar/ Em me guardar/ De você/ Foi tudo sem querer/ Como sempre/ Ninguém pode prever/ Eu nem buscava alguém/ A fim de repartir/ Uma ilusão/ Ansiedade/ Só um pouquinho de paz/ E agora/ Viver é bom demais/ Você é minha estrela sensual/ Seu olhar é um sinal de esperança/ Eu te entendo tanto/ Você é minha estrela sensual/ Seu calor é o mais intenso/ Seu limite é o mais distante céu") e Gaivotas ("Gosto/ Quando o vento bate no meu rosto/ Liberdade é assim/ Num simples gesto de carinho/ Gosto/ Como o sol se espalha em nossos corpos/ Um verão nos trópicos/ É quente o nosso ninho/ Gaivotas pelo céu/ Tesouros que a gente cria [...]"), mas o disco ainda tinha duas fodonas: Brincar de Viver (anteriormente gravada por Bethânia) e a nervosa Olhos Vermelhos (veja o clipe abaixo), mas pra mim todas desse disco são clássicos particulares meus.
Muitos anos depois, em Avaré (SP), emocionei-me muito assistindo a um show de Guilherme, que encerrava um festival que concedeu o primeiro lugar a uma canção minha e de Kana. E foi redentor receber o prêmio das mãos dele e lhe dar um abraço que abarcava um passado que ainda hoje segue vivo dentro de mim por meio das canções de seu lindo Despertar. Valeu, Guilherme, te amo!
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Guilherme Arantes – Despertar (1985 – CBS)
Lado A
1. Cheia de Charme
2. Fã Número 1
3. Você Faz a Moda
4. Férias de Verão
5. Brincar de Viver*
Lado B
1. Olhos Vermelhos
2. Estrela Sensual
3. Gaivotas
4. Perólas de Neon
5. Despertar do Amor
(Todas as canções são de Guilherme, exceto *, dele em parceria com Jon Lucien)
Ouça o LP na íntegra aqui:
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Como prometido, o clipe de Olhos Vermelhos:
E, de bônus, Arnaldo Antunes, Desce:
... The Housemartins, Build:
... Chico Buarque, A Voz do Dono e o Dono da Voz:
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Gosto muito do Guilherme Arantes!
ResponderExcluirO texto tá show!
Valeu, Curcinha!
ExcluirBjs,
Léo.
Texto fluente e nem um pouco pretensioso. Passando a emoção de quem viveu o que fala.
ResponderExcluirGrato pelas palavras, Benedito.
ExcluirAbraço,
Léo.