Foto: Kana |
Quando eu era criança, tinha os cabelos de um castanho tão claro que era quase loiro (como loiro é o cabelo de minha mãe ainda hoje, praticamente sem fios brancos). E também os tinha lisos. Só que de um dia pro outro escureceram, engrossaram e se enrolaram. Quer dizer, pior que isso, na época parecia mais é que tinham se engalfinhado. Um verdadeiro ninho de ratos. Minha família costumava dizer que o que deixa um cabelo “ruim” é cabeleireiro/a que não tem mão boa. Não sei se é verdade, mas me lembro de que a mudança se deu depois que meu pai me levou pra cortar meu cabelo com um sujeito a quem não posso difamar, pois não tenho provas (embora na época tivesse muitas convicções). É possível mesmo que tudo tenha sido mera coincidência.
O fato é que desde então sempre tive verdadeiro ódio de meus cabelos. Adolescente, queria alisá-los à força. Comprei mesmo um secador e gastava um tempão após o banho tentando, digamos, “domesticá-los”. E tudo piorou quando veio o rock nacional dos anos (19)80 e com ele a moda que virou uma verdadeira febre de cortar os cabelos imitando o corte do ídolo do momento, Paulo Ricardo, da banda RPM. Eu sofria ao ver meus amigos ostentando seus cabelos cortados bem rentes nas laterais e com aquele vistoso (e hoje ridículo) espichadão atrás. Sim, leitores, também eu tentei, mas, pra humilhação minha, tudo o que consegui foi ficar parecido com o cantor brega Amado Batista.
O fato é que desde então sempre tive verdadeiro ódio de meus cabelos. Adolescente, queria alisá-los à força. Comprei mesmo um secador e gastava um tempão após o banho tentando, digamos, “domesticá-los”. E tudo piorou quando veio o rock nacional dos anos (19)80 e com ele a moda que virou uma verdadeira febre de cortar os cabelos imitando o corte do ídolo do momento, Paulo Ricardo, da banda RPM. Eu sofria ao ver meus amigos ostentando seus cabelos cortados bem rentes nas laterais e com aquele vistoso (e hoje ridículo) espichadão atrás. Sim, leitores, também eu tentei, mas, pra humilhação minha, tudo o que consegui foi ficar parecido com o cantor brega Amado Batista.
Outra frustração minha era uma calvície precoce. Meus amigos me ridicularizavam (fosse hoje, diria que me faziam bullying) dizendo que eu ia ficar careca. Eu me desesperava e praguejava contra os céus por ter tocado a mim essa má sorte. Ainda mais por dois motivos: 1) havia muitos calvos em minha família (refiro-me aos mais próximos, como tios e primos), mas efetivamente nenhum careca; e 2) meu irmão mais novo, sem querer dilacerando meu coração, ostentava uma vasta loura e lisa cabeleira, que, combinando com seus olhos verdes, dava um resultado notável. Ele parecia um galã de cinema e perto dele eu não passava de um projeto mal-acabado de Woody Allen — até meus óculos contribuíam pra isso.
Vocês já perceberam que, corrompido por meu meio, eu era, sem querer (ou sem saber), um racistinha besta iludido pelos padrões de beleza da classe branca dominante. E, como não conseguia me parecer com um deles, o jeito foi manter um corte bem curto e ir ao salão de cabeleireiros pelo menos uma vez por mês. Sim, porque meu cabelo, quando bem aparado, dá até a impressão de ser dócil; mas basta começar a crescer pra mostrar toda a rebeldia que seu dono também sempre teve, embora vez por outra sufocada pela covardia. Ah, mas preciso ser justo: depois de certo tempo passei a ser cliente fiel de uma tia cabeleireira, a tia Du, que fazia verdadeiros milagres — dentro das possibilidades, of course.
O tempo passou, o mundo mudou (assim como a moda), eu cresci e também mudei, de repente me vi envolvido no universo das artes, e um belo dia, assistindo a um monólogo da maravilhosa multiartista Elisa Lucinda, adotei pra meu uso algo que ela disse nesse dia. Ela, que também sofrera sempre por não se encaixar nos padrões impostos, chegou à conclusão de que o cabelo bom é aquele que não nos abandona. Quando ela disse isso, fiquei maravilhado, e tanto que vez por outra me pegava frente ao espelho pedindo desculpas a meus cabelos pelas décadas de tirania que eu lhes impusera. Detalhe: continuei o calvo que já era aos 15 anos, mas nunca fiquei efetivamente careca; em contrapartida, vi muitos de meus detratores perderem paulatinamente seus preciosos fios ao passo que os meus permaneciam ali, fiéis, firmes e fortes. Inclusive, meu irmão, que não tinha nada a ver com a história, acabou ficando também careca — e hoje usa um visual Kojak (quem não entendeu não precisa entender).
Contudo, como o trabalho também tem suas mudas censuras, continuei mantendo o mesmo corte de cabelo por décadas a fio, até que vim parar no Japão, um país que é muito rigoroso em certo sentido, mas que, por outro lado, permite a seus habitantes total liberdade no visual — claro, os engravatados homens de preto existem em todo lugar, mas, como não sou um deles, no problem. E foi então que, pela primeira vez depois da era Paulo Ricardo, resolvi deixar meus cabelos se esvoaçarem livremente ao sabor do vento e de sua própria natureza. Assim, ainda que tardiamente pago essa dívida com eles (não posso me esquecer de agradecer também a meu amigo careca-cabeludo Érico Baymma e seu bem-vindo empurrãozinho). Não sei até quando resistirei (ou os do contra mo permitirão), mas por ora o que posso dizer é que tô adorando me dar a esse luxo depois de quase cinquentenário, sem falar que tá fazendo um bem danado pra minha tão castigada autoestima. A seguir, cenas dos próximos capítulos...
Entretanto, além do cabelo há o apelo; o belo; o camelo; o degelo; os sonhos que escalpelo; o flagelo; o grelo (falante?); o halo; os desavisados que interpelo; o janelo (claro que estou me referindo ao marido da janela); meu parceiro Lalo (Guanaes); a moda e a modelo; o rio Nilo (e, por falar em cabelo, meu amigo Da-nilo); Shakespeare e seu Otelo; o pesadelo (que é aquele sonho em que me vejo careca); tudo o que é vendido por quilo; o saudoso Raphael Rabello; o quase extinto selo (e o gracioso selinho); o tornozelo (de Aquiles?); o composto químico uracilo; as noites em que velo (pensando na morte da bezerra); a xilo(gravura); e o zelo (que procurei ter pra escrever esta prosa cabeluda).
***
PS1: Quem escolheu a palavra desta feita fui, obviamente, euzinho da silva, que continuo o mesmo de sempre (mas os meus cabelos... — só pros sobreviventes).
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PS2: Trilha sonora: Gal Costa, Cabelo (Jorge Ben Jor – Arnaldo Antunes)
Cronica hilariante, obrigada me fez perder a rigidez desta ameaça Corona.
ResponderExcluirValeu, Mi! Abraços descoronados. rs
Excluirレオ。
Leó, acho que você escovou sua própria história a contrapelo!
ResponderExcluirMaravilhosa a crônica, e siga feliz com sua capilar coroa (sem N)!
Hahaha! Valeu, querido! Sigo nesse intuito. Enquanto eles não abandonam esse barco tão cheio de avarias.
ExcluirAbraços,
レオ。
Na verdade já conhecia este texto, mas é muito bom. Nada como ter a vc mesmo como assunto de crônica. Eu tinha vontade de ter cabelo enrolado. Meu irmão tinha qdo pequeno. Tinha inveja de um amigo,que além de loiro, seus cabelos eram anelados, bons de envolver os dedos. Normalmente não admitia inveja. A idade ensina.
ResponderExcluirMeus cabelos, apesar de lisos eram grosso, como de índio.Se cobrasse viravam um capacete. Hoje são mais finos.
Adolescência é um terreno fértil pra insatisfações. Ainda as temos, mas, se amadurecido, lidamos melhor com elas.
Na verdade já conhecia este texto, mas é muito bom. Nada como ter a vc mesmo como assunto de crônica. Eu tinha vontade de ter cabelo enrolado. Meu irmão tinha qdo pequeno. Tinha inveja de um amigo,que além de loiro, seus cabelos eram anelados, bons de envolver os dedos. Normalmente não admitia inveja. A idade ensina.
ResponderExcluirMeus cabelos, apesar de lisos eram grosso, como de índio.Se cobrasse viravam um capacete. Hoje são mais finos.
Adolescência é um terreno fértil pra insatisfações. Ainda as temos, mas, se amadurecido, lidamos melhor com elas.