quarta-feira, 6 de maio de 2020

Os Manos e as Minas: 36) Conjugando o verbo Aldir


Por Mello Menezes

Não, não e não! Algum insensível veio me dizer que morreu Aldir Blanc. O velho Aldir. O novo Aldir. O eterno Aldir. Quanta ingenuidade! Será que não percebe que há certa categoria de seres humanos que está acima disso a que chamamos morte? Aldir, morto? Hahahahaha! Pobres mortais... passarão pelo caminho em que ele passarinha, passarinhou e, obviamente, passarinhará. Aldir, ah, Aldir! O mestre há muito já deixou de ser simplesmente um ser humano, tão acima que está dessas condiçõezinhas em que nos encontramos todos. Aldir é já um verbo. Posso, se quiser, conjugá-lo no presente: eu aldo, tu aldes, ele alde, nós aldimos, vós aldis, eles aldem.; ou no pretérito perfeito: eu aldi, tu aldiste, ele aldiu, nós aldimos, vós aldistes, eles aldiram; ou ainda no futuro do presente: eu aldirei, tu aldirás, ele aldirá, nós aldiremos, vós aldireis, eles aldirão...

... E assim por diante nos demais tempos verbais. Sem falar que Aldir é também um adjetivo. Quando compomos algo muito bom, bem bom — mas beeeeeeem booooooooooom mesmo! — acima da média, podemos dizer que, em vez de termos composto uma obra-prima, calhou-nos de ter concebido uma criação aldir pra caralho! Dessas que as pessoas passam a língua pelos lábios antes de dizer: Caramba! Isso aqui ficou muito aldir! Há as criações ruins, as criações razoáveis, as criações boas, as criações ótimas, as criações excepcionais... e as aldires criações. Que, pra seu governo, ó pobre imitação!, estão longe de ser cópias. Porque algo só logra ficar aldir se não se parecer em NADA com algo que Aldir fizesse. Pois pra ser aldir há que ser original pra aldir!

Isso quando Aldir não é o próprio substantivo. E o que viria a ser afinal um substantivo aldir? O Houaiss me ajuda: classe de palavras com que se denominam os seres, animados ou inanimados, concretos ou abstratos, as coisas ou partes delas, os estados, as qualidades, as ações (objetos, porções, sentimentos, sensações, fenômenos etc.), e que funcionam na frase como: sujeito (Aldir arrebentou!); predicativo do sujeito (Aldir é o cara!); aposto (Aldir, parça de João, entre outros); objeto direto (imitar um Aldir), objeto indireto (gostar de Aldir); agente da passiva (Aldir foi considerado pelos bambas o maior Blanc!) e adjunto adverbial (navegar por aldires nunca dantes navegados). Se bem que, mesmo entre os substantivos, há uma grande diferença entre ser Aldir e ser um Valdir da vida... Nada contra os Valdires, que são plurais; é que Aldir é singular.

E aí vão lá velar o corpo, chorar o corpo, brindar a morte do corpo, cantar o corpo, enterrar o corpo e depois... esquecer o corpo ("tá lá um corpo estendido no chão"). Só que Aldir há muito transcendeu um corpo. O que estão enterrando foi só o paletó de carne e osso dentro do qual ele se escondia dos indesejáveis — não à toa nem saía de casa. O verdadeiro Aldir está por aí, pairando, parando trânsitos em outras transversais, dando não só respostas ao tempo, mas também deixando o tempo sem resposta. O verdadeiro Aldir está se equilibrando segurando de um lado a mão de um bêbado e do outro a de uma equilibrista — chaplinianamente. Está chorando rubras cascatas abraçado à mais imperfeita das mulheres enquanto dança um dois pra lá, dois pra cá, com um bandeide no calcanhar... de aquiles (de aldires?).

Não! Não me venham falar de morte! Ainda por cima se for por causa desse tal de corona vírus! Aldir não é estatística! Aldir é metafísica. É socrático — embora vascaíno. Aliás, Aldir próprio é um hino. Um menino de barba, um diabo de pernas tortas, um cara que sempre soube do que falou porque era cobaia de si mesmo, personagem de si mesmo. Dizem que todo poeta é um fingidor e, por consequência, todo letrista é mais fingidor ainda. Eu sou; Chico Buarque é; Paulo, Cesar e Pinheiro são... Aldir não! Aldir era verdadeiro! Falava do que sentia e do que vivia, compunha sobre as ruas, os bairros e os bares pelos quais transitava, interagia com suas personagens! E, mesmo quando fingia, fazia-o de verdade, pois, nunca tendo viajado pra fora do Rio (como, aliás, Machado), conhecia o mundo pelo que lia — a melhor das viagens. Fingir? Que viagem!

Tem morrido muita gente querida ultimamente — e muita gente desconhecida também —, e tanta que meu coração não aguenta, tantas pessoas que na hora em que quero escrever sobre elas meus dedos travam, rebelam-se, fazem greve, esquecidos das tantas aulas de datilografia da adolescência, meio que como não querendo admitir que morreram, meio que como se, em não escrevendo, estivessem negando o fato de que tais pessoas morreram. A morte me é muito dolorosa. E, quando ela está no plural, mais ainda. A cada nova pessoa que morre, parece-me que a fila em que me encontro diminui e que logo, logo, o guichê de número tal vai chamar o número da senha que tenho em mãos!

O que me lembra de que tenho que correr porque ainda não sou verbo, nem adjetivo, muito menos substantivo — embora abstrato (e abestado). Ah, pobre ser humano! Tão grande é o mar de ego no qual navega e não se liga que é o mesmo em que naufraga. Aliás, falando nisso, e tirando o foco de mim, Aldir levou ao máximo os versos do poeta português que dizem que pra sermos universais devemos falar de nossa aldeia; foi o mais carioca dos letristas brasileiros, embora tenha tratado também de inúmeros outros temas que não a carioquice. E, ao contrário de outros famosos colegas conterrâneos, como o grande Vinicius, Aldir falou muito da "quebrada". Foi sempre mais bolero que bossa, foi da fossa, do pigarro e da tosse, foi dos crimes passionais, praticamente um Nelson Rodrigues da canção brasileira. Foi... Foi não! É! E será! E paro por aqui porque se me embargam os olhos. Não é por nada não, é só porque me deu um blanc.

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12 comentários:

  1. Puta texto ALDIR do caralho, Léo! Arrasou!

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  2. E seguimos conjugando o Aldir no futuro. E com orgulho, já deixei pro Valério o seu legado.
    Como fazer este texto maravilhoso chegar a João Bosco?

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    1. Comentário da Léa, né? Já respondi no face, queridona.

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  3. Léo, que texto incrível, ri e chorei. Parabéns!

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  4. Que maravilha, Leo , um Alento frente a esta desaparicao corpórea, porque a gente respira o Aldir pra tentar respirar poesia, aquela dos cabarés , becos , mulheres que nunca se esquecem, e ele, ovelha negra que se desgarrou.... "O tempo vence toda ilusão", como ele mesmo cravou... Parabéns, sempre muito bom ler suas crônicas!

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  5. Léo, vc Aldirou!!
    Sensacional!!
    Aldir pra caralho!!

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  6. Homenagem à altura de Aldir. Lindo, Léo, me emocionou.

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