Girei a chave, abri a porta e me deparei com um lençol amarrado feito uma trouxa. Eram roupas. Detalhe: roupas minhas! Ao redor, espalhados pelo chão, demais pertences meus, de várias categorias e espécies. Ela surgiu e, entre gritos e lágrimas, tentou me fazer entender que eu acabava de ser desincumbido de minhas funções de marido. Era uma decisão unilateral que não me deixou oportunidade de réplica. Nem precisei cumprir aviso prévio. Arranjei um carro – não lembro se de algum parente ou amigo –, joguei minhas tralhas dentro, consegui fazer que ela me deixasse ao menos escolher alguns livros e CDs, joguei-os rapidamente numa mochila e disparei rumo a um futuro incerto. Meu pai estava internado, em situação delicada; eu estava com 37 anos, desempregado, e voltava, depois de mais de dez anos, à casa que um dia fora meu lar.
Os dias seguintes se sucederam como num sonho. Eu estava me sentindo um traste, um estorvo, dostoievskianamente humilhado e ofendido, fodido e malpago. Não tinha sequer grana pra alugar um muquifo qualquer onde escondesse minhas mágoas. Até pra beber era fiscalizado, pois minha mãe voltara a me tratar como se eu não passasse de um moleque inconsequente. Tudo bem, inconsequente eu sempre fora, mas moleque já era demais, né? Um marmanjão às vésperas dos 40... Andava tão apagado, que ouvia as piadinhas da parentada com um "nem aí" tão bocejante, que parecia que o disse me disse nada tinha a ver comigo. Como na canção de Vlado Lima, tava me achando um folgado e morando longe. E sem perspectivas nenhumas de futuro.
O que me salvou na época foi que, surpreendentemente, comecei a receber um volume razoável de trabalhos pra revisar. Nada que me tornasse rico, mas o suficiente pra ocupar minha "oficina do diabo". Ah, esqueci de dizer que revezei com meu irmão umas noites no hospital, acompanhando meu pai. Dormir num desconfortável sofá foi o tiro de misericórdia. Ao menos o velho se restabeleceu e voltou pra casa em uma semana. Por falar em semana, algumas depois, minha mãe me chegou com uma proposta indecorosa: numa instituição religiosa voltada aos cuidados de menores carentes surgira uma vaga de... de... de controlador de acesso! Bem, pra quem não sabe, a função desse profissional é, como o nome diz, controlar o acesso de quem entra e de quem sai do estabelecimento em questão.
Digamos que o tal controlador é uma espécie de segurança, um man in black, engravatado e tal, só que com um salário menor. Era pegar ou largar. Como eu não estava em condições de barganhar, peguei. O trampo tinha um lado bom e um ruim. O ruim era que a carga horária era de 12 horas(!). O bom era que eu trabalharia um dia e folgaria o outro. Como diz o poeta, fodido, fodido e meio. Não tinha trabalho, não tinha mais esposa, a autoestima escorrera pelo bueiro, não custava nada sentir na carne mais essa experiência de ocupar um cargo que não condizia com meu nível de escolaridade. Eu não seria o primeiro nem o último. E ainda podia ter a oportunidade de futuramente transformar tal situação em ficção. No mais, era um trampo leve, e eu teria o dia seguinte livre pra fazer minhas revisões.
Vocês estarão se perguntando onde é que entra na história o bendito do disco do uruguayo. Bem, meus caros, a prosa é feita também de suspense. Os parágrafos acima, escrevi-os apenas pra que vocês tenham base de como andava minha cabeça àquelas alturas. Pois bem, lembram que escrevi que naquele dia fatídico havia jogado uns CDs na mochila? Touché! Um desses CDs era justamente Amar la trama, de Jorge Drexler. Detalhe: esse disco marcou um novo momento na carreira do moço, pois havia alguns anos ele também se separara, e este foi o primeiro (salvo engano) com canções inéditas que ele gravou nesse hiato entre separação e novo casamento. Tanto que, embora nele haja algumas canções, digamos, dançantes, trata-se de um disco quase lúgubre – ou talvez tenha sido meu momento que o enxergou (ouviu) assim.
Sim, porque eu o ouvia diária e religiosamente, por um aparelhinho de tocar MP3, no percurso de casa pro trabalho e do trabalho pra casa. Imaginem a cena: eu entrava às 6h, quando saía de casa ainda tava escuro; aquele sono, aquela má vontade, aquele pensar na vida, um desgosto profundo, e Drexler quase sussurrando pra mim "claro que sei/ tenho mais que claro/ os dias estranhos são muitos/ e os dias bons, raros/ [...] e ainda que não haja uma razão/ todos a seus postos/ a vida pode ser que não/ se torne muito melhor que isso/ [...] Claro que também/ melancolia manda/ com sua pluma minuciosa/ desfaz, afanosa, o que a gente anda..."; ou "várias primaveras atrás/ o vento mudou/ e uma canção me trouxe até aqui./ Não foi mais que um sinal sutil/ que logo cresceu/ e uma canção me trouxe até aqui./ Antes, antes, naquele outro mundo distante/ tempos de outro cantar/ longe, longe, com o olhar em outros espelhos/ sem me dar conta, um dia me pus a andar"...
Esse disco de Drexler trazia em si tanto versos pungentes que me causavam quase dor física quanto outros que a amenizavam, num verdadeiro jogo de "morde e assopra". Alguns deles relativizavam minha dor, como estes que dizem que "estou aqui de passagem/ eu sou um passageiro/ não quero levar nada/ nem usar o mundo de cinzeiro./ Estou aqui sem nome/ e sem saber meu paradeiro/ me deram alojamento no mais antigo dos viveiros./ Se quisesse regressar/ eu não saberia pra onde/ pergunto ao jardineiro/ e o jardineiro não me responde./ Há gente que é de algum lugar/ não é meu caso/ eu estou aqui de passagem". Alguns me traduziam, como o que dizia que eu "tinha aquela idade em que a certeza caduca", outros filosofavam, como o que dizia que "tudo pode ser tão perigosamente leve como a neve na bola de neve"...
Pra resumir a história, alguns meses depois, a "empresa" matrimônio, talvez após ter se certificado de que não havia no mercado outro funcionário mais bem preparado pro cargo de marido que eu, resolveu me dar uma segunda chance. Mantenho o cargo até hoje, e ouso dizer que essa segunda fase tem se mostrado melhor que a primeira. Inclusive, profissionalmente também as coisas têm paulatinamente melhorado. E o danado do disco de Drexler acabou caindo num limbo, pela culpa de ter sido meu companheiro de momentos tristes. Contudo, não sei bem por quê, dia desses me lembrei dele e, reouvindo-o, senti mesmo uma nostalgia masoquista. Talvez porque, como diz uma canção desse mesmo disco, "a gente é o que é, [...] assim como Aquiles por seu calcanhar é Aquiles".
... e, quase como um pedido de perdão, resolvi lhe dedicar estas linhas. Afinal, os melhores amigos são aqueles que nos acompanham nas piores horas.
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PS: Pra facilitar a compreensão, traduzi os versos acima citados. Creio que vocês notaram.
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Amar la trama – Jorge Drexler (2010 – WEA)
1. Tres mil millones de latidos
2. La trama y el desenlace
3. Las transeuntes
4. La nieve en la bola de nieve
5. Mundo abisal
6. Toque de queda – Jorge Drexler e Leonor Watling
7. Una canción me trajo hasta aqui
8. Aquiles por su talón es Aquiles
9. I Don't Worry About a Thing – Jorge Drexler e Ben Sidran
10. Noctiluca
11. Todos a sus puestos
12. Telón
(Todas as canções acima são de autoria de Drexler, exceto a 9, de Mose Allison)
Ouça o CD na íntegra:
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C é folgado mesmo.... rarará...
ResponderExcluirÉ, Vladón, só que agora moro perto. Hahaha!
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