sábado, 25 de março de 2017

Os Manos e as Minas: 27) I love Rita

O facebook é, em sua quase totalidade, uma droga que nos vicia e nos transforma em seres meio tontos, pentelhos e verborrágicos; seu uso em excesso nos deixa como que perdidos no deserto que não sabem pra onde querem ir. Entretanto, quando bem usado – e dosado – tem lá seu grau de relevância e de informação. Como procuro ser aquele tipo de usuário que dá um tapa vez em quando, mas não se deixa engolir pela substância, tenho certo olho clínico pra pescar pérolas, sejam as que uso pra compor, sejam as que absorvo pra meu conhecimento. Foi assim que cheguei a Rita Lee: uma autobiografia. Confesso que sua leitura não fazia parte de minhas prioridades, ainda mais porque não faz muito li uma biografia sua meio romanceada que, apesar de interessante, não era lá esse balaio todo. Contudo, via fb entraram em cena dois sujeitos cuja opinião prezo.

São eles: 1) Marcelo Nocelli, meu editor (um dos sócios da Editora Reformatório), que relatou ter sido o supracitado livro uma das mais prazerosas e interessantes leituras suas nos últimos tempos. Registrei seu comentário e o livro subiu um pouco em meu conceito. 2) O outro amigo, Zé Luiz Soares (ex-proprietário do saudoso Villaggio Café), postou um contraponto, uma crítica negativa ao livro escrita por Kiko Nogueira, do blogue DCM. Na crítica, meu "parente" espinafra Ritinha, a começar pelo título, A autobiografia de Rita Lee é um manual de como envelhecer com ódio (se a quiser ler, clique aqui). Pra resumir, ele toma partido dos outros dois Mutantes, os irmãos Baptista, que são tratados de forma zombeteira pela primeira em sua autobiografia. Assim como aconteceu com Zé Luiz, essa crítica foi a gota d'água que me fez querer ler o livro imediatamente – nada como tirar a prova dos nove.

Principalmente porque – acho que nunca disse aqui – amo Rita Lee por tudo o que ela representa, pelo pacote inteiro: talento, charme, beleza, irreverência, deboche, porra-louquice, a capacidade de zombar de si mesma, a completa falta de papas na língua (que a faz vez por outra falar – e fazer – alguma merda, mas, como dizem, faz parte) e, o mais importante, o fato de ser uma mulher compositora numa seara onde ainda hoje os homens reinam com larga margem de vantagem – e, de bônus, pelo fato de ser uma paulistana da gema. Orra, meu! E, justo por isso, ela tinha tudo pra não dar certo. Parem e pensem: sempre houve no cenário musical brasileiro certo preconceito direcionado aos compositores de São Paulo. E sempre houve preconceito em relação às mulheres compositoras. E Rita é ambas coisas: mulher e compositora. Mas só isso não seria justificativa pra que a aplaudíssemos, não fosse outro fato – que merece parágrafo novo.

Ela é boa pra caralho! E esta é uma opinião desprovida de sexismo. Vamos combinar? A mulher é fera! No palco, é de uma naturalidade tão... tão... tão natural, que chega a dar a falsa impressão de que qualquer zé-mané poderia tomar seu lugar e fazer o mesmo. É que Rita é do time dos ratos de palco; lá é seu habitat. E com sua irreverência, mesmo nas raras ocasiões em que dá bola fora, faz como na canção, "levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima" – e sem perder o rebolado. E quanto mais o tempo passa mais essa virtude se acentua. É uma show-woman. Mas até aí muita gente o é. O diferencial, o phoda, o (como diz um amigo) plus a mais, é que ela é uma baita compositora dona de melodias deliciosas e letras idem, que conseguem ser populares sem perder o lirismo; que conseguem ser feministas e femininas ao mesmo tempo. Aliás, em Rita, essas duas características não são contrastantes, e sim complementares.

Como ela diz em seu livro, "um adendo": podemos considerar a carreira de Rita dividida por um antes e depois de Roberto de Carvalho. Ele é a mais completa inversão daquele ultrapassado chavão que diz que "por trás de todo grande homem existe uma grande mulher" (bem ao gosto do arcaico pensamento de nosso temeroso usurpador... Não, não vou falar de política neste texto. Relevem). Roberto tem sido há décadas seu discreto Sancho Pança e, mais que isso, além de ser um grande músico é um melodista digno de figurar entre os do primeiro time da chamada MPB. Não que Rita não tenha ótimas melôs, mas Roberto lhe trouxe uma sofisticação e um leque de possibilidades musicais que antes não existiam em sua obra. Sem falar que segurou como um lorde a barra da porra-louquice da quixotesca esposa e soube lhe dar espaço pra dar murro em ponta de faca quando ela assim o quis. E aqui vemos outra inversão: o carioca é ele e a paulista é ela(!).

Mas tratemos um pouco do livro: não cheguei a verter lágrimas, mas fiquei profundamente sensibilizado com a obra, pela coragem de Rita em se desnudar. Duvido que alguma biografia não autorizada fosse mais ousada do que a própria Rita foi. Lembrou-me outra bela e corajosa obra, a do velho Lobão, outra delícia de livro (pena que seu autor... bom, deixemos pra lá, que aí já parece ser um caso perdido...). E o que me surpreendeu mais ainda foi a qualidade literária de sua prosa (li-a de uma sentada), o que me fez imaginar que ela, agora que se aposentou dos palcos, poderia investir na carreira de ficcionista. Tenho cá pra mim que não passaria vergonha numa hipotética comparação com a verve de Chico Buarque (aí, Rita, #ficaadica!). Outro achado na leitura foram as discretas inserções de versos de clássicos da MPB que ela jogava no meio da prosa, como parte dela, o que pode passar despercebido por quem não seja profundo conhecedor de nosso cancioneiro.

Antes de terminar, respondo ao outro Nogueira, que a criticou. Caro Kiko, seria ingenuidade esperar que Rita em sua autobiografia deixasse de ser Rita. Ela teria que ser outra pessoa pra trocar a despudorada e ferina/felina língua pela politicamente correta hipocrisia. Além do mais, pra ficar no campo mutante dos irmãos Baptista (a quem ela chama chistosamente de ozmano), só ela, que conviveu com eles, sabe o que passou ao lado dos moços. Ela escreveu linhas cruéis sobre ozmano? Sim, mas quem somos nós pra julgá-la? Caso eles queiram dar a versão deles, não faltarão editoras pra incentivar a empreita. Num mundo que cada vez mais caminha prum retrocesso, só posso aplaudir artistas autênticos. Por essas e outras, até lhe perdoo certa "coxinhice". E finalizo deixando um recado dela pros compositores de todas as idades: "O pior inimigo da criatividade é o bom-senso, [há que] mudar, mudar, mudar, nem que seja pra pior."

I love You, Rita!

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Presentinho:


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4 comentários:

  1. Também adoro a Rita! Gosto demais de sua "porra-louquice", espontaneidade e louca sensatez. Adorava o programa Saia Justa quando tinha sua participação. Aliás, dela e da Betty Lago. Divertidíssimas! Ainda não li sua autobiografia, mas quero muito. Está na minha (extensa) fila.
    Beijos!

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