Naquele tempo, macho, o negoço era diferente, num era que nem hoje em dia, não. Por isso é que hoje o mundo tá perdido; se um pai levanta a mão prum fi, vai inté preso. É mais fácil um fi batê no pai. No meu tempo, arre-maria! Qualqué coisinha, o coro cumia. E ai de quem chorasse. Mãe dizia, "Ingole, o choro, muleque!", e nóis tinha que se aquietá, porque, se abrisse o berrêro, aí é que ela dava a lapada com gosto chega zuava. E num é dizê que era porque nóis era malino, não; se um fazia uma coisa errada e o ôtro tava perto, apanhava os dois, que era pro inucente sirvi de inzemplo pros ôtro.
Vô lhe contá uma, macho. Nóis pegava água era num açude que ficava longe que nem a baxa da égua. Ia eu e Quinzim. Nós ia com dois balde pindurado num pau que nóis levava na cacunda. Ele era mais piqueno, de modos que era eu que fazia mais força. Pois dêxe que teve um dia que quando nóis tava voltano ele disse que quiria mijá, daí nóis baxemo os balde, e num é que o fi de rapariga meteu mijo den'dum balde? Marrapaiz, eu fiquei doido que trinquei os dente. Parti pra cima dele, que nóis se abufelemo no chão que a puêra subiu. Mãe viu de longe e já vei de cinto na mão. Apanhemo os dois. Bem-feito.
Esse cinto, eu vô lhe contá, esse cinto era nossa perdição, macho. Pai tinha um xodó com ele, mas foi ficano mais véi, buchudo, e por fim, quando o cinto num abarcava mais ele, apusentô o disgramado. E aí nóis é que se lasquemo. Mãe pregô um prego na parede e pindurô o cinto nele. E disse, "Isso aqui é pa aprumá minino disobidiente". E era só nóis quato, os mais piqueno, que os ôtro já era grande. Qué dizê, os ôtro apanhava tumém, mas era pai quem batia. Quem entrava no cinto era só eu, Chica, Quinzim e Fran. E nóis quato era só mãe quem batia. Pai num triscava em nóis.
E, rapaiz, vô lhe dizê uma coisa, num passava um dia sem que um de nóis levasse uma pisa com esse cinto. Mãe dizia, "Quem come do meu pirão leva do meu cinturão". E tome lapada! E inté o tempo de lá ajudava. Sim, purque, quando mãe pidia pra nóis i comprá alguma coisa ô levá um de-cumê pro pai na roça, ela cuspia no chão e dizia, "E ai de tu se quando voltá esse cuspe tivé secado". Era, macho, o negoço era fei. E nóis curria, chega as canela batia na bunda, mas o danado do sol secava o diacho do cuspe e quando nóis voltava tome pêa de cinto.
Hoje, macho, eu acho que eles tava era certo. Ói só, ao todo nóis somo em 11, e, ói pucê vê, entre os hômi num teve um que virasse ladrão, vagabundo, baitola, pingunço... Não, sinhô! Tudo hômi direito, trabaiadô, com famia e tudo, temente a Deus... Só num teve um que desse pa pádi porque nóis sempre gostemo dum rabo de saia, mas num teve um que se disviasse do camim certo. E entre as muié foi a merma coisa. Tudo direita. Num teve uma que frescasse pu lado dos hômi ô se amancebasse, tudo casaro virge e na igreija... As que casaro, né? Porque tem duas que inda são moça inté hoje. E nenhuma casô cum preto!
Mas dêxe eu terminá a histora, macho; eu num terminei ainda não! Sossegue o facho, que o mió vem agora! Ói pucê vê como muleque é bicho sem-vergonha. Rapaiz, muleque num vale um cibazol! Pois dêxe que um dia, nóis já tava cansado de levá cum o cinto nos coro e nos cambito pur qualqué coisa... Quinzim, coitado, era só o sibito, mas mãe num quiria sabê; quando era pa batê, batia igual em cada um dos quato, que era pu ôtro num ficá de fulerage, mangano de quem apanhô. Um dia, nóis inventemo de dá um fim no danado do cinto. E tu sabe que nóis tinha dado inté um apilido pra ele? É, nóis chamava ele de Cinto-Muito. Ói muleque como fresca.
Pois bem, teve um dia que mãe saiu e fiquemo só nóis. Eu tumava de conta dos ôtros três purque eu era o mais véi; mas ói pucê vê! A ideia foi minha, os ôtro só obedecero, porque eu era o mais véi dos quato. Nóis inventemo de interrá o Cinto-Muito. Cavemo um buraco no terrêro e metemo o fi duma égua den'dele. Depois tapemo. E ói pucê vê, infiemo inté uma cruiz pur arriba da terra; paricia que nóis tinha interrado um vivo... Qué dizê, um morto. E o difunto era o Cinto-Muito. E dêxe que nóis inté rezemo pa intregá a alma dele, pa ela i pu céu dos cinto. Muleque num vale nada...
Macho, quando mãe chegô, a premera coisa que ela viu foi o prego na parede sem o cinto. Chamô nóis quato, tudo infileradim um do la'do ôtro, e perguntô, "Quede o cinto que tava aqui?". Nóis num demo nem um pio. Ela ripitiu a pergunta e disse, "Ói, que, se esse cinto num aparicê, minino vai durmi iscambichado hoje, e a pisa vai sê de vara!". Quando eu vi, Quinzim tinha se mijado todo. Bicho réi mole! Isfregô as remela dos zói e apontô cum o dedo lá pra fora, pro terrêro, bem onde tava a cruiz. Mãe olhô e disse, "Mas eu num tô dizeno!". E fez nóis cavá cum as mão. Quando nóis acabemo e ressuscitemo o Cinto-Muito, levemo a maió pisa de nossas vida. É, macho, nóis sufria, mas hoje eu dô valô à nossa educação. Quando penso em mãe, chega os zói se inhenche d'água... Era uma santa!
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O conto acima é livremente inspirado em fatos reais. Misturei algumas histórias contadas durante um almoço recente em família, dei uma apimentadinha a mais, e virou o que vocês leram acima. Espero que tenham entendido o politicamente incorreto de algumas afirmações. Quem não tiver certas mazelas na família que atire a primeira pedra... Pensando bem, melhor deixar as pedras de lado. Em vez disso, termino com um presentinho de bônus a quem aguentou a leitura até aqui:
Poema Novo — Painho Cuspiu (Xande Mello)
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