Minha amiga Marina Tavares escreveu recentemente um texto sobre a nova canção de Chico Buarque (o melhor que li até agora — leia aqui) que me encheu de terror e admiração. Explico: 1) Terror: pensei, quem ela acha que é pra "problematizar" uma canção (no caso, uma letra; a melodia é do maravilhoso Cristóvão Bastos) de nosso ídolo maior, que, além do mais, já anda tomando tanta porrada gratuita dos coxas sem noção? 2) Admiração: e por que não? Gal Costa disse certa vez numa entrevista a Jô Soares, cheia de empáfia (digo isso com dor no coração e também com a ousadia de quem sabe que jamais será gravado por ela), que a geração dela é imbatível. Pra mim, ela foi de uma infelicidade ímpar e prestou um desserviço aos compositores que pertencemos a uma geração posterior à sua.
E, voltando a Marina, a guria resolveu pegar (pra usar uma expressão machista e, portanto, arcaica) pelos bagos a poesia de Chico e escarafunchar justamente seu ponto fraco. Numa letra praticamente perfeita, ela, com o tão necessário desrespeito dos jovens, foi no cerne e encontrou os temerários (o adjetivo já existia antes do golpista; que fique claro) versos "Largo mulher e filhos/ E de joelhos/ Vou te seguir". Antes de continuar, é preciso acrescentar que Chico, nosso rei da rima, cansado das riminhas normais e óbvias, agora está numa fase de aliteração. Sua cantiga está cheia de rimas apenas consonantais. Ex.: suspiro/ligeiro, nome/perfume, lenço/alcanço, filhos/joelhos, rainha/manha, talvez/feliz, nome(de novo)/ciúme, e por aí vai.
Mas re-voltemos a Marina, morena, Marina. Ela, com a elegância de quem possui fino trato com a bola (no caso, a palavra), morde e assopra, condenando os versos, mas absolvendo seu autor — em outra instância (Marina, perdão pela comparação; é galhofa), meio como um Moro que condena Lula, mas não o prende. Brincadeiras à parte, ela tem vários predicados que legitimam sua crítica, entre eles o fato de que é jovem, é mulher e é compositora; portanto, diria mesmo que, como tal, tem pleno direito de tocar na ferida. Li muitas opiniões sobre a canção, e a maioria cheia de obviedades, apenas incensando Chico com a admiração e a preguiça de sempre que é praxe quando tratamos de um ídolo. Já Marina teve "peito" pra ir no cerne da cantiga(/antiga?).
Venho notando com alegria e esperança que a galera jovem de hoje, apesar dos desmandos do país, transita em outro patamar. É uma geração que entende (e aceita) como natural (que é como devia ser sempre) temas que foram espinhosos no passado, como a opção sexual e a questão das drogas; está atenta e atuante em relação aos direitos das minorias (sejam negros, nordestinos, mulheres, imigrantes etc.); e não tem medo de se posicionar, mesmo quando carece de alicerce intelectual. E tem mais é que ser assim mesmo, pois os ignorantes de minha geração (eu incluído) costumavam baixar as orelhas pra quem falasse bonito (mesmo que só dissesse merda com cheiro de flor). Hoje, não.
Hoje, a insatisfação que pinta na boca do estômago sobe pra boca e deságua em grito. Fulano (leia-se o povo), como diz uma linda canção de mestre Gil, "sabe o que quer, mas o povo também quer o que não sabe". No tempo de Chico, e por falar em Gil, uma parceria de ambos dizia que "esse silêncio todo me atordoa". Hoje, o que não temos é silêncio. Claro, há muita abobrinha no ar, mas é o preço da democracia, e é bom que seja assim. Diziam os antigos que quem não chora não mama; e a geração atual não vai morrer de fome por falta de choro/grito. Ela pode pecar pelo excesso, mas nunca pela falta. Como Johnny Hooker chamando Ney Matogrosso na chincha por se considerar acima da causa gay.
Eu, por exemplo, jamais teria uma atitude como a de Johnny. Pra mim e, imagino, pra minha geração, Ney é intocável. Da mesma forma que não cutucaria nosso buarqueano baluarte com vara curta como fez Marina. Só que eu sou um representante (e, por que não?, uma vítima) de meu passado, aquele passado em que o silêncio atordoava. O que, se pararmos pra pensar, vai contra a própria obra de Chico. Talvez por isso minha geração tenha ecoado tão pouco, tenha ficado no gueto, repetindo acordes dissonantes e rimas(/temas?) que não interessavam mais a ninguém. É por isso que acho bonito — e louvável — a sem-cerimônia da galera que está vindo, que chega chegando, metendo o pé na porta e exigindo "comida, diversão e arte".
E pondo em xeque velhos dogmas, mesmo os poético-musicais. Se bem que, pra defender um pouco minha geração, e as anteriores à minha, sempre foi dos jovens desacatar. A própria Tropicália era meio isso. Talvez o problema seja envelhecer. Não à toa, dizem que (não lembro exatamente a frase; vou improvisar) ser jovem de esquerda é bacana, já ser adulto de esquerda é burrice. Concordo com a frase e talvez por isso eu não tenha sabido ganhar grana. Mas pra mim agora já é tarde. Esquerdopateei e não tenho dinheiro pra me tratar... Pra finalizar, e pra traçar um contraponto, digo apenas a Marina (e ela deve saber disso) que um compositor — assim como um escritor e os criadores em geral — é um cronista de seu tempo.
Portanto, querida Marina, se não há na história da canção brasileira "um eu lírico feminino que jure todo o seu amor através da promessa de abandonar os próprios filhos diante do estalar de dedos de um homem" é mais porque as canções são reflexo da sociedade, que sempre foi machista, e menos (você sabe disso, e seu belíssimo texto deixa claro) por culpa de Chico. Eu mesmo tenho uma infinidade de canções machistas (uma querida amiga, feminista de carteirinha, já me criticou por isso várias vezes), que não representam o que penso, mas das quais me aproprio pra fazer uma fotografia do mundo em que vivo. Oxalá vocês num curto espaço de tempo possam viver numa sociedade em que tais temas se tornem obsoletos. E tenho convicção de que, no que depender de vocês, essa sociedade não tarda a chegar. Espero viver pra vê-la.
Evoé, jovens à vista!
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Leo querido,
ResponderExcluirSe é próprio da juventude - e somente dela - criticar o que há de errado com o mundo, seguirei jovem, amém! :-)
Concordo que não podemos criticar uma obra de arte, seja qual for ela, por um viés diferente de seu tempo. Mas problematizar... essa é a hora! Mesmo que os mais conservadores chiem.
No mais, Chico é demais e você também!
Beijão!
Pô, Dannoca, me pôr num "demais" ao lado do Chico é demais pra mim! rsrs
ExcluirNo mais, estou de acordo. Uma coisa, inclusive, que o Teju deixou passar em seu belíssimo raciocínio foi que, embora haja, obviamente, inúmeros casos de mulheres que deixaram marido e filhos pra viver uma grande paixão, não me lembro de um eu lírico feminino assumindo isso numa canção. Acho que Marina se referiu mais a isso quando falou sobre machismo. Ou seja, não tratou da obra do Chico em si, mas de uma situação peculiar de nossa sociedade.
Beijos,
Léo.
É....a idade chega, tanto a velha como a nova, e a do intermezzo. Por vezes penso que nosso intermezzo é demasiado intermezzo por barrarem a geração posterior à do "clã musical" que ainda está na indústria e é totalmente desconhecido.
ResponderExcluirLogo depois, chega a nossa geração, ainda calada demais para nosso saco. Não entramos na crítica, não conseguimos o lugar devido mas, quem sabe, aos 50 possamos fazer uma meteórica carreira de 20 anos....rsrsrs....
A base da construção destes discursos é realmente a geração a que pertencem e seus modismos. Agora falam - às vezes mais e sem raciocínio. Constroem, derrubando. É este o fazer da moçadinha. Tem gente bacana, sabemos. Pois vamos adiante ainda comemorando mais um belo cd do Chico, que nunca deverá de ser belo!
É, Érico, meu velho, é da juventude conjugar o verbo da moda, "problematizar". Depois, o tempo passa, outros problemas (maiores) nos visitam e acabam ficando de mala e cuia, daí as problematizações são outras. C'est la vie.
ExcluirAbração,
Léo.