quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Canções que Amo: 6) Agepê + Canário; Luiz Gonzaga + José Clementino; e Roberto Carlos + Erasmo Carlos


Esta coluna andava um tanto enferrujada, então a polêmica a respeito da nova canção de Chico Buarque me motivou a buscar na memória algumas canções que fizeram parte de minha vida e que, ouvidas hoje, fora do contexto, podiam ser igualmente criticadas. Antes de continuar, gostaria de acrescentar que uma canção — assim como um filme, um livro ou qualquer outra coisa a respeito do que tratemos — deve ser analisada levando em consideração o período em que foi feita. Uma criação costuma estar impregnada dos conceitos de sua época, seja em concordância, seja em tom de crítica, ou seja ainda simplesmente como um exemplo dos costumes daquele período. Pensando nisso, trouxe estas três, que, em outro momento de minha vida, já me deixaram rouco de tanto que eu me esgoelava desafinadamente tentando acompanhá-las a plenos pulmões durante seu girar em velhos vinis.


1) ILEGAL, IMORAL OU ENGORDA

Roberto Carlos (1976)
Já escrevi muito sobre Roberto Carlos por aqui. Foi meu primeiro ídolo. Durante muitos anos, sempre que chegava dezembro, quando aniversario, costumava ganhar de presente seu trabalho mais recente, visto que ele, por coincidência, lançava anualmente, e quase religiosamente, seus novos LPs nessa época. E eu  ouvia esses discos um milhão de vezes, decorava as letras, agarrava um cabo de vassoura e saía cantando pela casa. Foi assim durante muitos e muitos anos — depois que comecei a trabalhar, eu mesmo mos dava de presente —, até que chegou um dezembro em que parei de ganhar seus discos... e de comprá-los.

Não deve ser fácil ser rei; há muitos deveres, muitas obrigações, uma série de compromissos chatos na agenda... Da mesma forma, imagino que não deve ser fácil ser o Rei. Roberto já foi acusado inclusive de cooperar com os milicos na década de 1970, mas sempre procurou pairar acima de debates políticos de quaisquer naturezas. Só mais recentemente, vem, ainda que de modo tímido, deixando escapar um ou outro comentário político. Quando o vejo em entrevistas, mais desconfortável do que gostaria apesar de ser quem é, costumo me lembrar desta canção, que deve ter sido uma das últimas em que abriu o coração com uma sinceridade rara, rasgada, "nervosa"... Ouvindo-a, é como se deixássemos escapar uma afirmação: "O rei está nu" — pena que depois ele desistiu dessas superexposições (que já haviam ocorrido em, por exemplo, O Divã e Traumas). É, people, abaixo a monarquia! 

ILEGAL, IMORAL OU ENGORDA
Roberto CarlosErasmo Carlos

Vivo condenado a fazer o que não quero
De tão bem comportado, às vezes eu me desespero
Se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer
Que isso ao aquilo não se deve fazer
Restam meus botões, já não sei mais o que é certo
E como vou saber, o que devo fazer?

Que culpa tenho eu,
Me diga, amigo meu?
Será que tudo o que eu gosto
É ilegal, é imoral ou engorda?

Há muito me perdi entre mil filosofias
Virei homem calado e até desconfiado
Procuro andar direito e ter os pés no chão
Mas certas coisas sempre me chamam a atenção
Cá com meus botões; bolas, eu não sou de ferro
Paro pra pensar, mas não posso mudar

Que culpa tenho eu,
Me diga, amigo meu?
Será que tudo o que eu gosto
É ilegal, é imoral ou engorda?

Se eu conheço alguém num encontro casual
E tudo anda bem, num bate-papo informal
Uma noite quente sugere desfrutar
Do meu terraço, a vista de frente pro mar
Mas a noite é uma criança; delícias no café da manhã
Então, o que fazer já não quero mais saber

Se como alguma coisa
Que não devo comer
Se tudo o que eu gosto
É ilegal é imoral ou engorda
Será que tudo o que eu gosto
É ilegal é imoral ou engorda?

***

2) MENINA DE CABELOS LONGOS

Agepê (1977)
Imaginem vocês: corria o ano de 1977, em plena ditadura — aliás, as três canções desta trinca foram lançadas nesse triste período —, e um camarada me lança uma canção com essa pegada malemolente, quase caymmiana, uma verdadeira ode ao amor e ao ócio. Convenhamos, há que se ter coragem — ou falta de juízo. Eram dias em que o cidadão tinha direito a trabalhar e a ficar de bico calado (a não ser quando sondado acerca de terceiros). Tudo bem, Agepê não era exatamente um compositor de música de protesto, mas nem só os "protestantes" eram então alvo de perseguição.

Além de a canção tratar com carinho sobre os supracitados temas, ainda tem alguns versos que ouvidos hoje poderiam, no mínimo, causar estranheza. Vejamos: o sujeito tem uma tia na Bahia e acha que por isso tem o direito de ir morar na casa da pobre senhora, levando uma morena a tiracolo, instalar-se lá como um rei e ainda por cima "comer, beber, dormir e não pagar"! E, como se não bastasse, ele fanfarrona, como se fosse um desses traficantes cariocas (ou paulistas, por que não?): ele sabe "que no Nordeste tem cabra da peste" e "no Norte tem faca de corte e calor", mas tudo bem, porque ele vai "levar cheio de bala um três-oitão na mala e um ventilador". Além de tudo, o malandro era favorável ao porte de armas... Mas a canção era (é) uma delícia! Naquela época, não eram poucos os que queriam se mandar (mais ou menos como hoje).

MENINA DE CABELOS LONGOS
AgepêCanário

Ei! Ei! Ei! Menina de cabelos longos
Quero te levar pra longe
E no primeiro bonde a gente pode partir

Quem sabe indo pro Recife ou então Sergipe
A gente compra um jipe lá
Ou direto pra Bahia
Que eu tenho uma tia lá

Pra só comer, beber, dormir e não pagar
Pra comer, beber, dormir
Pra comer, beber, dormir 
Pra comer, beber, dormir e não pagar

Ei! Ei! Ei! Menina de cabelos longos
Quero te levar pra longe
E no primeiro bonde a gente pode partir

Eu sei que no Nordeste tem cabra da peste
No Norte tem faca de corte e calor
Mas vou levar cheio de bala
Um três-oitão na mala e um ventilador

Ei! Menina
Que vida boa a gente vai levar
Melhor que a vida de rainha e rei
Melhor que tudo o que se imaginar

Pra só comer, beber, dormir e não pagar

***

3) XOTE DOS CABELUDOS

Óia Eu Aqui de Novo (1967)
Luiz Gonzaga sentiu na pele (e no bolso) a chegada daquela molecada que tocava umas guitarras e se autointitulava Jovem Guarda. Pensem comigo: o cabra tinha passado um tempão tocando por uns merréis até conseguir alcançar o sucesso, daí, bem no auge dele, surge essa turma "americanizada" e de repente, não mais que de repente, o som do velho Lua tinha virado música antiga, cheirando a mofo. Os espaços que ele lotava do dia pra noite começaram a receber cada vez mais um público cada vez menor, e quase bateu o desespero nesse outro rei, o rei do baião.

No entanto, como sói acontecer com quem compõe, Gonzagão acabou destilando todo a bile de sua frustração num xote cheio de versos politicamente incorretos nos quais esculhambava essa turminha do tal do iê-iê-iê, chegando mesmo a pôr em dúvida a masculinidade da rapaziada, como vocês lerão na letra abaixo. Ah, um detalhe importante: muita gente chama Luiz Gonzaga de grande poeta da música nordestina e tal, e é preciso esclarecer que o Rei do Baião tinha muitas qualidades, mas não necessariamente a de poeta. A maioria de suas canções tem letras de terceiros, como é o caso desta, cuja letra é de José Clementino. Porém, ele costumava dar os motes, ou seja, as ideias das letras. Isso esclarecido, passemos à audição, pela qual vocês tirarão suas próprias conclusões.


XOTE DOS CABELUDOS
Luiz GonzagaJosé Clementino

Atenção, senhores cabeludos
Aqui vai o desabafo de um quadradão!

Cabra do cabelo grande
Cinturinha de pilão
Calça justa bem cintada
Costeleta bem fechada
Salto alto, fivelão

Cabra que usa pulseira
No pescoço, medalhão
Cabra com esse jeitinho
No sertão de meu padrinho
Cabra assim não tem vez não

No sertão de cabra macho
Que brigou com Lampião
Brigou com Antônio Silvino
Que enfrenta um batalhão
Amansa burro brabo
Pega cobra com a mão
Trabalha sol a sol
De noite vai pro sermão
Rezar pra padre Ciço
Falar com frei Damião

No sertão de gente assim
Cabeludo tem vez não

PS: Em casa, não lembro se por não entendermos bem a letra ou por "fulerage", costumávamos cantar "Cabeludo três vez não". Depois, trocávamos o disco e púnhamos um de iê-iê-iê.

***



2 comentários: