O tempo vai passando e a gente vai se moldando ao panorama, vai se acomodando. Assim, tenho sido um tanto relapso na narração dos acontecimentos, que vou tentar resumir nesta missiva. Segunda-feira, dia 18/12, um amigo japonês que mora no Brasil, Yuji san, em passagem por Tóquio reuniu uns amigos num bar pra comemorarmos o fim de ano. Dei uma passada lá com Kana, pois tinha que dar aula um pouco mais tarde. Foi triste sair enquanto todos chegavam, mas tive meu momento de emoção em seguida, pois, como Kana ficou na confraternização, pela primeira vez peguei o trem sozinho. Só quem já estreou por aqui essa emoção sabe. Já os relatos sobre a aula, que gerou até um conto, contei na edição anterior.
*
Quarta, dia 20, fomos a Shibuya assistir a um show de música brasileira no Tsubo no Naka. Essa casa merece um comentário à parte: ela funciona de um modo muito interessante; não serve comida, mas o público pode levar. Lá, quem paga a entrada — que não é muito barata — pode se servir de saquê e cerveja à vontade. Não precisa ser gênio pra saber que me esbaldei. Tomei uma cerveja apenas por educação, e porque Kana queria, depois mandei brasa no saquê, que havia pra todos os paladares. Imaginem, pr'um brasileiro recém-chegado, isso é um verdadeiro parque de diversões pra adulto, várias geladeiras abarrotadas de garrafas de saquê. O ruim foi que isso comprometeu meu relato, pois só lembro do show até pouco mais da metade. O nome da cantora me fugiu (vou sondar e corrijo aqui posteriormente), mas era muito boa, de uma espirituosidade quase brasileira. A formação tinha ainda ao piano nosso amigo Atsushi Suzuki e mais um baixista.
*
Sábado, 23, convidados pelo amigo Willie (do Aparecida) fomos a uma festa natalina no apartamento do casal nissei Helena e Walter. A ocasião me lembrou muito o Brasil, pois chegaram igualmente brasileiros e japoneses, a mesa era farta; e o coração, grande. Ah, e o caranguejo preparado pelo anfitrião estava divino! Pena que mais uma vez tivemos que sair no melhor da festa, pois Kana queria ver um show que ia ter a amiga Mika na percussão e seu marido, Gatsu, no baixo. Fiquei pouco tempo — pois Willie me convidara a dar um pulo no Aparecida pra conhecer possíveis novos alunos —, mas gostei bastante, pois o líder da banda, um gaitista, tocou bastante Chico. O nome da casa, Aketa no Mise (traduzindo, Loja do Aketa). Chegando no Aparecida, tudo já tinha acabado e fiquei tomando cerveja só...
*
O Natal no Japão não é como no Brasil; dia 25 nem mesmo é feriado. Sim, há enfeites pelas ruas — sobretudo em zonas comerciais — e alguns estabelecimentos têm lá suas árvores armadas, mas o máximo que acontece é alguma família mais ocidentalizada resolver jantar fora. Aquela famosa ceia na casa dos pais? Esqueça. Veja nosso caso: mudamos de apartamento "oficialmente" justo dia 24 — digo oficialmente pois, apesar de já estarmos praticamente o tempo todo nele, essa foi a primeira noite que passamos ali — aliás, aqui —, e, por falta de opção, nossa ceia foi comida da loja de conveniência e um saquê. Mas valeu. Fiquei um tanto bêbado e emotivo e, quando Kana dormiu, fiquei vendo no computador partes do especial de fim de ano de Roberto Carlos. Acho que rolou até uma lagriminha ao ver o Rei cantando com Djavan, que, apesar da tremedeira, continua cantando barbaridade.
*
Segunda, 25, em pleno Natal, fui dar outra aula — a última do ano — no Aparecida. Fiquei ao mesmo tempo feliz e espantado, pois achava que iria pouca gente, mas ocorreu justo o contrário: havia alguns alunos novos e acabou sendo a noite com mais presenças. Em clima natalino, mostrei-lhes Boas Festas, de Assis Valente, na interpretação do mano Zeca Baleiro, depois conversamos sobre a letra, que, apesar de tristíssima, não impediu que a canção seja até hoje uma das mais executadas nessa época. Contei um pouco sobre a vida do compositor e sobre suas várias tentativas de suicídio até a última, em que ele finalmente logrou seu intento. Obviamente, o assunto desaguou em suicídios pelo Japão, que são comuns.
Na segunda entrada, apresentei-lhes o conto El buscador, do argentino Jorge Bucay, em tradução pro português deste escriba. Esse conto está publicado em meu blogue (leia aqui), e tenho um carinho muito grande por ele, pois, além de ter uma moral da história que me emocionou bastante, ainda me lembra a primeira aula de espanhol que tive na faculdade, ministrada por uma querida professora espanhola, Teodora, que depois se tornou minha amiga. Teodora resolveu trazer o bendito conto pra seus alunos justo nessa primeira aula; e deu tão certo que é uma das poucas primeiras aulas que tenho gravadas na memória — e no coração. Com menos impacto, imitei-a nessa noite, mas parece que os alunos gostaram.
*
Quarta, 27, por volta das 22h, estávamos eu e Kana tranquilos em nosso minúsculo apê quando de repente tudo começou a tremer. Estamos muito próximos de um ponto por onde passa o Shinkansen, o famoso trem-bala, que quando passa faz tudo vibrar; então, em princípio achamos que tudo tremia por isso, mas logo notamos que o tremor era mais forte e prolongado. Arregalei os olhos e pensei: "Será agora minha hora?" Estava um tanto emotivo, pois acabava de reler Las intermitencias de la muerte (de Saramago, agora em espanhol), que trata justamente do tema morte. Kana levantou-se e, acostumada, abraçou-me como uma mãe faria com um filho assustado e esperou que eu me acalmasse. No fim das contas, foi só um terremotozinho de nada, mas de lá pra cá, não sei se por trauma, a todo instante penso que o apê está tremendo. Ou serei eu?
5*****
ResponderExcluirValeu, Mi!
ExcluirAbraços,
Léo.