quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

De Sampa a Tóquio: 8) De jazz, cigarros e reconstruções

Se eu fosse resumir numa só palavra, eu tascaria "tesão". Era isso que a energia dos caras no palco me passava. O bairro era Suginami; a cidade, Tóquio; mas se eu fechasse os olhos bem que podia achar que estava num inferninho de Nova York. Os quatro cavaleiros do apocalipse tocavam jazz, mas havia umas pitadas de rock'n'roll ali; muitas, aliás. Em determinado momento, pensei estar ouvindo mesmo um frevo, como se o guitarrista fosse ninguém menos que Robertinho do Recife. O nome do bar, Clop Clop; o da banda, MAD-KAB AT AshGate. A formação era guitarra, trombone, baixo e bateria, e todas as músicas eram do guitarrista, cujo nome me escapou e que Kana chamou de gênio. Confesso que cheguei lá com sono, havia até dado umas cochiladas no carro durante a ida, mas o show não permitiu que o sono me vencesse.

E olha que sempre que vou a shows de música instrumental fico achando que tá faltando um/a cantor/a, mas esse foi porrada. Claro, por força de meu destino, um tango argentino me vai bem melhor que um jazz. Inclusive, um blues me vai bem melhor que um jazz; mas, embora não o sinta na alma, sinto-o por todo o corpo, e o sentimento alheio me invade. Se fosse explicar, diria que o jazz me toca o cérebro, mas não o coração. Poxa, eu sou letrista, sou das palavras, da poesia, da prosa; mas, de certa forma, escrevendo, digitando, criando uni-versos, sinto-me meio que como o guitarrista do show de hoje (4/11); portanto, sou partícipe de sua loucura, embora não seja a minha. E talvez esse seja o grande barato: há loucura pra todos os loucos!

com Mika
Uma coisa da qual eu não sentia saudades no Japão e com que me deparei hoje foi a fumaça de cigarro se impregnando em todo o meu corpo. Explico: no Japão, a lei que proíbe fumo em ambientes fechados ainda não chegou. E, se depender dos japoneses, nem vai chegar tão cedo. E, ô, raça mais chaminé, viu? Pra vocês terem uma ideia, o baterista passou a maior parte do show com um cigarro pendendo no canto da boca. E a moça a minha frente idem. Cada baforada dela lançava no ar uma fumaça que eu podia perceber que ficava uns segundos indecisa até me achar e se dirigir satisfeita rumo a meus pulmões. E o pior é que o bar ficava num subsolo, sem janelas pr'onde a fumaça pudesse escapar, como sói acontecer por aqui.

No entanto, deixando de lado minha ojeriza tenho que admitir que a fumaça tinha tudo a ver com o local e o som. Aliás, falando nisso, e sem querer defender os fumantes, durante toda a noite não pude deixar de me lembrar de um conto do livro que estou lendo de um cara maravilhoso e com o qual me deparei por acaso: Yasutaka Tsutsui. O cara é um gênio! Músico, ator, dramaturgo e um dos maiores escritores de ficção científica do Japão. Mas rotulá-lo é quase diminuí-lo. Pra mim, pelo que li até agora ele está na vanguarda das letras japas. Mal vejo a hora de apresentá-lo a meu amigo Zeca Baleiro, que anda contagiado por Haruki Murakami. Ah, mas o que o cara tem a ver com a prosa? Fumante inveterado, Tsutsui escreveu um conto El último fumador — esse autor, como tantos, não foi traduzido ainda pro português — que trata com humor sobre a perseguição ao tabagismo. O nome do livro (recomendo com R maiúsculo): Hombres salmonela en el planeta porno.

Mas como fomos parar no tal Clop Clop? Foi assim: acompanhei Kana numa visita a um casal de amigos músicos que já tocaram com ela inúmeras vezes  — e em priscas eras —, são eles: a percussionista Mika, com quem Kana foi tratar de um projeto, e o baixista Gatsu, que ia justamente tocar à noite nessa casa e com a banda em questão. Não precisou muito pra que Mika nos convencesse a acompanhá-la — o marido fora antes, pra passar o som. Um parêntese que não tem a ver com a prosa: Kana me fez reparar num bonequinho de cera (ou argila, vai saber) em cima da mesinha da sala feito por Mika e que era uma espécie de caricatura de Furusawa, grande baterista amigo da turma toda falecido há alguns anos. Aliás, em parceria com outro japonês, Koichi Hiroki, fiz também uma canção em sua homenagem sobre a qual ainda tratarei por aqui.

Pra encerrar, queria ainda tratar de outro assunto que não deixa de ter a ver com o corrente: a capacidade que os japoneses têm de virar a página e seguir em frente. Quem visita o Japão hoje e se depara com essa superpotência tem dificuldades de imaginar que há poucas décadas era um país destruído, arrasado por uma guerra e duas bombas atômicas. Em vez de chorar as pitangas, o Japão foi humilde, aceitou a derrota e seu ônus, a saber, a presença constante de bases militares estadunidenses em seu solo — aliás, o Japão esteve mesmo sob o domínio dos EUA durante um período —, mas não se abateu, reconstruiu-se, aprendeu muito com o ex-inimigo e em poucas décadas se tornou um país à frente de seu tempo, com humildade e perseverança.

Daí, quando vamos a um bar qualquer como há tantos por aqui e nos deparamos com músicos desse calibre mandando ver num som de primeira, e com uma suingueira de deixar muito ianque embasbacado, não devemos nos espantar, devíamos antes nos espelhar neles, nós, que, embora venhamos sendo saqueados há mais de 500 anos, nunca fomos nem de longe vítimas de uma destruição como a que assolou o Japão. Não à toa, entre os dois países vemos diferenças culturais cruciais. Algumas, pontuais, revelam muito sobre ambas nações. Vou dar um exemplo: quando nos deparamos com um grande desafio, é comum ouvirmos um simpático "Boa sorte". No Japão, quem está em situação semelhante ouve um "Ganbatte", que seria algo como "Esforce-se", mas dito gentilmente.

Por ora é só, pessoal. E boa sorte por aí.

da plataforma da 
estação Shinjuku,
na volta

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Mais um PS fotográfico, uns cliques do bairro boêmio onde estávamos:



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