Assim como quando no Brasil é dia é noite no Japão, quando na ex-Ilha de Vera Cruz começa o verão na Terra do Sol Nascente tem início o inverno. Só que aqui o frio começa já em novembro e vai até meados de março (lá em cima, no norte, é pior ainda). Isso me lembrou que quando visitei pela primeira vez o país de Kurosawa começava o inverno e passei Natal e réveillon por estas bandas. Terminava o ano de 2002 e eu tinha visto neve pela primeira vez em Hokkaido — o que me inspirara a escrever a letra de uma de minhas canções mais bacanas (né, Zé Edu?), Hiroshima, parceria com Clarisse Grova (veja o vídeo aqui). Aliás, nesse período, que durou três meses, compus muito, e, pelo fato de estar tão desenraizado como me via, a inspiração pululava feito milho de pipoca na panela ao fogo.
Numa dessas viagens menores dentro da viagem maior, fomos à bela cidade de Kobe, onde visitamos um amigo de Kana chamado Tonbo (libélula em japonês — né, Dany López?). Passamos uma noite em sua casa, ocasião em que ele nos copiou alguns CDs de seu variado acervo, entre os quais se encontrava um de Mercedes Sosa, gravado ao vivo no Teatro Ópera de Buenos Aires. E este é o ponto da narrativa em que dou a mão à palmatória: tenho sido nesta vida (não me coube outra...) temporão em praticamente tudo. Os prazeres da vida, fui descobrindo-os todos no mínimo anos depois que os demais de minha idade já tinham chafurdado neles. Isso foi com a bebida, o sexo — as drogas, então, nem vou comentar —, as viagens... O que equilibra essa balança é que em literatura, cinema, música e quetais eu posso dizer sem medo de ser feliz que fui um precoce.
Mas o fato é que, nesse já longínquo 2002 em que pela primeira vez passava três meses longe de meu rincão, apesar de feliz, o que pode se configurar até como um sentimento contraditório, fui sendo acometido por certo banzo; vez em quando olhava pela janela do apartamento de meus sogros, enchia os pulmões de ar — puro! — e sentia uma saudade danada do Brasil. Um parêntese: e vejam vocês, na época eu sabia que ia voltar, mas mesmo assim a melancolia tomava conta de mim. Se então vivesse os dias que ora correm capaz que tivesse feito alguma besteira. Mas voltemos: quando comentei acima o fato de ter sido sempre um temporão acrescento nesse baú meu interesse pelas questões latino-americanas — as que não dissessem respeito ao Brasil.
Sim, eu, como a maioria dos brasileiros, até então nunca havia dado a menor importância pra qualquer coisa que chegasse ao Brasil vinda dos países vizinhos. Pra mim, o Brasil era o centro do mundo e fora dele havia quando muito os EUA — só na literatura meu leque se abria um pouco mais. Até que o banzo me fez passar a querer ouvir diariamente esse disco de Mercedes. O que não deixa de ser engraçado, pois, como naquela época não tínhamos as facilidades tecnológicas e virtuais que temos hoje, quando me dava saudades do Brasil, não tendo muito material à mão, acabava pondo no toca-CDs de novo, de novo e de novo esse bendito CD de Mercedes. E, embora entendesse muito pouco do que ela cantava...
... meu coração parecia que entendia tudo. E eu abria um berreiro de dar vergonha. Claro, evitava emitir som; só soluçava e, quando via que ia escapulir um sustenido, fechava a boca, engolia o pranto e vira e mexe chegava mesmo a morder a palma da mão. Vocês podem estar pensando que exagero... e é até possível que assim seja. Afinal, já vamos pra 15 anos, mas, como sou tão exagerado quanto besta, é bem possível que este relato seja, digamos, 95% verdadeiro. E mais: pra quem viveu no Brasil durante a ditadura, mesmo que não fizesse a menor ideia do que isso significava, ouvir a voz de La Negra em Chiba, Japão (onde então os pais de Kana viviam), não era um sentimento comezinho qualquer.
Acho que foi a primeira vez que ouvi DE VERDADE clássicos latino-americanos como Sueño con serpientes, Gracias a la vida, Alfonsina y el mar, Como la cigarra, Los hermanos, Años, Volver a los diecisiete etc. e tal. E pra mim, naquele distante Japão — que de modo algum é este onde agora ouso viver —, Mercedes Sosa era, sim, Brasil. Estou quase certo de que ouvindo esse disco naquele entonces tive pela primeira vez na vida consciência dessa tão falada unidade latino-americana. Mercedes era minha Elis à mão, minha Bethânia, minha Gal, minha Nana, minha... E, se ela cantava num "português" um tanto enrolado, isso não vinha ao caso; não me atrapalhava. Ao contrário, no médio prazo até ajudou, pois talvez tenha brotado aí a sementinha do desejo de não só aprender espanhol, como também apreender las cosas de nuestros hermanos.
Como se eu fosse um suspeito e precisasse de um álibi, acá lo tengo: com os olhos úmidos, sentindo uma "temporã" consciência latino-americana pulsar em meu pobre coração cearense, tomei de papel e caneta e rabisquei uns versos pensando em La Negra. Horas depois, fui dar uma olhada nos e-mails e, como me deparasse com um de Adolar Marin, tive a ideia de lhe enviar o resultado desse jorro, sem, contudo, relatar-lhe o que o havia inspirado. E não é que dias depois, ao abrir o mesmo e-mail, lá estava uma baita latino-americana Teimosia? Esta que é até hoje uma de nossas mais aplaudidas canções (ei-la aqui). Tempos depois, verti-a ao espanhol, fiz Adolar gravá-la e aproveitei que Mercedes fazia mais um show no Brasil pra entregar-lha... Em vão; pouco tempo depois ela nos abandonava. Mas deixou-nos a semente da teimosia (né, Dodô?).
E hoje, sexta-feira, 29 de dezembro de 2017, exatamente às 23h30 (horário de Tóquio), mais uma vez por aqui, ouço esse benfazejo disco enquanto escrevo e beberico um saquê — Kana dorme —, e se não digo que velhas lágrimas retornam a meus velhos olhos que já viram tanto é porque lágrimas têm o dom de se renovar — ao contrário dos olhos, que seguem os mesmos. E, como me sobram lágrimas e me faltam palavras, "porque el tiempo pasa" y "nos vamos poniendo viejos", aproveito pra daqui de meu novo cantinho — em que verei o ano novo chegar primeiro — desejar a todos vocês um 2018 insuportavelmente bom, desses em que não temos outra alternativa que não seja dar gracias a la vida. Que nos ha dado tanto.
Mas o fato é que, nesse já longínquo 2002 em que pela primeira vez passava três meses longe de meu rincão, apesar de feliz, o que pode se configurar até como um sentimento contraditório, fui sendo acometido por certo banzo; vez em quando olhava pela janela do apartamento de meus sogros, enchia os pulmões de ar — puro! — e sentia uma saudade danada do Brasil. Um parêntese: e vejam vocês, na época eu sabia que ia voltar, mas mesmo assim a melancolia tomava conta de mim. Se então vivesse os dias que ora correm capaz que tivesse feito alguma besteira. Mas voltemos: quando comentei acima o fato de ter sido sempre um temporão acrescento nesse baú meu interesse pelas questões latino-americanas — as que não dissessem respeito ao Brasil.
Sim, eu, como a maioria dos brasileiros, até então nunca havia dado a menor importância pra qualquer coisa que chegasse ao Brasil vinda dos países vizinhos. Pra mim, o Brasil era o centro do mundo e fora dele havia quando muito os EUA — só na literatura meu leque se abria um pouco mais. Até que o banzo me fez passar a querer ouvir diariamente esse disco de Mercedes. O que não deixa de ser engraçado, pois, como naquela época não tínhamos as facilidades tecnológicas e virtuais que temos hoje, quando me dava saudades do Brasil, não tendo muito material à mão, acabava pondo no toca-CDs de novo, de novo e de novo esse bendito CD de Mercedes. E, embora entendesse muito pouco do que ela cantava...
... meu coração parecia que entendia tudo. E eu abria um berreiro de dar vergonha. Claro, evitava emitir som; só soluçava e, quando via que ia escapulir um sustenido, fechava a boca, engolia o pranto e vira e mexe chegava mesmo a morder a palma da mão. Vocês podem estar pensando que exagero... e é até possível que assim seja. Afinal, já vamos pra 15 anos, mas, como sou tão exagerado quanto besta, é bem possível que este relato seja, digamos, 95% verdadeiro. E mais: pra quem viveu no Brasil durante a ditadura, mesmo que não fizesse a menor ideia do que isso significava, ouvir a voz de La Negra em Chiba, Japão (onde então os pais de Kana viviam), não era um sentimento comezinho qualquer.
Acho que foi a primeira vez que ouvi DE VERDADE clássicos latino-americanos como Sueño con serpientes, Gracias a la vida, Alfonsina y el mar, Como la cigarra, Los hermanos, Años, Volver a los diecisiete etc. e tal. E pra mim, naquele distante Japão — que de modo algum é este onde agora ouso viver —, Mercedes Sosa era, sim, Brasil. Estou quase certo de que ouvindo esse disco naquele entonces tive pela primeira vez na vida consciência dessa tão falada unidade latino-americana. Mercedes era minha Elis à mão, minha Bethânia, minha Gal, minha Nana, minha... E, se ela cantava num "português" um tanto enrolado, isso não vinha ao caso; não me atrapalhava. Ao contrário, no médio prazo até ajudou, pois talvez tenha brotado aí a sementinha do desejo de não só aprender espanhol, como também apreender las cosas de nuestros hermanos.
Como se eu fosse um suspeito e precisasse de um álibi, acá lo tengo: com os olhos úmidos, sentindo uma "temporã" consciência latino-americana pulsar em meu pobre coração cearense, tomei de papel e caneta e rabisquei uns versos pensando em La Negra. Horas depois, fui dar uma olhada nos e-mails e, como me deparasse com um de Adolar Marin, tive a ideia de lhe enviar o resultado desse jorro, sem, contudo, relatar-lhe o que o havia inspirado. E não é que dias depois, ao abrir o mesmo e-mail, lá estava uma baita latino-americana Teimosia? Esta que é até hoje uma de nossas mais aplaudidas canções (ei-la aqui). Tempos depois, verti-a ao espanhol, fiz Adolar gravá-la e aproveitei que Mercedes fazia mais um show no Brasil pra entregar-lha... Em vão; pouco tempo depois ela nos abandonava. Mas deixou-nos a semente da teimosia (né, Dodô?).
E hoje, sexta-feira, 29 de dezembro de 2017, exatamente às 23h30 (horário de Tóquio), mais uma vez por aqui, ouço esse benfazejo disco enquanto escrevo e beberico um saquê — Kana dorme —, e se não digo que velhas lágrimas retornam a meus velhos olhos que já viram tanto é porque lágrimas têm o dom de se renovar — ao contrário dos olhos, que seguem os mesmos. E, como me sobram lágrimas e me faltam palavras, "porque el tiempo pasa" y "nos vamos poniendo viejos", aproveito pra daqui de meu novo cantinho — em que verei o ano novo chegar primeiro — desejar a todos vocês um 2018 insuportavelmente bom, desses em que não temos outra alternativa que não seja dar gracias a la vida. Que nos ha dado tanto.
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Mercedes Sosa en Argentina (1982 – Poligram)
1. Drume negrita
(Eliseo Grenet)
2. Sueño con serpientes
(Silvio Rodríguez)
3. María va — participação de Antonio Tarragó Ros
(Antonio Tarragó Ros)
4. Al jardín de la República
(Virgilio Carmona)
5. Gracias a la vida
(Violeta Parra)
6. Alfonsina y el mar — participação de Ariel Ramírez
(Félix Luna – Ariel Ramírez)
7. Como la cigarra
(María Elena Walsh)
8. Solo le pido a Dios — participação de León Gieco
(León Gieco)
9. La flor azul
(Mario Arnedo Gallo – Antonio Rodríguez Villar)
10. Los hermanos
(Atahualpa Yupanqui)
11. La arenosa
(Manuel José Castilla – Gustavo Leguizamón)
12. Años
(Pablo Milanés)
13. Los mareados — participação de Rodolfo Mederos
(Enrique Cadícamo – Juan Carlos Cobián)
14. Cuando ya me empiece a quedar solo — participação de Charly García
(Charly García)
15. Volver a los 17
(Violeta Parra)
16. Fuego en Anymaná
(Armando Tejada Gómez – César Isella)
17. Polleritas — Pollerita colorada/Carnavalito del duende/Pollerita
(Julio Santos Espinosa/Manuel José Castilla – Gustavo Leguizamón/
Raúl Shaw Moreno)
18. Canción con todos
(Armando Tejada Gómez – César Isella)
(Eliseo Grenet)
2. Sueño con serpientes
(Silvio Rodríguez)
3. María va — participação de Antonio Tarragó Ros
(Antonio Tarragó Ros)
4. Al jardín de la República
(Virgilio Carmona)
5. Gracias a la vida
(Violeta Parra)
6. Alfonsina y el mar — participação de Ariel Ramírez
(Félix Luna – Ariel Ramírez)
7. Como la cigarra
(María Elena Walsh)
8. Solo le pido a Dios — participação de León Gieco
(León Gieco)
9. La flor azul
(Mario Arnedo Gallo – Antonio Rodríguez Villar)
10. Los hermanos
(Atahualpa Yupanqui)
11. La arenosa
(Manuel José Castilla – Gustavo Leguizamón)
12. Años
(Pablo Milanés)
13. Los mareados — participação de Rodolfo Mederos
(Enrique Cadícamo – Juan Carlos Cobián)
14. Cuando ya me empiece a quedar solo — participação de Charly García
(Charly García)
15. Volver a los 17
(Violeta Parra)
16. Fuego en Anymaná
(Armando Tejada Gómez – César Isella)
17. Polleritas — Pollerita colorada/Carnavalito del duende/Pollerita
(Julio Santos Espinosa/Manuel José Castilla – Gustavo Leguizamón/
Raúl Shaw Moreno)
18. Canción con todos
(Armando Tejada Gómez – César Isella)
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Ouça o CD na íntegra aqui:
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Gracias a la vida que me hizo conocer te. A saudadesmatam esteja atento, bom ano para você e Kana.
ResponderExcluirOi, Mi! Ainda nos conheceremos pessoalmente. Por ora, resta dizer que contra as saudades temos muitos paliativos, como a música, a literatura etc.
ExcluirAbraços,
Léo.
Lindo relato, seu moço! Um lindo ano novo pra vocês aí do outro lado do mundo! :-*
ResponderExcluirValeu, sua moça! Desejo o mesmo pra vocês aí do outro lado do mundo. rs
ExcluirBeijos,
Léo.
Salve, Silvia! Habitamos a mesma teimosia, pois.
ResponderExcluirBeijos teimosos,
Léo.