segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Cinema & Cia.: 2) As asas de Bruno Ganz (e os anjos de Lucio Dalla)

É inexplicável pra mim como sinto um enorme desejo de escrever sobre a morte de alguns artistas — alguns dos quais, como Bruno Ganz, que nem significaram tanta coisa assim em minha vida — e silencio sobre a de outros que amei... A única explicação que me vem pra isso é que, como não me pagam pra escrever, deixo-me levar pelos anjos (demônios?) de meu coração, que me sopram às vezes sentimentos dos quais nem me lembrava mais de ter sentido. Como foi pra mim começar essa viagem não a bordo de um avião, mas das asas de Bruno Ganz, de cujo rosto me lembro de uma série de outros filmes, mas que me marcou por dois. A eles, pois:

***

Pesquisando pra esta prosa, verifiquei que o filme Asas do Desejo é de 1987. Portanto, não o devo ter visto no ano de seu lançamento, pois, fazendo as contas, devia ter 15 anos. Vi-o, se não me falha a memória (e ela costuma falhar, e mais do que eu gostaria), num cineclube alguns anos depois, se não me engano o da FGV (Fundação Getulio Vargas). Na época, eu devia ter uns 18 ou 19 anos — talvez mais, provavelmente menos —, e me lembro de que me causou mais estranheza que encantamento. Quer dizer, pra ser sincero os dois sentimentos se mesclaram. Relevem, pra quem estava acostumado a ver filmes de ação ou terror nos cinemas essa pérola de Wim Wenders (e aprendenders... AAAAHHHH!!!! Eu tinha que fazer essa piada nefasta!) não era exatamente um De Volta para o Futuro... embora tivesse um quê de Blade Runner...

Voltando, Asas do Desejo não é um filme ao qual assistimos; está mais prum filme a que apreciamos. Lentamente, sem pressa, com o olhar "eterno" do(s) anjo(s), meio como se o anjo fôssemos nós. É como se se tratasse de um documentário filmado pela câmera dos olhos de um anjo. Devemos sentir empatia por ele, colocarmo-nos no lugar dele. Imagine você, leitor, se tivesse toda a eternidade pra observar nossas dores, nossas alegrias, enfim, nossas mazelas. E, de repente, você, o ser perfeito, o ser eterno, aquele que jamais irá sentir dor, DESEJASSE ser um de nós, ínfimos, medíocres, FINITOS! — claro que, eu, um anjo imortal do alto de meus... quantos poucos anos mesmo? ... não tinha capacidade pra entender isso, com toda essa intensidade abissal... Não, eu não tinha capacidade pra entender, mas sim pra sentir.

Sentir que, de repente, por um momento, a câmera em preto e branco dos olhos do anjo se torna colorida quando admira uma trapezista ensaiando no picadeiro de um circo (detalhe: como ele lê pensamentos, entende quando ela pensa em francês — lembremos que o filme é alemão. Quem não entendia era eu naquela época, naquele cineclube). Num momento em que the dream is over... o circo encerra a temporada, e a trapezista vai voltar a ser... garçonete??? E ao mesmo tempo, pra nós humanos — agora, afastando-nos do olhar do anjo —, é tão reconfortante, quase bíblico, saber-nos amparados nos momentos de angústia por algum anjo (da guarda?). Confesso que, agora mesmo, enquanto escrevo, um tanto ubriaco nessa madrugada fria toquiota, cheguei a sentir o toque dos dedos de um anjo em minhas costas e virei-me mesmo pra ver se não estaria simplesmente sonhando...

***

Não estava, mas fui. Vai saber se não foi o sopro do anjo... O fato é que, sim, fui dormir, e retomo o texto hoje, dias depois, e depois de eu ter terminado de revê-lo (ou, como preferem os moderninhos, revisitá-lo). Quisera eu ter tempo pra rever velhos filmes, reler velhos livros, reouvir velhos discos... Afinal, o olhar/ouvido que lançamos sobre eles tempos depois revela muito sobre a distância entre o que éramos e o que nos tornamos. Entretanto, agora, se eu fosse um crítico de cinema, seria o momento em que iria falar sobre a bela e lenta câmera em preto e branco, o rico contraste entre os (poucos) sons e o silêncio — e sobretudo porque a maior parte dos sons que ouvimos no filme sai do pensamento das personagens, captado pelos anjos —, a babel de línguas, a participação especialíssima de Peter Falk (representando a sim mesmo, però non troppo), a ambientação dark oitentista etc. etc.

Porém, como não sou nada disso, nem quero dar spoiler, abandono o filme por aqui e vou tratar de outros assuntos, mais especificamente falando, de um: Bruno Ganz, esse maravilhoso ator alemão que morreu há alguns dias, teve também a coragem (audácia?) de interpretar talvez o melhor Hitler da história do cinema, no filme A Queda, que tem o subtítulo em português As Últimas Horas de Hitler. Este, sim, eu vi quando de seu lançamento, ao menos de seu lançamento no Brasil, e trata... bem, trata do que o subtítulo revela, mas sobretudo, e embora seja um baita filme, acaba virando quase um pretexto pra interpretação assustadoramente verossímil de Ganz. Fosse um filme estadunidense e ele teria levado o Oscar, mas...

... mas como há nesta coluna um "& cia." depois da palavra cinema, aproveito que a oportunidade me fez lembrar de outra coisa que não tem nada a ver com cinema, embora se trate de algo cuja beleza poética me remeta à sétima arte: duas canções do italiano Lucio Dalla, uma chamada Se Io Fossi un Angelo e outra, Siamo Dei. Respectivamente traduzidas ao pé da letra, Se Eu Fosse um Anjo e Somos Deuses. Por que as trago pra cá? Porque ambas lançam um olhar bastante poético e original sobre os anjos/deuses. Na primeira canção, do ponto de vista de um humano; na segunda, sob a ótica divina (em duelo com a de unzinho qualquer); quase que, sem querer querendo, resumindo o filme em questão. Então, tive a ideia de, em vez de encher de blá-blá-blá mais algumas linhas desta prosa, finalizar minha participação apenas como porta-voz (em outras palavras, tradutor) dessas duas lindas canções do saudoso mestre Dalla. Espero que gostem e que a audição faça nascer em vocês o desejo de ver esse clássico do cinema — aliás, esses dois, se bem que o segundo trata, em contrapartida, de um demônio, embora humano.


SE IO FOSSI UN ANGELO
Roberto Costa – Lucio Dalla

Se io fossi un angelo
Se eu fosse um anjo

Chissà cosa farei
Quem sabe o que eu faria

Alto, biondo, invisibile
Alto, loiro, invisível

Che bello che sarei
Que belo que seria

E che coraggio avrei
E que coragem teria!

Sfruttandomi al massimo
Desfrutando ao máximo

È chiaro che volerei
É claro que voaria

Zingaro libero
Cigano livre

Tutto il mondo girerei
Rodaria o mundo inteiro

Andrei in Afganistan
Iria ao Afeganistão

E più giù in Sudafrica
E pra cima e pra baixo na África do Sul

A parlare con l’America
Falaria com a América

E se non mi abbattono
E, se não me abatessem,

Anche coi russi parlerei
Também com os russos falaria

Angelo se io fossi un angelo
Anjo, se eu fosse um anjo

Con lo sguardo biblico li fisserei
Com o olhar bíblico os fitaria

Vi do due ore, due ore al massimo
Lhes dou duas horas, duas horas no máximo!

Poi sulla testa vi piscerei
Depois, sobre suas cabeças mijaria

Sulle vostre belle fabbriche
Sobre suas belas fábricas

Di missili, di missili
De mísseis, de mísseis

Se io fossi un angelo,
Se eu fosse um anjo,

Non starei mai nelle processioni
Não estaria nunca nas procissões

Nelle scatole dei presepi
Nas armações de presépios

Starei seduto fumando una Marlboro
Estaria sentado fumando um Marlboro

Al dolce fresco delle siepi
Ao doce frescor das sebes

Sarei un buon angelo, parlerei con Dio
Seria um bom anjo, falaria com Deus

Gli ubbidirei amandolo a modo mio
Iria obedecê-lo, amando-o a minha maneira

Gli parlerei a modo mio e gli direi:
Lhe falaria do meu jeito e diria:

"Cosa vuoi da me tu?"
"O que você quer de mim?"

"I potenti che mascalzoni, e tu cosa fai, li perdoni?"
"O que você vai fazer com os canalhas poderosos, perdoar?"

"Ma allora sbagli anche tu"
"Mas então você também erra"

Ma poi non parlerei più
E depois não falaria mais

Un angelo non sarei più un angelo
Um anjo, não seria mais um anjo

Se con un calcio mi buttano giù
Se com um chute me expulsam

Al massimo sarei un diavolo
No máximo, seria um diabo

E francamente questo non mi va
E, francamente, isso não faz meu gênero

Ma poi l’inferno cos’è?
E depois, o que é o inferno?

A parte il caldo che fa
Excetuando o calor que faz

Non è poi diverso da qui
Não é muito diferente daqui

Perché io sento che, son sicuro che
Porque eu sinto que, tenho certeza de que

Io so che gli angeli sono milioni di milioni
Eu sei que os anjos são milhões de milhões

E che non li vedi nei cieli ma tra gli uomini
E que não são vistos no céu, mas entre os homens

Sono i più poveri e i più soli
Sãos os mais pobres e os mais sós

Quelli presi tra le reti
Aqueles presos entre as redes

E se tra gli uomini nascesse ancora Dio
E se, entre os homens, nascesse ainda Deus

Gli ubbidirei amandolo a modo mio
Iria obedecê-lo, amando-o a minha maneira




SIAMO DEI
Lucio Dalla

Siamo dei e ci muoviamo nello spazio profondo,
Somos deuses e nos movemos no espaço profundo

Corriamo dietro ai tuoni, ci pettiniamo,
Corremos atrás dos trovões, nos penteamos

E aspettiamo la fine del mondo
E esperamos o fim do mundo

Mentre tu, pover’uomo, non sei niente di speciale
Enquanto você, pobre homem, não é nada de especial

Devi anche lavorare e poi chiedere perdono
Precisa também trabalhar e depois pedir perdão

Siamo dei, figli del sole
Somos deuses, filhos do sol

Invece tu chi sei? Tuo padre è stato il dolore
Já você quem é? Seu pai foi a dor

Un momento, un momento, ho anch’io qualche argomento
Um momento, um momento, eu também tenho alguns argumentos

Ho un amico che è un campione di rock e riesce a ballare
Tenho um amigo que é um campeão de rock e consegue dançar

Per tre giorni e tre notti senza doversi fermare
Por três dias e três noites sem parar

E un’altro che ha la voce da basso e con una mira
E um outro que tem voz de baixo e com uma mira

Che ti stacca la coda di un cane con un sasso, se lo tira
Capaz de arrancar o rabo de um cão com uma pedrada quando atira

E poi ho un grande amore un amore di ragazza che mi aspetta
E depois tenho um grande amor, um amor de garota que me espera

E se non torno esce pazza dal dolore poveretta
E se eu não volto fica louca de dor, pobrezinha

Ed ogni estate do il mio voto e vado al mare
E em cada verão dou meu voto e vou à praia

E resto nudo tutto il giorno
E fico pelado o dia inteiro

Fa molto bene alla salute abbronzarsi e puoi nuotare
Faz muito bem à saúde se bronzear e depois nadar

Se mi vedessi quando torno
Se você me visse quando volto!

Ma cosa credi di fare, dove credi d’andare
Mas o que você pensa fazer, onde pensa em ir?

Non hai più aria per poter respirare
Não tem mais ar pra poder respirar

Non c’è più nessuno che ti possa aiutare
Não tem mais ninguém que possa te ajudar

Ed ogni giorno che vola via
E cada dia em que voa pra longe

Scopri di avere una nuova malattia
Descobre que surgiu uma nova doença

Oh…! Brutto uccello
Ah, feio pássaro

Ti ha mai detto nessuno che un dio
Nunca ninguém te disse que um deus

Dovrebbe essere più bello
Deveria ser mais bonito

E poi non ho capito l’ultima riga
E mais: não entendi a última linha

Non sarà che a stare sempre nello spazio
Não será que, por estar sempre no espaço,

Hai imparato a portar sfiga?
Você aprendeu a dar azar?

Oh…! Su quale giornale scrivi?
Ah, pra qual jornal você escreve?

Noi non siamo ancora morti
Nós não estamos ainda mortos

se possiamo guardarci in faccia
Se podemos nos olhar nos olhos

Vuol dire che siamo ancora vivi
Quer dizer que ainda estamos vivos

Siamo dei e la tua vita è un inferno
Somos deuses e sua vida é um inferno

O qualcosa di più atroce
Ou algo de mais atroz

Potresti vivere anche tu in eterno,
Você poderia viver também eternamente

Se ti pentissi e se abbassassi un pò la voce
Se se arrependesse e baixasse um pouco a voz

Oh…! Brutta specie di aereoplano
Ah, feia espécie de aeroplano

Ma non ti accorgi che stando in alto
Mas você não percebe que estando no alto

Vedi il mondo da lontano?
Vê o mundo de longe?

E per che cosa mi dovrei pentire?
E pelo que eu deveria me arrepender?

Di giocare con la vita e di prenderla per la coda,
Por jogar com a vida e pegá-la pelo rabo

Tanto un giorno dovrà finire?
Se um dia ela vai acabar?

E poi, all’eterno ci ho già pensato
E depois, já pensei na eternidade

È eterno anche un minuto, ogni bacio ricevuto
É eterno também um minuto, cada beijo recebido

Dalla gente che ho amato
Das pessoas que amei

***

PS: Menção honrosa:


ONDE OS ANJOS NÃO OUSAM PISAR
Autores: Zé RodrixEtel Frota (não citada na ficha técnica do vídeo)
Intérprete: Nasi

***

9 comentários:

  1. Parceiro, Asas do desejo é um dos meus filmes de eleiçao. Vi umas tantas vezes. Já que vc tocou no assunto, bem tocado, vou assistir outra vez, desta feita com minha filha. Este ator é, mesmo, maravilhoso. Abraçao

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    1. Valeu, parceiro! Seja lá você quem for! rs

      Abraços,
      レオ。

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  2. Que delícia acordar e ler o seu texto! Asas do Desejo e um filme que mexeu muito comigo e a cada vez que assisto descubro algo novo. Tbm gosto muito de "Tao longe, tão perto". Beijos

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    1. Vocês por aqui estão com dificuldades de se apresentar, né? rs

      Pelo menos estão comentando, e isso é o que importa.

      Grato, Unknown!

      Outro beijo pra você,
      レオ。

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  3. É sempre muito gostoso ler as suas crónicas, mesmo que desta só conheço Peter Falk, com a sua gabardina branca e seu velho Peugeot. Lucio Dalla descobri há pouco.Mas aprendo sempre com seus escritos, obrigada Abraços para si e Kana.

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    1. Valeu, Mi!

      Vale a pena ver o filme. Procure-o.

      Abraços,
      レオ。

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  4. Leozim, seu blog é mesmo uma enciclopédia e adoro vir descobrindo os verbetes, mesmo que esporádica e aleatoriamente. Além de tudo, venho vendo um olhar especial seu, com certa doçura sobre o objeto que entra em discussão. Não é doçura piegas - nem precisaria ter dito isto.
    Asas do Desejo também foi grandioso pra mim, que vi com a diferença de idade que temos, através da VHS da 2001 - pois não seguia filmes em cinema, um costume meu que somente se acirrou. O filme é realmente estranho a trazer um anjo que, com seu olhar delicado, nos vê com as grandezas da complexa humanidade - isto é, do medíocre à graça imanente de nossa existência e individual, ao que a paixão o traz para nosso mundo, sem medos prévios por nos ter visto como nós somos. Fico pensando que só quem tem medo de ser quem somos, somos nós próprios... rsrsrs...
    Tão Longe, Tão Perto, também é um bom filme, como sequência. Mas, assim, não traz mas aquela surpresa, embora não perca muito por esticar a existência do anjo feito gente.
    São filmes especiais que somente nos faz não só apreciar mas, pelo menos a mim, refletir sobre esta gama toda de "livres arbítrios", quando nem temos tantos assim. Mas as histórias pessoais rolam, e vão dando um tanto mais de graça à existência do que suportamos admitir termos.
    Agradeço por sua crônica completada com as canções. Este seu jeito de promover interlocuções é algo de muito especial... Sempre gosto de ver a que fará coligações, e sempre tem sido muito especial.
    Meu abração
    Érico

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    1. Érico, queridão, agradeço pelas palavras. De quebra, pela informação de "Tão longe, tão perto", que não vi ainda. Vou procurá-lo.

      Abraços,
      レオ。

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