O colega Miyage, que, além de químico, professor universitário e músico, tem um interessantíssimo blogue em que heróica e diariamente escreve sobre música brasuca (este: 365 canções brasileiras), desafiou-me a não deixar a peteca desta coluna cair. Aceitei o desafio e cá estou, iludindo (mesmo sem ter o dom).
No Brasil parece que não, pois estamos sempre atrasados quando nos comparamos a outros povos, mas em geral com o passar do tempo o mundo melhora, a civilização avança, as pessoas mudam e com elas seu comportamento. E os compositores, assim como os escritores, cronistas e quetais, têm sido repórteres de sua época. Tá, nem todos, claro, mas grande parcela deles (a mais significativa, eu diria). Por essas e outras é que não podemos simplesmente criticar inconsequentemente certas obras sem entender o contexto social do momento em que foram criadas.
***
No Brasil parece que não, pois estamos sempre atrasados quando nos comparamos a outros povos, mas em geral com o passar do tempo o mundo melhora, a civilização avança, as pessoas mudam e com elas seu comportamento. E os compositores, assim como os escritores, cronistas e quetais, têm sido repórteres de sua época. Tá, nem todos, claro, mas grande parcela deles (a mais significativa, eu diria). Por essas e outras é que não podemos simplesmente criticar inconsequentemente certas obras sem entender o contexto social do momento em que foram criadas.
Há, inclusive, ocasiões em que o autor discorda do que ele próprio escreve, quer dizer, não concorda com aquilo, mas não deixa de escrever porque é dessa forma que dá voz a determinados pensamentos que os cidadãos têm em seu cotidiano. Nelson Rodrigues era mestre nisso. Lançava seu aguçado olhar sobre a sociedade e era implacável com ela quando a traduzia em sua ficção. Não, não posso dizer que a julgava, pois aí ele estaria sendo tendencioso em sua obra; apenas a analisava friamente, com seus cacoetes, fossem estes corporais, verbais ou comportamentais.
É dessa forma que procuro pensar quando escuto uma marchinha do começo do século passado, vejo um clássico antigo em preto e branco ou mesmo leio Monteiro Lobato ou alguns filósofos/pensadores de priscas eras. E creio que Caetano Veloso também pensou nisso quando compôs Dom de Iludir, canção gravada originalmente em 1982 por Gal Costa. Entretanto, só quatro anos depois conseguimos ter uma noção mais exata das caetânicas intenções, quando ele, num disco ao vivo chamado Totalmente Demais, regrava-a bem na sequência de uma canção de 1934 chamada Pra Que Mentir?, de Vadico e Noel Rosa.
Pois bem, na canção de 1934 Noel, movido pelo ciúme, "aconselha", com sua ironia costumeira, uma garota por quem fora apaixonado, mas que evidentemente não lhe retribuía o sentimento, a parar de mentir e a aceitá-lo apesar de essa balança sentimental não parecer lá muito equilibrada. E é importante acrescentar aqui que não se trata de uma criação inspirada em ficção (como sói — adoro esse verbo! — acontecer com muitos compositores, eu incluído), mas em fatos reais. Noel esteve durante muito tempo apaixonado por uma moça chamada Ceci, a quem dedicou diversas canções, mas que se tratava de uma... dama de cabaré.
A canção tem tons claramente não de cinza, o que diria?, tons de Rosa?; contudo, se a analisarmos bem podemos vê-la mesmo como avançada pra sua época, pois nela nos deparamos com um macho traído que não só aceita a traição feminina, mas ainda por cima a perdoa e, mais que isso, também tenta convencer a rapariga (aqui uso o português de Portugal, frise-se) a manter com ele uma relação afetiva mesmo sabendo que o amor não estará envolvido nela (ao menos por parte de um dos lados). É presumível que a canção tenha envelhecido, mas não podemos tirar dela a graça e a originalidade.
Já Caetano, que pode ser visto como tudo menos um compositor careta, quase 50 anos depois se dá o direito de ser, mais que o advogado de defesa da moça, sua própria voz, visto que se utiliza do eu lírico feminino pra responder a Noel. Os dois compositores são geniais, e a canção de Caetano é igualmente lírica (ou até superior à outra), só que tenho cá pra mim que, apesar da beleza da canção, digamos que a defesa, fosse levada a um júri, provavelmente surtiria efeito contrário ao desejado, pois, ao passo que Noel diz que a "ré" não tem o dom de saber iludir, Caetano afirma categoricamente que a mulher não pode viver sem mentir.
Mais uma vez volto ao que comentei parágrafos acima: este não é o pensamento de Caetano; portanto, não podemos nós condená-lo junto com Ceci (aliás, tampouco a ela... ou a Capitu, que faz parte de outra história). O bardo de Santo Amaro da Purificação apenas quis brincar com a história, percebendo que daí poderia extrair tema pra uma bela, poética e — por que não? — polêmica canção. Agora, avancemos mais algumas décadas no tempo e cheguemos até nossos dias, em que o politicamente correto dá o tom (não esqueçam que o próprio Chico Buarque em seu mais recente trabalho sentiu na pele os efeitos colaterais dessa inquisição moderna). Aí, pois, pergunto-lhes: na linha "evolutiva" musical, qual canção-filha hoje dialogaria com as respectivas avó e mãe?
É dessa forma que procuro pensar quando escuto uma marchinha do começo do século passado, vejo um clássico antigo em preto e branco ou mesmo leio Monteiro Lobato ou alguns filósofos/pensadores de priscas eras. E creio que Caetano Veloso também pensou nisso quando compôs Dom de Iludir, canção gravada originalmente em 1982 por Gal Costa. Entretanto, só quatro anos depois conseguimos ter uma noção mais exata das caetânicas intenções, quando ele, num disco ao vivo chamado Totalmente Demais, regrava-a bem na sequência de uma canção de 1934 chamada Pra Que Mentir?, de Vadico e Noel Rosa.
Pois bem, na canção de 1934 Noel, movido pelo ciúme, "aconselha", com sua ironia costumeira, uma garota por quem fora apaixonado, mas que evidentemente não lhe retribuía o sentimento, a parar de mentir e a aceitá-lo apesar de essa balança sentimental não parecer lá muito equilibrada. E é importante acrescentar aqui que não se trata de uma criação inspirada em ficção (como sói — adoro esse verbo! — acontecer com muitos compositores, eu incluído), mas em fatos reais. Noel esteve durante muito tempo apaixonado por uma moça chamada Ceci, a quem dedicou diversas canções, mas que se tratava de uma... dama de cabaré.
A canção tem tons claramente não de cinza, o que diria?, tons de Rosa?; contudo, se a analisarmos bem podemos vê-la mesmo como avançada pra sua época, pois nela nos deparamos com um macho traído que não só aceita a traição feminina, mas ainda por cima a perdoa e, mais que isso, também tenta convencer a rapariga (aqui uso o português de Portugal, frise-se) a manter com ele uma relação afetiva mesmo sabendo que o amor não estará envolvido nela (ao menos por parte de um dos lados). É presumível que a canção tenha envelhecido, mas não podemos tirar dela a graça e a originalidade.
Já Caetano, que pode ser visto como tudo menos um compositor careta, quase 50 anos depois se dá o direito de ser, mais que o advogado de defesa da moça, sua própria voz, visto que se utiliza do eu lírico feminino pra responder a Noel. Os dois compositores são geniais, e a canção de Caetano é igualmente lírica (ou até superior à outra), só que tenho cá pra mim que, apesar da beleza da canção, digamos que a defesa, fosse levada a um júri, provavelmente surtiria efeito contrário ao desejado, pois, ao passo que Noel diz que a "ré" não tem o dom de saber iludir, Caetano afirma categoricamente que a mulher não pode viver sem mentir.
Mais uma vez volto ao que comentei parágrafos acima: este não é o pensamento de Caetano; portanto, não podemos nós condená-lo junto com Ceci (aliás, tampouco a ela... ou a Capitu, que faz parte de outra história). O bardo de Santo Amaro da Purificação apenas quis brincar com a história, percebendo que daí poderia extrair tema pra uma bela, poética e — por que não? — polêmica canção. Agora, avancemos mais algumas décadas no tempo e cheguemos até nossos dias, em que o politicamente correto dá o tom (não esqueçam que o próprio Chico Buarque em seu mais recente trabalho sentiu na pele os efeitos colaterais dessa inquisição moderna). Aí, pois, pergunto-lhes: na linha "evolutiva" musical, qual canção-filha hoje dialogaria com as respectivas avó e mãe?
PRA QUE MENTIR?
Vadico – Noel Rosa
Para que mentir
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê, pra que mentir,
Se não há necessidade
De me trair?
Se tu ainda não tens
Esse dom de saber iludir?
Pra quê, pra que mentir,
Se não há necessidade
De me trair?
Pra que mentir
Se tu ainda não tens
A malícia de toda mulher?
Pra que mentir, se eu sei
Que gostas de outro
Que te diz que não te quer?
Pra que mentir tanto assim
Se tu sabes que eu sei
Que tu não gostas de mim?
Se tu sabes que eu te quero
Apesar de ser traído
Pelo teu ódio sincero
Ou por teu amor fingido
DOM DE ILUDIR
Caetano Veloso
Não me venha falar na malícia
De toda mulher
Cada um sabe a dor e a delícia
De ser o que é
Não me olhe como se a polícia
Andasse atrás de mim
Cale a boca, e não cale na boca notícia ruim
Você sabe explicar
Você sabe entender, tudo bem
Você está, você é, você faz,
Você quer, você tem
Você diz a verdade, a verdade
É seu dom de iludir
Como pode querer que a mulher
Vá viver sem mentir?
***
Oi Léo, legal o texto, o assunto é maravilhoso e rico, tanto em letra, melodia e harmonia. São inúmeras canções que "conversam" ou se aproveitam de um dos pontos (embora você fale de letra) que citei para fazer suas criações, não exatamente dialogando no sentido do discurso lítero-musical e seu assunto. Mas não posso deixar de aproveitar para citar alguns exemplos que, talvez, para os não músicos, passe em branco, e não ficarei no nacional, somente:
ResponderExcluir1) Smile, Charlie Chaplin, serviu sua harmonia para que Lulu viesse a fazer "Como uma onda";
2) Roxanne, Sting, chupou a ideia de Dorival Caymmi (Marina) "Você se pintou...Não pinte este rosto que eu gosto e que é só meu", enquanto Sting pega "Don't use your make-up", na canção em volta de uma garota de programa.
Perdoe por não adentrar mais no universo da canção brasileira, embora possa fazê-lo em outra ocasião, mas estes exemplos mal são citados, pois não se constituem plágio, mesmo que Lulu tenha "viajado" na harmonia do Chaplin. O plágio se dá na melodia, oficialmente. E no caso de Roxanne, o tema principal da letra é quase totalmente aproveitado, mas estende-se para o caso da rapariga mesmo, no que Dorival talvez não tenha sido tão explícito assim, conforme me lembro agora.
Interessante demais este apanhado de interlocução entre canções. Como estou me valendo de casos que sempre estão na minha mente, fico devendo outros. Mais adiante podem sair.
Abração
PS: Muito se vê isso na passagem do samba-canção, em que interpretação e canção eram arrastados e pura dor-de-corno, passando pela bossa de Vinícius, cujas letras fazem a transição para o novo ritmo e fluíram naturalmente para a MPB. São diversos os exemplos das interlocuções, mas agora, falta-me a memória (só sei que já reconheci diversos).
Caro Erico:
ExcluirLembre-se de que sou letrista e não instrumentista. Portanto, não posso tratar com convicção e conhecimento de causa de assuntos cuja técnica não domino. E mais: esta coluna se propõe a analisar canções que "se chocam" na temática; mas sempre é interessante receber seus comentários, que enriquecem a prosa. Entretanto, creio que eles se encaixam em outra esfera, pois um plágio, ou uma intenção de, não exatamente se trata de uma "colisão" com a original, visto que "concorda" com aquela; mais, chupa-a. Só que há um fio muito tênue que separa o plágio da simples inspiração. O já citado Caetano, por exemplo, em "Sampa" desenha num verso a linha melódica de "Ronda", de Vanzolini. Plágio ou homenagem? Complexo, né?
Abração,
レオ。
Léo, acho que você não entendeu a questão sobre o chocar-se das canções Marina e Roxanne, que tratam, ambas, literalmente da mesma coisa. Dorival reclama que "Marina você se pintou(...) Não pinte este rosto que eu gosto, que eu gosto e é só meu", Sting coloca a questão "Put away your make-up" (tire sua maquiagem). Quis tratar foi da questão lítero-musical em si mesma, mesmo que em outra língua. A questão que divide as duas canções é que Dorival não assume que Marina seja uma prostituta e Sting assume "you don't have to put on the red light" (Você não precisa acender a sua luz vermelha). Vejo uma questão de forma de discurso no tempo. Dorival talvez não pudesse ser "grosseiro", em sua época e "expor" a Marina como ela é. Sting, já num tempo em que a prostituição é falada abertamente, colocou na primeira frase de quem seria a personagem Roxanne.
ExcluirAcredito que você tenha lido somente o primeiro parágrafo de meu comentário, quando cito Smile servindo sua harmonia para Como uma Onda - somente aproveitei o assunto para falar das várias formas de "interlocução" entre canções, mas citei Dorival e Sting como exemplos do choque na temática.
Portanto, não estive falando em questão melódica, em nenhum ponto - que é a mais considerada para os casos de plágio. Nas questões lítero-musicais, se há uma frase igual, geralmente se coloca entre aspas, como conheço vários casos.
Espero ter sido mais claro agora.
Abração
Queridão, jamais responderia sem ler. O que passou foi que não havia entendido mesmo. Agora que você esclareceu tudo ficou claro. rs
ExcluirAbraços,
レオ。
Olá Léo meu amigo desconhecido mas querido. Não, não use o português Luso, é duro, use o vosso doce e curvo como uma mulata. Noel & Caetano dois ícones da vossa música sem discussão.Chico o que é, um continente, uma outra galaxia? ..."Basta dar um suspiro que eu vou ligeiro te consolar" Fique bem, obrigada pela crónica.
ResponderExcluirOlá, Mi!
ExcluirGrato pela visita e pelo comentário. Pode deixar que a língua portuguesa brasuca está em boas mãos comigo.
Abraços,
レオ。
Muito bom, Léo!
ResponderExcluirJuro que não consigo pensar em nenhuma "canção filha" no momento, pois fiquei mais intrigado com o seguinte fragmento do seu texto:
"Entretanto, só quatro anos depois conseguimos ter uma noção mais exata das caetânicas intenções, quando ele, num disco ao vivo chamado Totalmente Demais, regrava-a bem na sequência de uma canção de 1934 chamada Pra Que Mentir?, de Vadico e Noel Rosa."
Realmente, às vezes só conseguimos desnudar as intenções de um cancionista quando o mesmo, após perceber a incompreensão geral, como que sopra uma dica nos nossos ouvidos. E quem não garante que certas canções atuais, que tanto rebuliço causaram (fico pensando, aqui, em Chico e "Tua Cantiga", aludida em seu texto), não são apenas uma cifrada resposta a alguma outra produção, o que será revelado em lançamentos futuros, entrevistas, análises, etc.? É, faz pensar.
Miyage san, como vai?
ExcluirMeu caro, eu, como compositor, diria mais: grande parte das canções, sejam famosas ou não, traz em si uma intenção sobre a qual só saberemos caso o autor (ou alguém ligado a ele) nos informe. Um dos exemplos mais contundentes, e pra continuar na seara de Caetano, é "Debaixo dos caracóis dos seus cabelos", canção que Roberto compôs (em parceria com Erasmo, não esqueçamos) e gravou e que durante anos escapou da censura por todos acharem tratar-se de mais um tema romântico do Rei, quando na verdade havia sido feita pra Caetano, que só veio a revelar ser seu "muso" anos depois, quando ele próprio a gravou. Canções, em geral, quão mais complexas são mais ganham análises diferentes, algumas contrastantes entre si, e das mais variadas pessoas. E isso também ajuda um pouco no dom de encantar (iludir?) que as canções costumam ter.
Abração,
レオ。
olá querido Léo, quando li seu texto, confesso que fiquei dias pensando sobre o assunto e comecei até a procurar canções que dialogassem por um motivo ou outro. Encontrei umas e outras, não lembro mais, hahaha, mas ontem comecei a estudar uma música que se chama "MEU SAPATO JÁ FUROU" de Elton Medeiros e Mauro Duarte, gravada por Clara Nunes, que aparece no meio da letra a frase EU NÃO TENHO ONDE MORAR, que é título da música de Dorival Caymmi. Não fui atrás ainda de quem escreveu primeiro, mas de qualquer forma acredito que dialogam, e retratam cada uma no seu tempo , de forma poética e divertida, "apesar dos pesares", um dos nossos grandes problemas sociais que é a falta de moradia. Adorei pensar nesse "diálogo" entre compositores, canções em colisão, como você diz, e de perceber que é mais comum do que imaginamos.E que continuem... abraços querido Léo.
ResponderExcluirOlá, Rosângela! Como vai?
ExcluirGrato pela presença e pelo comentário! O que você diz é tão verdade, que vou te contar um segredo: eu mesmo, em muitas ocasiões, quando estou querendo compor e não encontro ideias, começo a fuçar e buscar alguma em canções que fazem parte de minha formação afetiva. Às vezes é só um verso, ou mesmo uma palavra, que desencadeia meu processo criativo. E, no final, dou uma maquiada tão eficiente que praticamente fica improvável que o ouvinte possa adivinhar qual foi a inspiração original. Imagino que como eu haja muitos, não?
Abração,
レオ。