quarta-feira, 3 de abril de 2019

A Palavra É: 46) Travessia

Morrer, falecer, expirar, descansar, desencarnar, fenecer, perecer, partir desta pra melhor, bater as botas, abotoar o paletó, empirulitar-se, ir morar com o Pai, deixar de existir, voltar ao pó etc. Poderia gastar a vida aqui tratando dos tantos sinônimos que inventamos pra essa travessia cujo destino é sabe-se lá o quê. E que na verdade é também sinônimo do vazio que quem morre deixa em quem fica. Quem não está mais deixa de sentir, sofrer, sorrir, comer, respirar... já quem fica segue em frente, mas com essa dor, com essa saudade, que é meio que "arrumar o quarto do filho que já morreu". É quase imperdoável continuar existindo, ou sobrevivendo a outrem.

Morrer é também uma agressão a quem fica, um desacato, um ato de covardia (como se a pessoa decidisse descer do trem antes de chegar à estação), é nos enganar dizendo que vai ali comprar cigarro e não voltar nunca mais (por isso odeio o fumo). E sobretudo morrer é deixar a gente do lado de cá sem saber pra onde foi quem foi. Quem morre pega um avião pilotado por Stephen King que vai aterrissar numa fenda no tempo que dá em lugar nenhum. E de onde não se pode arremeter. Nem se arrepender. Eu, particularmente, sou completamente contrário à morte. Tivesse algum poder, proibiria.

E foda-se a superpopulação; temos problemas mais graves que este. Morrer é uma merda. Pra quem morre e pra quem fica. Pro primeiro, porque deixa de ter acesso aos prazeres comezinhos da vida; pro segundo, porque deixa de ter o supremo prazer da convivência com quem partiu. Sou favorável à vida eterna; mas sem o (b)ônus do envelhecimento. Forever young (né, Teju?). E, de preferência, com muito tesão — e não me refiro só ao sexual, mas também a todos os demais excessos, como o da gula, o melhor pecado capital, seguido da luxúria e da preguiça.

E, além de a morte ser cruel pelo simples fato de existir, ainda nos deixa sem saber que tipo de morte é pior: se a rápida ou a lenta. Pense você, preferiria morrer rapidamente ou saber antes? Ir ao médico e ouvir dele que tem seis meses de vida ou desintegrar-se numa explosão? Uma morte Zé Rodrix ou uma morte Tavito? E tem mais: a gente demora tantos anos aprendendo a viver, pegando o jeito, entendendo seus cacoetes, sua malandragem, seu traquejo etc., aí, quando acha que já tá ligado nos macetes, vem a ceifadora com sua foice e zás...

Daí, pra não enlouquecermos pensando no depois, no lado de lá, no grande nada, inventamos a fé, o céu, o paraíso, o éden (tá, e de bônus o purgatório e o inferno, que são os penduricalhos, os puxadinhos, o quarto da empregada). E nos apegamos a isso pra ter serenidade na hora da grande travessia. Percebam como uma pessoa às vésperas da morte fica sábia. Ela pode ter sido uma criatura cheia de defeitos, dúvidas e tal, mas, quando vê que seu prazo de validade tá acabando, passa a dar conselhos e chega mesmo a consolar os que aqui ficarão quando ela já não estiver.

A morte é uma sacanagem divina. Pra mim é intolerável que um cara que não vai morrer nunca nos faça existir, penar pra caramba, perambular por este vale de lágrimas e ainda no fim bater as botas. O que mostra que o humor negro de Deus não encontra paralelo em toda a raça humana. E ainda vêm nos dizer sobre essa balela que é o livre-arbítrio. Porra nenhuma! Se nos fosse dado o direito de escolha, eu, particularmente, escolheria não morrer. Nem envelhecer. Ia querer ser um Dorian Gray. Do bem, mas bonitão e jovem. Sim, porque viver eternamente num corpo caquético não ia ter graça nenhuma.

Venho aqui desabafar porque nem bem secaram minhas lágrimas após, de longe, saber que meu querido amigo e parceiro Tavito nos deixou um pouco mais órfãos, fui acordado na madrugada do dia 3 do mês vigente com a triste notícia de que minha sogra havia desistido de lutar contra o inevitável. E justo eu, que tive a sorte de ter uma sogra gente boíssima, que sempre me tratou como a um filho, fui perder o prazer de sua espirituosa presença. Com tanta sogra chata por aí merecendo pegar o bonde, Deus foi levar justo a minha? E ainda vêm me falar em livre-arbítrio? Livre-arbítrio de ânus é falo! E tenho dito.

Entretanto, aqui, enquanto não chega a hora de nossa travessia, temos a alegria; a boemia (tá, eu sei que é boêmia, mas não dá rima); a confraria (dos mascarados, meu próximo livro); um novo dia; a empatia; a fantasia; a galhardia; a harmonia; tudo o que nos inebria; os caros brinquedinhos da joalheria; a livraria; a maresia; a nostalgia; o clássico Bangu x Olaria; a pizzaria; a quinquilharia; a refinaria; a sorveteria; a teimosia (né, Adolar?); a utopia; os tantos lugares pra onde a gente viajaria; a xerografia (que, em bom nordestinês, é a grafia do "xêro" — né, Érico?); e até mesmo uma mosca que zumbiria, que não é lá a oitava maravilha, mas nos faz lembrar que ainda estamos vivos.

PS1: Escolhi a palavra em homenagem à travessia de minha sogra.

PS2: Trilha sonora: Tavito (outro que concluiu recentemente a travessia), Ponto Facultativo (Tavito – Léo Nogueira)



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10 comentários:

  1. Olá meu amigo,
    Que texto maravilhoso! Acho que me pegou de jeito nessa manhã ensolarada aqui do norte. A Perda de entes queridos é uma das maiores tristezas dessa vida. Beijos de muito carinho!

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  2. Leo, sinto pela sua perda, mas festejo suas crônicas. Abs de além-mar!

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  3. Porra, Lêo você leu meu pensamento, adivinhou minhas angustias, a morte é puta mesmo. Não me conformo. Por isso meu irmão "tamo junto", porém ainda bem que há um porem, vamos viver muito ainda e "estapurar" esta vida até à ultimo suspiro. Abraço da Mi Villela.

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  4. Oi, Léo. Mesmo não o conhecendo de perto (nem de forma simétrica, pois paquero seus textos desde muito tempo antes de você saber que existo), o considero uma pessoa querida, no sentido de "querer muito bem". Também tenho andado me indagando sobre a morte, e também me revoltando um bocadinho com ela. Seu texto recheou de palavras esses meus pensamentos, mas é mesmo uma pena que o gatilho do post tenha sido a partida de uma pessoa querida.
    Desejo os melhores pensamentos possíveis a você e sua companheira, e que o luto logo ceda espaço para uma lembrança gostosa e confortadora.

    PS sobre o PS2: lindíssima sua canção com o saudoso Tavito.

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    1. Miyage san, salve!

      Também eu não o conheço nem de forma simétrica (querendo, me adicione por aqui: https://www.facebook.com/leo.nogueira1), mas agradeço emocionadamente por suas palavras. Seguimos em contato.

      Abraçaço,
      レオ。

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  5. Leozim, é assim... Um bando de palavras que a gente tem pra falar por uma perda, que quase sempre é imensamente lastimável. Coisas que merecem a catarse, a revolta, a "constatação racional" (mas sofrida).
    Por outro, a gente, que tem as pessoas que estão passando por esta situação um tanto covarde e dolorida que ninguém dá conta, fica agoniado para amenizar a dor desta perda.
    E nos damos conta que quem fala de um lado e do outro não dá conta de achar as palavras que surgem com esta dor, que causa revolta, nem quem quer dar o amparo consegue alcançar algo, uma imagem, um poema, um ato, qualquer coisa que diminua a dor de quem está sofrendo.
    Fico aqui, meu coração aliado a vocês, esperando que o tempo.... que o tempo o quê? Eu perdi e não fosse ter que se acostumar, ainda estaria dizendo tantas coisas...
    Só posso oferecer minha amizade por pura incapacidade de inventar um algo que alente mais a dor que o desejo de amparo.
    Abração pra vocês, bem aconchegado, para que, de alguma forma, agregar-nos lhes dê este conforto que sabemos que é quase incapaz de suprir o que é tão necessário. Só me resta a intenção e os sentimentos!

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    1. Érico, suas palavras são mais que bem-vindos abraços. Nossa amizade tem me ajudado muito nesses tempos de autoexílio.

      Tudibão procê, mano meu!
      レオ。

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