quinta-feira, 27 de junho de 2019

A Palavra É: 47) Fogueira

Havia dias que eu não escrevia quando resolvi encarar esta virtual folha de papel em branco e só abandoná-la quando a houvesse enchido de palavras, mesmo que carentes de significado. Algo ardia dentro de mim: a incendiária necessidade de escrever. Sou, mais que um homem de palavra, um de palavras. Só que, ao fixar esta folha sem saber o que nela viria a nascer, não me vinha nada. Resolvi usar de um subterfúgio: agarrei um dos poucos livros que trouxe pro Japão e pelo qual tenho muito apreço — Con buena letra, do espanhol Joaquín Sabina, que ganhei de meu querido amigo e parceiro Pedro Moreno, aliás, Edimundo Santos —, fechei os olhos, abri-o numa página aleatória e pus o dedo indicador sobre ela. Iria escrever sobre a palavra que meu dedo apontasse.

E ela foi hogueras, na página 209, palavra que achei dentro da letra da canção No permita la virgen. Traduzi-a ao português e deixei-a no singular, porque todas as fogueiras pertencem a um único e mesmo fogo. E vejam como na vida nada é por acaso: no parágrafo acima, dizia eu que algo ardia dentro de mim, e não é que me deparo com uma fogueira? Agora, cabe a mim decifrá-la ou ser por ela devorado. Ou simplesmente juntar as brasas, as interiores às exteriores. E eis que tudo ficou fácil. Gosto do fogo, e de fogueiras, e mais ainda porque gosto do frio e me lembro de quando, ainda adolescente, fazia junto com meus amigos de rua uma fogueirinha em junho e ficávamos bebendo algum vinho barato e nos aquecendo perto dela. E que tudo o mais fosse pro inferno!

Gosto de assistir a uma fogueira, observar sua breve e incandescente existência, ver como começa, como atinge seu auge e como no fim se transforma em cinzas, não sem antes agonizar por muito tempo, gritando silenciosamente por meio de uma teimosa fumaça, que não entende o que é o ciclo da vida. Somos todos fogueiras. Nascemos da fricção de pequenos gravetos, viramos faísca, inflamamo-nos, começamos timidamente a gerar fogo, alastramo-nos e de repente nos vemos donos de uma respeitável chama que vai crescendo, crescendo, e, como que expelida pela boca de um dragão, invade os ares formosa e exuberante. Mas tudo passa, tudo passará. E um dia, pouquíssimo tempo depois, reparamos que esse fogo começa a dar sinais de cansaço.

Enfraquece, esmorece, e num São João qualquer se apaga pra sempre ante um sopro de nada — mas divino. Entretanto, é interessante perceber que, enquanto essa chama está viva e vicejante, não há quem a possa impedir de se pronunciar. Na pior das hipóteses, quando presa, manifesta seu descontentamento por meio de um incêndio interno, que vai queimando tudo por dentro indistintamente. E é assim que estou me sentindo agora, enquanto escrevo. Sou um fogo sufocado que, não podendo queimar livremente, dilacera-me as entranhas, provocando queimaduras de terceiro grau que, por serem internas, não posso chamá-las de expostas. Diria, portanto, que são impostas (em postas?).

Mas todo fogo é bonito, ainda que destrutivo e cruel — ou por isso mesmo. Porque há certa beleza na crueldade, que não nos deixa esquecer quão efêmera é a chama da vida. Reparem num incêndio numa floresta: não parece uma sinfonia de um maestro enlouquecido executada por árvores que seriam músicos que tocassem enquanto seu corpo seria devorado pelas chamas? Se esquecermos o trágico, resta apenas o belo. Triste, mas belo. Talvez a maioria de vocês vá discordar de mim, e não pretendo convencê-los. Entretanto, pra mim é difícil não enxergar uma cena dessas sem certa dose de arrebatadora emoção. Da mesma forma um prédio consumido pelas chamas...

... E aqueles seres humanos feito tochas se atirando cinematograficamente no ar como se fossem super-heróis de história em quadrinhos, voando rumo à eternidade. Confesso que me vêm lágrimas aos olhos só de pensar numa cena dessas. Sim, porque aí não há hierarquia; podia ser eu, podia ser qualquer um de vocês, podia ser o presidente da república (e aqui prefiro calar o pensamento que me acometeu)! Podia ser um Nobel da Paz ou um famigerado general responsável pela morte de muitos em alguma guerra. Porque o fogo, ao contrário dos ditadores, é democrático. Trata todos com igualdade, sejam velhos ou meninos, ricos ou pobres, homens ou mulheres, famosos ou anônimos, e não tá nem aí pra etnia daquele que em segundos vai virar carvão.

Desculpem, relevem, são 3h da manhã e estou um tanto soturno. E, embora não esteja "de fogo", confesso que intermitentemente tenho arrotado fogos sufocados. Só queria relativizar não o valor da humanidade, que é grande, mas o do indivíduo homem (ou mulher; como queiram). Achamos que somos uma brasa, mora? E de uma hora pra outra não passamos de cinzas. Algumas pessoas literalmente, como minha sogra, que foi cremada — embora eu tenha quase certeza de que sua alma boa explodiu numa festa de fogos de artifício que a projetaram em direção às estrelas e a transformaram numa delas (aproveitei o parágrafo pra deixar aqui minha homenagem a ela). Entretanto, mais triste que virar cinzas depois da morte é ser um ser cinzento em vida.

Porém, além da fogueira, temos a assadeira; quem só se queima pelas beiras; a caldeira; a centelha derradeira; quem, em contrapartida, se queima pelas eiras; a fagueira; a gasolineira; aquela que é dos fogos hospedeira; a isqueira (mulher do isqueiro); a jabuticabeira (em chamas); a lareira; ... e a respectiva madeira; a fogosa namoradeira; Jesus em chamas internas no Monte das Oliverias; no fim, a poeira; antes, a quarta-feira (de cinzas); Janaína Pachoal consumida pelas chamas do inferno em sua performance roqueira; as labaredas sorrateiras; os soldados mortos nas trincheiras; a chama verdadeira (e suas primas falsas); e, é claro, a língua de fogo zombeteira (y no permita la virgen que esta sea la mía...).

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PS1: Trilha sonora: Angela Ro Ro, Fogueira (Angela Ro Ro)



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PS2: E, claro, de bônus quem me soprou la hoguera, digo, la palabraJoaquín Sabina, No permita la virgen (Joaquín Sabina): 



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PS3: Acabei não falando da fogueira das vaidades nem daquela em que morriam as vítimas da inquisição. Vivesse eu naquela época, teria morrido em qual dessas duas?

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2 comentários:

  1. De certeza na da Inquisição você é um pouso herege. Brinco, mas quando tiver outra madrugada assim chame seu amigo Jack Daniels, pô, ver gente a saltar da janela como tochas, deu para sentir o cheiro. Abraço.

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    1. Hahaha! Valeu, Mi! De vez em quando a gente exagera, né?

      Abraços,
      レオ。

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