segunda-feira, 20 de maio de 2019

Crônicas Desclassificadas: 194) A química acaba

por Francisco Daniel
A química acaba. Assim como o amor. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, de repente do nada você percebe que a faísca que sempre esteve prestes a virar fogueira hoje não passa mais de cinzas, brasa não adormecida, mas restos mortais do último incêndio. E dá uma tristeza danada, porque a gente se põe a pensar naqueles tempos até nem tão longínquos assim quando tudo gerava fogo. É quase um sentimento de morte em vida, um envelhecimento precoce, um vazio que provoca um gosto amargo na garganta, ali mesmo por onde escorria o melhor dos vinhos. E dá-lhe procurar explicações, buscar culpados onde não há culpas. A coisa é assim, um dia está e no outro já não; um dia existe, no outro há apenas o grande Nada — teria ido parar num buraco negro interior?

Claro, às vezes é alarme falso, apenas o peso da distância. Sim, porque química exige presença, contato físico, atrito, fricção. Dado esse empecilho, a química apenas troca de recipiente, porque obviamente ninguém é tolo o bastante pra exigir dela fidelidade. As coisas vão se rearranjando com o que temos à mão. Pode não ser igual, mas ninguém garante que vá ser pior — ou melhor. É simplesmente diferente, porque não existem duas relações químicas iguais. A saudade bate e é perfeitamente natural que isso ocorra, mas aos poucos vai diminuindo graças à presença da outra relação. Pode não ser tão fácil; se antes jogávamos por música e a empatia fazia que um se antecipasse ao que o outro queria, agora a harmonia tem que ser buscada com certo sacrifício, mas no final o resultado acaba sendo positivo — até que a pessoa que estava ausente retorna e fode tudo.

E, sim, também há casos em que há culpados, mas nessas situações geralmente a culpa é de quem confiou demais na química e achou que ela fosse superior a fatores externos. Porque o homem é também vítima de seu meio, é moldado por ele e reage de acordo com seu tempo, muitas vezes mais usando o senso comum do que a própria capacidade de pensar... ou sentir. E a química, que era tão poderosa, acaba se transformando em algo menor, chama rasa que se apaga ante qualquer goteirinha no teto da relação. Nesse caso dos culpados, o que ocorre é que de repente você percebe que a outra pessoa não é quem você achou que fosse (a recíproca também é verdadeira). É quando a química não é mais forte que uma ideologia política, um preconceito, uma aversão a si próprio por ter se iludido com o outro etc.

Porque a química, coitada, não tem vontade própria. Melhor dizendo, tem, mas não é livre pra exercê-la, pois não é um corpo independente, é uma prisioneira da matéria em que habita. É o perfume dentro do frasco fechado. O que pode acontecer é que às vezes alguém abre o frasco e ela escapa, mas isso não está em suas mãos. Ela é uma espécie de gênio da lâmpada que tem lá seus poderes, mas precisa que alguém o convoque. É, não é fácil ser química. Em contrapartida, não é fácil também ter química, dominá-la e prendê-la dentro de si quando ela está solta, pairando no ar. É como sentir um perfume e não poder fazer que ele se impregne em (e de) nós. Ao passo que uns desfilam deliciosamente perfumados, outros contam apenas com os cheiros do próprio corpo: são os sem-química.

Entretanto, não é deles que eu queria falar. Na verdade, eu vim aqui — por incrível que pareça — falar de música. Soube que uma parceira que sempre admirei e por quem tenho (sigo tendo) bastante carinho acaba de lançar nas plataformas digitais um disco que gravou há anos e que nunca havia lançado. Nesse disco, há algumas parcerias comigo, inclusive a faixa que dá nome ao trabalho. O que me lembrou que desde que esse disco ficou pronto nunca mais compusemos nada. Fiquei então encafifado, procurando culpados, e foi aí que me deparei com a tal da química. Não a culpo (nem a mim); o que mais me importa é a alegria de saber que esses filhos queridos que até então estavam, como direi?, in vitro vieram à luz. Filhos de pais separados, mas belos e saudáveis.

Sigo feliz por essa parceria que me proporcionou uma química passageira, mas que gerou frutos duradouros. Não posso dizer o mesmo de minha relação com outros. Com fulano, o fogo foi mais fugaz; com beltrano, extinguiu-se antes de deixar herdeiros; com sicrano ainda há uma grande obra pra contar como tinham uma relação extraordinária seus pais biológicos... relação essa que infelizmente, "na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio", acabou. Houve mesmo uns/umas com quem a química foi boa, mas sabe-se lá por que o ato avulso não se repetiu — pensando bem, talvez tenha sido bom só pra mim... De ilusão também se vive; do passado também, sobretudo quando há os filhos, que não nos deixam esquecer os momentos de felicidade que os geraram. É, como o amor numa crônica de Paulo Mendes Campos, em todos os lugares a química acaba; a qualquer hora a química acaba; por qualquer motivo a química acaba. E é exatamente pra isso que ela acaba: pra recomeçar a qualquer minuto e nos mais inesperados lugares.

E este é o motivo pelo qual novas parcerias e canções sempre surgirão. Não é verdade, Vinicius? A bênção, poetinha!


***


6 comentários:

  1. Cronica linda como sempre, você é um franco-atirador de caneta.Outras parcerias virão por certo. Abraço.

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  2. Parceiro, sinto que temos uma química boa, posso confessar à minha mulher?

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    1. Hahaha! Boa, parceiro! Se você não se importar, eu não me importo.

      Abraçaço,
      レオ。

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  3. Como químico, não poderia deixar de reagir a essa crônica! Lindo texto, como sempre. E nada de culpas se a química acaba; afinal, tudo se transforma!
    Abraços!

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    1. Salve, Miyage san! Grato pela visita e pelas sempre gentis palavras.

      Abração,
      レオ。

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