segunda-feira, 22 de junho de 2020

Esquerda, Volver: 29) O último homem (de Mary Shelley) — fragmento

Desde que o mês de abril abriu seus portões pra que entrássemos, estamos eu e minha mulher confinados. Ao final de junho, lá se terão ido três meses, mais de 90 dias, tempo suficiente pra (re)pensar muita coisa. Estamos sempre à procura de tempo, reclamando que estamos ocupados com uma série de assuntos que, na maioria das vezes, não têm importância nenhuma e mal nos damos conta de que essas ocupações todas são um artifício da sociedade pra que não tenhamos tempo pra pensar. Pois, como diz o ditado, "de pensar, morreu um burro". É mais ou menos meu caso. Não morri, contudo, pois, mais que burro, sou teimoso. Ah, pra encerrar a questão da pandemia no Japão, já há algumas semanas o confinamento se flexibilizou com a curva descendente da propagação do vírus, mas as coisas ainda estão longe de voltar a sua normalidade.

Isto posto, volto a minhas divagações. Os três primeiros dias em que me deparei com essa nova situação, senti que poderia desabar; foi quando percebi que se me apresentava a ocasião de me dar ao luxo de fazer coisas com as quais sempre sonhara, e por tempo ilimitado: escrever, ler, compor, estudar, biritar, vagabundar... E, munido dessa certeza e desse rol de possibilidades, lá fui eu, um privilegiado no caos, beber dessa fonte de conhecimento. Terminei um romance que estava parado havia quase três anos, compus algumas letras e li muitos, MUITOS livros. Entre eles, algumas biografias e outras obras de não ficção; às vezes, pra relaxar a mente, me engalfinhava com um ou outro Dumas (pai); dediquei muitas horas a alguma poesia, sobretudo de Manoel de Barros; e, no intuito de beber um pouco de sábia fonte de conhecimento sobre a mente humana, reli a pequena joia que é O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson.

Dentro dessa maravilhosa seara literária, encontrei um que tratava justamente de pandemia, El último hombre — por fatores que não vêm ao caso, li-o em espanhol —, de Mary Shelley, a mesma autora do clássico Frankenstein. Trata-se de um romance menos conhecido dessa autora inglesa que, apesar de ter nascido quando o século XVIII agonizava, teve a ousadia de escrever um senhor catatau que discorre acerca de uma praga que dizima a humanidade. Só que o ousado disso tudo é que o romance é uma ficção científica apocalíptica que se passa na segunda metade do século XXI, criado por sua inocente imaginação de quem não podia prever a rapidez do avanço tecnológico dos dois séculos posteriores àquele em que ela cresceu e viveu. 

Portanto, a parte mais fraca do livro é justamente o fato de que o século XXI imaginado por ela é muito parecido com seu XIX. Entretanto, os momentos mais chocantes da história são aqueles em que ela, com riqueza de detalhes, relata a lenta e gradual derrocada da vida humana. Antecipo que não é um livro feito pra leitores fracos. O começo, embora interessante, é lento e excessivamente descritivo, e o vírus letal que muda os rumos da história só começa a aparecer lá pela metade do romance. Assim, como sabemos que vem chumbo grosso, a leitura dessa primeira metade é razoavelmente cansativa e quase aborrecida. Eu, por exemplo, mesclei sua leitura com a de inúmeros outros livros — que acabei de ler antes —, e só agora, quase três meses depois, logrei terminá-lo. Contudo, e especialmente tendo em vista a triste realidade que o Brasil vive hoje, que acompanho apreensivamente a distância, resolvi trazê-lo pra cá e discorrer um pouco sobre ele. Pra finalizar, escolhi um fragmento que achei bastante interessante e que devia ser lido principalmente por meus patrícios que seguem iludidos pelas lambanças desse (des)governo. A ele:


Fragmento de O último homem
De Mary Shelley

Meus leitores alguma vez observaram as ruínas de um formigueiro imediatamente depois de sua destruição? Num primeiro momento, este parece deserto de seus anteriores habitantes. Depois de algum tempo, vê-se uma formiga avançando penosamente pelo montículo arrasado. Em seguida, saem de duas em duas, de três em três, e correm daqui pra lá à procura de suas companheiras perdidas. O mesmo fazíamos nós sobre a terra, vagando aturdidos ante os efeitos da peste. Nossas moradas vazias continuavam de pé, mas seus habitantes se congregavam na penumbra dos túmulos.

À medida que iam perdendo efeito as regras da ordem e a pressão das leis, houve aqueles que começaram a transgredir os usos costumeiros da sociedade, primeiramente com cuidado e vacilação. Havia muitos palácios desertos e os pobres ousaram por fim, sem que ninguém os repreendesse por isso, invadir aqueles aposentos esplêndidos, cujos móveis e ornamentos eram um mundo desconhecido pra eles. Constatou-se que, apesar de o freio de toda circulação de propriedades decretado ao princípio ter levado à pobreza repentina aqueles que antes se apoiavam na escassez artificial da sociedade, quando desapareceram os limites da propriedade privada os produtos do trabalho humano existentes no momento excediam em muito o que aquela minguada geração era capaz de consumir. 

Pra alguns dentre os pobres, aquilo foi motivo de grande regozijo. Agora sim éramos todos iguais. Magníficas residências, tapetes luxuosos, leitos de plumas se achavam disponíveis pra todos. Carruagens e cavalos, jardins, pinturas, estátuas, bibliotecas principescas, de tudo havia em abundância pra todos, e inclusive sobrava. E não havia nada que impedisse ninguém de tomar posse de sua parte. Sim, agora éramos todos iguais. Porém, muito perto de nós nos aguardava algo que nos igualaria ainda mais, um estado em que a beleza, a força e a sabedoria resultariam tão vãs quanto as riquezas e a linhagem. O túmulo abria sua bocarra ante nossos pés e aquela ideia nos impedia a todos de desfrutar da abundância que, daquele modo tão horrível, apresentava-se ante nós.


Abaixo, o fragmento em espanhol tal qual o li:


Fragmento de El último hombre
De Mary Shelley

¿Alguna vez han observado mis lectores las ruinas de un hormiguero inmediatamente después de su destrucción? En un primer momento este parece desierto de sus anteriores habitantes. Al poco se ve una hormiga avanzando penosamente por el montículo arrasado. Luego salen de dos en dos, de tres en tres, y corren de aquí para allá en busca de sus compañeras perdidas. Lo mismo éramos nosotros sobre la tierra, vagando aturdidos ante los efectos de la peste. Nuestras moradas vacías seguían en pie, pero sus habitantes se congregaban en la penumbra de las tumbas.

A medida que iban perdiendo efecto las reglas del orden y la presión de las leyes, hubo quienes empezaron a transgredir los usos acostumbrados de la sociedad, al principio con tiento y vacilación. Había muchos palacios desiertos y los pobres osaron al fin, sin que nadie les reprendiera por ello, internarse en aquellos aposentos espléndidos, cuyos muebles y ornamentos eran un mundo desconocido para ellos. Se constató que, aunque el freno a toda circulación de propiedades decretado al principio había llevado a la pobreza repentina a quienes antes se apoyaban en la escasez artificial de la sociedad, cuando desaparecieron los límites de la propiedad privada, los productos del trabajo humano existentes en el momento excedían en mucho lo que aquella menguada generación era capaz de consumir.

Para algunos de entre los pobres aquello fue objeto de gran regocijo. Ahora sí éramos todos iguales. Magníficas residencias, alfombras lujosas, lechos de plumas se hallaban disponibles para todos. Carruajes y caballos, jardines, pinturas, estatuas, bibliotecas principescas, de todo había en abundancia para todos, e incluso sobraba. Y no había nada que impidiera a nadie tomar posesión de su parte. Sí, ahora éramos todos iguales. Pero muy cerca de nosotros nos aguardaba algo que nos igualaría aún más, un estado en que la belleza, la fuerza y la sabiduría resultarían tan vanas como las riquezas y la alcurnia. La tumba abría sus fauces bajo nuestros pies y aquella idea nos impedía a todos disfrutar de la abundancia que, de aquel modo tan horrible, se presentaba ante nosotros.

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PS: O saudoso José Saramago, até hoje nosso único Nobel de Literatura em língua portuguesa, disse certa vez numa entrevista que era uma vergonha que no mundo ainda houvesse gente passando fome, visto que o que se produz nele dá com sobra pra alimentar a todos e afirmou que o que impede que isso seja possível é a ganância exagerada de alguns poderosos. Assim, e filosofando acerca da leitura acima, pergunto-lhes eu, damas e cavalheiros: nessa hora, o que valem o desinformado medo dos comunistas e a defesa irracional do liberalismo? Tem que mudar isso aí, talkei?

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