Jan Rose Kasmir fotografada por Marc Riboud |
Esse mesmo homem tem o despropósito de até querer ser mais que seus próprios semelhantes e interferir também no destino e nos gostos da vida alheia. Se pararmos pra pensar bem, chega a ser o cúmulo do ridículo ver um esbravejante marmanjo espumando pela boca, todo raivoso, achando-se porta-bandeira da moral e coisa e tal por causa de preferências sexuais de outro ser humano, seu igual. Da mesma forma, o fato de esse mesmo sujeito ter o rosto rosado não lhe dá o menor direito pra que ele se sinta superior a outro ser humano, seu igual, que por fatores que não lhe dizem respeito em absoluto não tenha as faces coradas como a sua. Esse cidadão, achando-se tão superior, tão mais inteligente e avançado, demonstra apenas o quão estúpido é. Fosse eu um pouco mais desbocado, diria "supremacia branca meus bagos". Entretanto, como sou educado, não direi.
Há alguns anos, lancei meu primeiro romance, Filho da preta!, que contava a história de uma personagem que, como o título revela, tinha mãe preta, mas que, como tinha pai branco, quis o acaso que nascesse com a pele clara o suficiente pra que sonhasse em "viver vida de branco" e se tornasse, assim, mais racista que os próprios brancos. Esse comportamento de minha personagem é, infelizmente, um traço comum em nossa sociedade. O medo do preconceito faz muitas vezes um sujeito renegar a si próprio, mesmo que inconscientemente. Certa vez, a título de exemplo, vi num programa de TV o ex-jogador de futebol Ronaldo Nazário se compadecer com o infortúnio dos afrodescendentes, mesmo sendo ele um (pasmem!) branco (com esse cabelo, meu filho?).
Este poderia ser um comentário até leviano, não fosse, mais que isso, fruto de cabal ignorância. Afinal, no Brasil nem mesmo um loiro de olhos azuis pode afirmar com segurança ser um branco "puro". E, no mais, o que viria a ser pureza? Quando em nome dela outras etnias são impiedosamente dizimadas, a única coisa a que não podemos chamar esse ato é puro. Por essas e outras, sempre detestei essa espécie de "pensamento de boiada", seja esse pensamento ideológico, racial, cultural, religioso, futebolístico, sexual etc. etc. Quando um indivíduo abre mão de sua individualidade e passa a repetir feito um papagaio palavras de ordem está, inadvertidamente, apontando uma arma contra si próprio, cometendo um suicídio em vida, que é aquele que o mata, mas o deixa respirando.
E é assim que, num momento em que todos devíamos estar unidos pra enfrentar um mal maior e que afeta a todos, sem distinção de raça, religião, poder aquisitivo, time de futebol, preferência sexual e blá-blá-blá, vemos nosso país em chamas e com uma parcela lúcida da população tentando apagar esse incêndio enquanto outra, menor, mas infinitamente desequilibrada, trata de propagá-lo mais e mais, seguindo as ordens de seu "messias". Messias esse que, por sua vez, tenta imitar toscamente gestos e ações de seu irmão do norte, o mesmo norte que também está em polvorosa, não podendo assistir impassível a arbitrariedades daqueles que são pagos pra proteger a população. O tal do coronavírus em poucos meses ceifou centenas de milhares de vidas; realmente não precisávamos ajudá-lo, fosse por descaso com os pobres e idosos (caso do Brasil) ou simples ódio à cor da pele de nosso semelhante (caso dos EUA).
Que o poder corrompe, sabemos todos (e, como disse outro, o poder absoluto corrompe absolutamente), e muito desavisado confunde as bolas, crendo piamente que o uso de uma farda lhe dá poder, status... autoridade. Mesmo pra tirar a vida de seu semelhante. Um fardado (há exceções, claro) acha que sua farda e seu distintivo o tornam alguém acima do bem e do mal e podem até mesmo milagrosamente embranquecer sua pele, fazendo-o tratar seus irmãos de raça como se fossem lixo ambulante. Esses acontecimentos todos — ou bad news — me trouxeram à lembrança a execução sumária no Rio do músico Evaldo dos Santos Rosa, assassinado a sangue frio com 80 tiros disparados por militares há pouco mais de um ano quando, dentro de seu carro e acompanhado por sua família, dirigia-se a um chá de bebê. Adivinhem a cor dele.
E o que mais nos deixa revoltados (ou devia deixar) é que não foi um fato isolado.
E o que mais nos deixa revoltados (ou devia deixar) é que não foi um fato isolado.
***
PS: Pra ilustrar esta prosa, compartilho com vocês canção que compus em parceria com o mano Dimi Zumquê também há pouco mais de um ano, aqui interpretada por ele e suas duas belas filhas:
FLORES CONTRA FUZIS
Eles não pretendem nos deixar alternativa
Querem nos transformar no que acreditam que somos
Babando de ódio, sangue e pus, em carne viva
Eles não têm como nós nossos cromossomos
E se a gente revida eles dizem "eu não disse?"
Na gaiola nos metem ou, pior, num fosso
Nos espancam, talvez, pra sair da mesmice
Mas pra tanta tristeza inda sou muito moço
Eles querem roubar nossa cidadania
Nos tornar animais, transmitirem seus vírus
Depois nos dizimar feito estanca-sangria
Sem pedir documentos (rá-tá-tá-tá-tá-tá-tá!): 80 tiros
E eu...
Só tenho flores contra fuzis
Armado apenas de arte & manha
Mirando ao longe um certo país
Onde eu não perca sempre que você ganha
Só tenho o canto da minha cor
E o encanto do meu suingue
Se eu te enfeitiço, faça o favor
Não é razão pra que você se vingue
Mas não temos sangue de barata
Cuidado com a nossa serenata
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Belo texto, bela letra, bela reflexão parceiro!
ResponderExcluirValeu, parceirão! Demorei, mas cumpri a promessa! Abração!
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