segunda-feira, 15 de junho de 2020

Os Manos e as Minas: 37) Meus salvadores no Japão (parte 2) — Érico Baymma, meu super-homem de cristal

Há milhares de anos, praticamente em outra vida, tive um grande amigo a quem — até então — eu nunca vira, mas sempre amara. Éramos um par formado por duas figuras ímpares, fora de época e lugar, cavalheiros d'antanho que se comunicavam por e-mail, aproveitando a tecnologia, mas como se essas trocas de correspondências fossem antigas missivas, muito longas por sinal; apenas economizávamos o selo e a ida ao correio. Eu aguardava com ansiedade suas respostas, longas e deliciosas, que eu mais devorava que lia. Eram outros tempos, e eu tinha tempo e ele também — ou, pelo menos, se não tínhamos o inventávamos. Seu nome, Sérgio Veleiro (até lhe fiz uma canção; ouçam-na aqui). Ele era do Ceará — eu também, mas aquele morava em Fortaleza, e eu em Sampa.

O tempo passou e, embora a amizade seguisse forte, as palavras foram escasseando. As missivas vinham — e iam — cada vez mais em menor número e mais espaçadamente, até que um dia, como que por encanto, deixaram de vir — e ir. Lembro que trocamos ainda presentes; livros, sempre livros, e um que ganhei dele se chamava Felicidade clandestina, de Clarice Lispector, uma de suas autoras favoritas. Era um livro de contos, mas acredito que ele me presenteou justo este e não outro por causa de um conto que não por acaso se chamava Uma amizade sincera, que tratava do distanciamento de dois amigos que, embora afastados, continuavam se entendendo, pois não careciam mais de palavras. Tempos depois, cheguei à conclusão de que a correspondência acabou porque ele se cansou de ser meu terapeuta e eu me cansei de não saber exatamente quem era meu terapeuta.

Os milênios se passaram e eis que hoje, matusalêmico (ou matusalênico; como queiram), em outro país e dentro de outra existência, a história se repetiu de outra forma, mas com igual intensidade. Explico: desde que me mudei pro Japão, tenho sentido muita solidão. Em algumas ocasiões, ela vem tão sufocante que chega a me fazer ofegar ou mesmo perder a respiração. São momentos em que a dona Depressão me visita, sempre me trazendo uma garrafa de regalo. E eu converso horas e horas com ela. Às vezes, ouvimos música juntos; às vezes, eu choro em seu colo; e às vezes me esqueço do fuso e ligo desesperadamente pra amigos no Brasil que geralmente estão dormindo. Todos, menos um.

Conheci Érico Baymma num grupo virtual de discussão sobre música, a M-Música, que ainda hoje existe (aliás, onde também travei conhecimento com Veleiro). Sempre achei Érico um cara superinteligente. Tempos atrás, revisei um livro coletivo de contos (no qual participei também como contista) que continha um dele (quer dizer, acho que foram dois), e foi quando percebi que ele também mandava bem na ficção. Érico foi por muito tempo radialista, e nossa amizade começou a florescer quando ele me entrevistou pra um desses programas. De lá pra cá, tornamo-nos amigos e a amizade entrou numa espiral tão surpreendente que em pouquíssimo tempo nos tornamos, quase sem querer, confidentes.

Daí que, já no Japão, sentindo falta de meus amigos, mas afastado deles pela geografia e pelo fuso, encontrei solo amigo em Érico, que sempre estava desperto e disponível independente da hora em que eu dele precisasse. Muitas vezes, eu lhe ligava às 16h (4h no Brasil), e lá estava ele tomando um suco ou fritando um ovo como se fosse meio-dia, e sempre a postos pra me ouvir — e, quando não estava, levantava-se, lavava o rosto, fazia um café e em cinco minutos lá estava ele 100% disponível. E eu me sentia muito mais bem servido que a maioria dos milionários depressivos, pois tinha um terapeuta gratuito, amigo e sinceramente interessado.

Quis a ironia do destino que nunca tivéssemos tido a oportunidade de um encontro físico real, mas apesar disso — ou quem sabe por isso mesmo — acabei encontrando nele um ombro amigo tão especialmente único, que me sentia tranquilo pra revelar segredos e confessar, como diria Fernando Pessoa, infâmias e covardias. Às vezes, de pilequinho, entrava numas de tratar com ele de meus fracassos sexuais, minhas travas, minhas crises existenciais; coisas que nunca tinha revelado a nenhum de meus melhores amigos. E ele, por sua vez, encontrando em mim uma verdade tão pura, acabou também vez em quando pulando da freudiana poltrona pro tão ansiado divã. E, por sua vez, revelou-me segredos "cabeludos". 

Até que a relação chegou numa fase em que os sentimentos se embaralharam e foi quando percebi que, ao passo que ele me fazia bem, eu em contrapartida lhe fazia mal; e eis que o que era uma amizade sincera se transformou numa relação cheia de cobranças e recriminações e uma única palavra dita acabava se transformando numa gota que fazia transbordar o líquido do copo. E eu, egoísta que sou, fui paulatinamente o afastando, e, quando tinha coragem pra chamá-lo, terminava gastando horas falando de amenidades. Até que ele não suportou e unilateralmente cortou o mal pela raiz. 

Érico Baymma é um grande artista, tem dois belíssimos discos instrumentais (um deles experimental demais pra meu gosto), atua em várias instâncias da arte, sempre com competência acima da média, mas como — por causa de uma doença que lhe minou as forças físicas — há quase duas décadas vem criando muito pouco, ao contrário de mim, acabou que eu, inconscientemente — e extrapolando meu direito de ser egoísta —, não tive sensibilidade pra perceber que, enquanto alugava seus ouvidos pra vomitar minhas infantis lamentações, muitas vezes me fazia de surdo quando as — justas — lamentações vinham dele.

Entretanto, e em nome da sinceridade, preciso reconhecer que, se a relação chegou a esse ponto, grande parte da culpa foi dele. Explico: seu excesso de zelo e de preocupação em determinado momento me fez me sentir uma criatura de porcelana. E daí comecei a pensar que, quando um tipo que não sai de casa e vive a maior parte do tempo na cama passa a ter uma preocupação excessiva por outro que trabalha, pode ir e vir a seu bel-prazer e tem pleno domínio de suas capacidades mentais e físicas, é porque alguma coisa está fora da ordem. Pra resumir: acho que, por alguma vingança do destino — visto que sou um cearense falsificado —, minha sina é ser eternamente usado e enxotado por amigos cearenses, feito rato de laboratório. 

Mas quero finalizar esta crônica-desabafo admitindo que continuo amando esses dois cabras que em determinado momento de minha vida foram superimportantes — e continuam sendo, embora hoje à revelia deles.


***

PS: Estamos já em setembro de 2020, ou seja, três meses depois de eu ter publicado a homenagem acima. Como, pra felicidade geral da nação — e em particular a minha e a dele —, voltei às boas com Érico, e a pedido dele, vim aqui acrescentar esse detalhe, aliás não desprovido de importância. Um final feliz, pois, ainda que depois do fim do conto de fadas. Sigamos em frente então, regando a flor da amizade, tão necessária.

***




8 comentários:

  1. Leozim, nós somos homens de cristal, você deve ver isto no espelho, com certeza, e temos nossas susceptibilidades. O fechamento eventual foi apenas um demonstrativo dos fechamentos eventuais que me apresentou. Continuo sendo seu fiel amigo que - mais uma vez eventualmente - tem que mostrar que do outro lado também há alguém que se importa muito com você.
    Espero que os raios de luz da terra onde está o clareiem para saber que uma amizade como a nossa não é feita somente de aceitações, muito menos, a uma altura dessas, serei o terapeuta que aceita tudo, muito menos um super-homem, e denominado "de cristal" é capaz de aceitar tudo calado.
    Vamos crescer, meu querido!
    Um beijo no coração!

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    1. Caro Érico, demorei pra responder e seu comentário caducou, né? Sorry. Mas o tempo é senhor de tudo; confiemos nele.

      Abração,
      レオ。

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  2. AMUCEISTUDU! Que bom te ler/reler Leo Maravilha, que bom saber deste querido amigo que também tão longe ficou, Erico Baymma, e também deste Sergio Veleiro que ainda tenho a possibilidade de vez ou outra saber pelo grupo que nos reuniu, o M-Musica. A Vida leva-e-traz tudo o que passa por nós e eu faço o maior dos esforços, sempre, pra ser o mais feliz que possa com cada acontecimento que se me apresenta! BEIJUNUCEISTUDU!

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    1. Salve, "Taxista"! Que bom te saber bem! Cuide-se, viu? E até breve.

      Bjs,
      レオ。

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  3. Nem contou que fizemos uma música linda recentemente, Tato! ❤️ Vocês dois aí, deixem de bestagem e voltem pra M Música! Veleiro

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    1. Veleirim, deixa passar esse momento de introspecção.

      Abração,
      レオ。

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  4. Léo, de todas as composiçoes que fizemos juntos, eu tenho um lugar reservado na memórian para um trecho deveras especial para mim "...Quem nunca para pra pensar passar batido/ e tarde pensará no que teria sido/ os anos passam como carros nunma estrada/mas só levamos do caminho a caminhada..." Estes versos guardo-os como se houvesse ouvido dizer que sairam de um tal famoso filóso do século tanto, do país àquele. Nosso encontro será sempre "um minuto na eternidade"

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  5. Salve, Edimundo, parceirão! Tamo junto!

    Abração,
    レオ。

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