quarta-feira, 21 de março de 2012

Ninguém me Conhece: 62) O silêncio e as palavras de Sérgio-Veleiro

Costumo brincar (a sério) dizendo que me vejo sempre como tendo 20 e poucos anos (como na canção). Realmente não me sinto confortável com os 40 que caíram abruptamente em meu colo (ou melhor, em minha cabeça). Contudo, sob alguns aspectos, posso me considerar um tiozinho. Na ranzinzice, no gosto musical, na paixão pela literatura e pelo cinema de autor, na teimosia de bater sempre na mesma tecla, na obsessão pelo assunto educação... Enfim, ao contrário de outra canção, não me sinto um moço velho; antes posso dizer que me sinto um velho moço.

1) Samba do Desassossego (Pedro Moreno - Sérgio-Veleiro)
Pedro Moreno e Marta Llenas

No entanto, perto de Sérgio-Veleiro, que é ano e meio mais moço que eu, sou uma verdadeira criança. Veleiro deve ser o cara mais velho que conheço. E isso é um elogio! Pois quando digo velho quero dizer experiente, sábio, culto, dono de uma bagagem que só possuem aqueles que passaram das seis décadas de vida (e olhe lá!). Mas o destino tem um senso de humor dos mais peculiares. Quis ele que esses dois "compadres" se conhecessem justamente por vias virtuais. Conto.

Já falei aqui um milhão de vezes sobre a M-Música, lista de bate-papo musical da qual participo. Pois bem, conheci Veleiro lá. Mas conhecer é faltar com a verdade. Apenas sabia de sua existência. O cara me fisgou mesmo quando postou lá um delicioso texto, daqueles bem generosos, a respeito do CD In Alpha, de Fernando CavallieriVeleiro, pacientemente, descrevia canção por canção, esmiuçando cada uma e dando sobre elas seu parecer. Eu, que conhecia o disco e era (sou) amigo do cantor, deliciei-me com a leitura. Tanto a ponto de ter a cara de pau de escrever-lhe um e-mail só pra parabenizá-lo.

Mas aí Veleiro teve a infeliz ideia de responder. O que se sucedeu depois disso foram laudas e laudas de páginas virtuais de lá pra cá, de cá pra lá; verdadeiras cartas à moda antiga, daquelas escritas com o velho prazer da prosa, sem pressa de acabar, tratando de uma infinidade de assuntos, falando mal (e bem) da vida alheia; trocando informações literárias, musicais; fazendo confidências; quebrando o pau; celebrando a velha e boa amizade... E tudo isso incrivelmente sem nos conhecermos! Quando finalmente Veleiro veio a Sampa (esqueci de dizer: o moço é de Fortaleza) já nos havíamos escrito uma Bíblia! Brinco que se fosse em outra época esses escritos teriam dado um delicioso livro desses de cartas trocadas (e alguns processos).

Veleiro agiu em minha personalidade como um verdadeiro corruptor, pois me iniciou na droga da verdade. Explico: o moço tem o mau hábito de ser sincero praticamente o tempo todo. Lembra um pouco aquela personagem do conto O Homem da Cabeça de Papelão, de João do Rio. E eu, que sempre fora um medroso e, por conta disso, versado na hipocrisia, a cada nova troca de e-cartas, sentia-me pior ao ver a transparência de um lado proseando com a neblina que pairava do lado de cá. Foi aí que comecei, como criança que aprende a andar, aos trancos e barrancos, a tentar ser mais verdadeiro, sobretudo comigo.



2) O Teu Silêncio (Clarisse Grova -Sérgio-Veleiro)

Porém, por incrível que pareça, pra uma pessoa que escreve com tamanha gana, Veleiro é dado também a longos (e cruéis) silêncios. Boa dose de sua verdade ele aprendeu a dizer por meio do silêncio. E acabou que, como bom corruptor, viciou-me em dizer a verdade de tal maneira que acabou virando meu Freud particular. E, quanto mais eu me expunha, mais ele se resguardava. Até chegarmos a um ponto em que, sem que nos déssemos conta, começamos a nos afastar. Talvez porque eu tenha cansado de me expor, e ele, de se resguardar. Foi assim, sem briga, sem mágoa (praticamente como as duas personagens do conto Uma Amizade Sincera, de Clarice Lispector, que paulatinamente se veem sem assunto), que nos afastamos, sabendo-nos amigos sinceros.

Veleiro soube forjar os rumos de nossa amizade como bom enxadrista que sempre encurrala o adversário e não deixa que este tenha oportunidade de pensar, pois está sempre ocupado em se livrar do ataque do outro. Os presentes que me enviava (sempre livros) funcionavam como jogadas decisivas. Quando citei Clarice não foi à toa, o livro que contém o supracitado conto, Felicidade Clandestina, foi-me dado por ele. O mesmo sucedeu com o romance As Brasas, do húngaro Sándor Márai, que trata do reencontro de dois grandes amigos após 41 anos. Enfim, quem não leu os dois livros não vai entender este parágrafo. Embora talvez não o entendam também os que os leram...

Minha amizade com Veleiro teve também, de minha parte, certo orgulho intelectual, pois me fazia bem ao ego saber-me amigo de um cara que, apesar de me ser superior, cultivava minha amizade. Da mesma forma que me fazia bem ter por perto (e com exclusividade) tamanha qualidade de prosa, afinal, sempre fui fã da escrita de Veleiro, seja em prosa, seja em verso. E é justamente dos versos de Veleiro que gostaria de tratar agora. Este sujeito, sim, bem poderia servir como exemplo do que é ser poeta na crônica que publiquei recentemente (O Poeta x a Poesia). Apesar de ser inédito e não se preocupar muito com sua "carreira" acadêmica, visto que, como funcionário público, vive situação confortável.

Mas Veleiro vive a poesia como poucos, com tal intensidade (e profundidade) que, se tentamos acompanhá-lo, corremos o risco de afogamento. E, como bom poeta, é um eterno solitário. Por mais que tenha muitas relações amorosas ou amistosas. Acredito que, se um sábado à noite lhe proporcionar um café forte e a boa companhia de um livro, pouca alegria mais que essa quererá ele, que será capaz mesmo de, em determinado momento, fechar o livro e, ele próprio, em transe, sangrar alguns versos de sua lavra.

Não à toa, tendo de pia o nome Sérgio Mota, autodenominou-se Veleiro Perdido, ou Sérgio-Veleiro, ou ainda simplesmente Veleiro. Ele não é cantor, músico, nem mesmo letrista; contudo, seus poemas são frequentemente musicados por muita gente boa, como Clarisse GrovaEduardo FrancoPedro MorenoSonekka... Sim, porque sua dor poética, a dor que deveras sente, é bem afeita às notas musicais. Um exemplo de que, em mãos certas, poesia e canção, sim, conversam... e rimam.



3) Meu Analista (Sonekka - Sérgio-Veleiro)

Algo da prosa repetida que gasto agora já tinha escrito quando publiquei aqui mesmo sua crônica que foi responsável por nossa amizade. Quem quiser conhecer um pouco mais de sua verve, leia Um Veleiro in Alpha. Lá também postei uma letra que compus em sua homenagem, que acho pertinente repetir aqui, nem que seja pra pôr ponto final nesta prosa, pois, se eu não encontrar um motivo pra terminar, vou continuar indefinidamente, pois sobre Veleiro assunto é o que não falta. Ah, a letra que lhe fiz foi musicada por Affonso Moraes e Alê Cueva porque eu, pra coroar a homenagem, sabedor da admiração que Veleiro nutre por Affonso, pedi a este que musicasse a homenagem àquele, e Affonso pediu o auxílio de Alê pra arredondar a que acabou se chamando, obviamente: 

VELEIRO PERDIDO

Sou um veleiro estranho
Roubo do mar seu tamanho
Pra caber na imensidão
E, quando me sinto inteiro,
Sou agulha num palheiro
No celeiro da criação


Sou um veleiro perdido
Que só encontra sentido
Quando perde a direção
Não creio na fé que sinto
A fé é um marujo faminto
De uma outra embarcação


Eu sou somente um veleiro
Cruel, porque verdadeiro
E mais fiel que um cão
Fiel a um dono tirano
Meu amigo e oceano
A quem chamo coração

Sou um veleiro estranho
Às vezes, no mar me entranho
Pra que a solidão me banhe
E, quando me sinto parco,
Lembro que sou só um barco
No colo da nave-mãe

***

Veleiro também está no Caiubi.

Leia algumas de suas crônicas no A Preço de Banana.

***



***

8 comentários:

  1. Moço, não brinca com meu coração não que ele tem muitas décadas. Ouvir o Seu Affonso cantando é de arrepiar, e vai me emocionar por todos os anos da vida. Aquela prosa que tive com ele no Caiubi foi reflexo de tanta admiração que tenho pela boa música brasileira de outrora, que a de agora não tá ajudando muito. E tudo que ele cantarolava eu sabia e tudo que eu pensava ele adivinhava. Lembro que ficamos meia hora tentando cantar aquela música do caramanchão do Chico Alves (o meu amor morreu na virada da montanha...).

    Essa sua letra tentando me definir é bem sincera, mas não sei se sou merecedor não. Embora queira muito ser, mas muito mesmo. E essa coisa da verdade (comum a todos e que afinal não é de ninguém, lembra?) é a única coisa que tenho e que não consigo me livrar. Bom ou ruim, tem lá suas compensações e seus fardos. Cruel porque verdadeiro...

    Obrigado por postar também esse vídeo do Pedro Moreno, esse moço já me deu muitas alegrias em conversas e canções. É um sujeito iluminado e na minha ânsia de verdade só consegui ter certeza disso quando o encontrei ao vivo e lhe olhei fundo nos olhos. É um cara de muita sensibilidade nesse nosso mundo, mundo, árido mundo...

    Gratíssimo pelas palavras, pelo revival do início da nossa amizade em cartas longas, agora cada vez mais curtas. Tudo mudou, nós, o rio, o mundo. Até Heráclito mudou. Mas a amizade já está registrada nas pedras que sonham sozinhas no mesmo lugar. Como dizia a canção...

    bjos

    Veleiro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Veleiro, estava havia tempos pra escrever este texto, mas esperei a data de seu aniversário pra pôr em execução tal plano. Afinal, no aniversário todo mundo fica mais sentimental e até deixa passar qualquer bobagem que possamos escrever. hehe!

      Mas é isso, a boa amizade, mesmo adormecida, está lá, numa suíte presidencial do coração, esperando só o momento de alguém lhe abrir as janelas pra arejar o cômodo. E tô sentindo que vai ser logo!

      No mais, falar de seu Affonso e de Pedro Moreno é papo pra muita lauda!

      Beijão e, mais uma vez, feliz aniversário!
      Léo.

      Excluir
  2. Muito emocionada ao ler e escutar os frutos de uma bela amizade, alentada por bons escritores e acalentada pela música que nos uniu a todos no espaço virtual criado pela nossa Nana Soutinho, onde estamos a aprender sempre uns com os outros. E cada um consigo mesmo... Ao ensejo, *parabenizo Veleirim*, que se faz de perdido pra melhor mostrar-nos a rota. Obrigada pelo muito que compartilhamos e por tanta generosidade. E ao Léo, deixo meu tributo por este texto tocado de ternura. Que os bons ventos vos conduzam pelos mares ainda por navegar. Um abraço!
    Regina Makarem

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Regina, a essas belas palavras só tenho a acrescentar que faço delas minhas. E, sim, dona Nana tem muito crédito por nos ter proporcionado esse bom convívio diário.

      Abraços do
      Léo.

      Excluir
  3. Bah! Sem mais palavras. Parabéns ao dois.
    Beijo,
    GB

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tchê! Com mais silêncios então, Gabi. Hehe!

      Beijos pai-d'égua em você também,
      Léo.

      Excluir
  4. Sou um "cabra" realmente privilegiado por ter este dois poetas como amigos e parceiros. Obrigado, Léo, obrigado Veleiro. Sou, de verdade, muito grato pela amizade e o carinho de vocês

    Léo, parabéns pelo texto.

    Abraços
    Pedro Moreno

    ResponderExcluir