quarta-feira, 28 de março de 2012

Crônicas Classificadas: 17) 'Não gosto do negro só porque ele é...'

Considero Celso Viáfora um dos quatro ou cinco melhores compositores brasileiros em atividade. Eu disse "em atividade". Excluo desta seleta lista os aposentados. Celso tem uma discografia de dar inveja a muito medalhão da MPB. No entanto, embora há dois anos (se não me engano) comente acerca de Carnaval na Globo, ainda são poucos os críticos musicais que o descobriram ou que têm coragem pra escrever/falar a seu respeito o equivalente a seu merecimento.


Se você pesquisar a respeito dele no site da Folha de S.Paulo, por exemplo (maior jornal do Estado onde nasceu Celso), encontrará seu nome 50 vezes. Contudo, quase sempre de passagem. Matérias que tratem de sua obra, ali, são raras. No dia 18 de junho de 2006 (seis anos atrás), Luiz Fernando Vianna, escrevendo sobre CD de Ivan Lins (do qual Celso é parceiro), em determinado momento diz que Celso é um "ótimo compositor paulista". Ponto. Antes disso o compositor ganhou de Pedro Alexandre Sanches três estrelas e cinco linhas em 7 de setembro de 2001, quando do lançamento de seu disco Basta um Tambor Bater.

Voltando um pouco mais no tempo, no mesmo ano, em 11 de fevereiro, Luís Nassif, escrevendo matéria sobre show em homenagem a Celso, diz que ele é "autor das mais primorosas letras que a MPB conheceu nos últimos anos". Voltando mais uma estação nessa viagem no tempo, o mesmo Pedro Alexandre, em 1° de junho de 1999, escreve, aí sim, uma crítica sobre um CD seu, A Cara do Brasil, e diz que este CD flagra "um trabalho - um artista - em evolução e ascensão", concluindo que estes "são tão raros no Brasil dos 90".

Antes disso Sylvia Colombo fala de um show seu, em 1997, e, no mesmo ano, em 26 de maio, Luís Nassif repete que Celso é "a melhor combinação entre riqueza harmônica, criatividade melódica, ritmo e letras que a MPB oferece no momento". E só (lembrando que nem Sylvia nem Nassif são críticos musicais). É interessante frisar que Celso aparecia mais naqueles anos, quando era considerado "revelação". Com o passar do tempo, como nenhuma grande gravadora o contratou, ele foi sendo, se não esquecido, ao menos esnobado, e seus trabalhos mais recentes, como os maravilhosos Palavra! (2004) e Basta um Tambor Bater (CD e DVD, 2010), foram solenemente ignorados.

Relatei minuciosamente a relação entre Celso e a Folha porque, enfatizo, este jornal é o maior de São Paulo e, dizem, do Brasil. E Celso é um dos expoentes entre os compositores paulista(no)s. A coisa não é muito diferente se pesquisarmos no Estado de São Paulo, tirante o quixotismo de Mauro Dias. Creio mesmo que fora de São Paulo seu nome deva ser mais incensado. Mas é triste ver como falta coragem crítica a tais veículos de comunicação. Certo, não devemos ser bairristas, mas o extremo oposto também não é a solução.

Na mesma Folha, por onde já passaram muitos consagrados críticos, tem uma coluna que trata sobre Língua Portuguesa o professor Pasquale Cipro Neto, que, embora não seja crítico (ou por isso mesmo), sempre quando tem oportunidade se utiliza da música pra ilustrar seus textos. E, embora os críticos seus colegas de jornal calem sobre Celso, este várias vezes não economizou entusiasmadas palavras a respeito do compositor. Só posso chegar, com isso, à conclusão de que Pasquale e os críticos não comungam do mesmo gosto musical (ou da mesma liberdade). O que me faz pensar que os jornais carecem de mais professores de português e menos críticos. Claro que quando Celso foi citado por estes sempre o foi com belos adjetivos, mas não suficientes pra que merecesse a primeira página... Mas por ora basta de meus remordimentos. Deixemos falar o professor. É isso.

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'Não gosto do negro só porque ele é...'
Por Pasquale Cipro Neto, para o caderno Cotidiano, da Folha de São Paulo

Não basta ser X para que se goste de X, o que seria óbvio, mas não é quando imperam o preconceito e a patrulha

Calma, caro leitor! Calma! Calma, sobretudo se você for dos embotados pelo intragável "politicamente correto". O título desta coluna está no início da belíssima canção A Pessoa, do paulistano Celso Viáfora. Diz a letra: "Não gosto do negro só porque ele é negro / Gosto de Maria do Rosário e de Diego / (...) Não gosto do novo só porque ele é novo / Eu como granola como como pão com ovo / Não gosto do velho só porque ele é velho / Tô tanto na Net quanto procuro no Aurélio...".

Celso me disse que, nos seus shows, começa a canção com a primeira frase e para (eta vontade de lascar um agudo nessa forma verbal, estuprada pela insana reforma ortográfica). A reação do público é heterogênea: alguns, talvez já conhecedores da canção, entendem a provocação; outros fazem caras e bocas...

O fato é que a frase em si, descontextualizada, é ambígua. A "culpa" dessa ambiguidade é do advérbio "só", cuja posição permite mesmo duas leituras. Já sabe quais são, não? Vamos lá: duma das leituras se depreende que o emissor não gosta do negro, e a razão desse não gostar é simples (e preconceituosa): o negro é negro. Da outra leitura se depreende que não basta a um ser humano ser negro para que o emissor da frase goste dele.

Aliás, como se viu pelos outros trechos que transcrevi, a letra da canção de Celso Viáfora vai toda nesse tom: não basta ser X para que se goste de X, o que, teoricamente, é o óbvio, mas deixa de sê-lo quando imperam o preconceito e a patrulha, ou seja, a burrice. Sim, porque achar que se deve gostar de X só porque X é X é agir ou pensar burra e hiperpreconceituosamente.

Não pense o caro leitor que essa patrulha boboca é "privilégio" dos tempos hodiernos, nascida com o "politicamente correto". Ela vem desde sempre. Lembro que nos meus tempos de universidade era proibido gostar de Olavo Bilac, por exemplo, "um fascista" e outras bobagens que a caterva vociferava. Para confirmar que alguém era "legal" e abrir-lhe o trânsito, bastava dizer que o dito-cujo era "de esquerda". Tudo e todos eram assim, rotulados, pré-rotulados. Na verdade, ainda são (e, pelo jeito, sê-lo-ão até sabe Deus quando).

Corajosa, essa canção de Celso (que faz parte do belíssimo DVD Batuque de Tudo) põe o dedo numa ferida ainda exposta, mal curada, mal resolvida. Na canção Que Nem a Gente, do mesmo DVD, Celso continua no tema: "Parente não é tudo nepotista / Compositor não é tudo ruim da ideia / A bomba da Coreia / não é tudo mais que a bomba do Ocidente / Todo mundo é meio assim que nem a gente: / tudo igual mas muito diferente". Muito bom...

O leitor habitual deste espaço certamente notou que este texto continua a conversa iniciada na semana passada. Minha intenção é a de sempre: instigar o leitor/aluno a pensar, a refletir, a entender o que lê, sem julgamentos prévios. Em muitos casos, o conhecimento da língua pode ser fundamental para afastar interpretações funestas ou ao menos contemplar a possibilidade de outra interpretação. É nesse caso que se insere a frase que abre a letra da canção de Celso. O uso de palavras como "só", "somente", "também", já abordado aqui diversas vezes, volta e meia é tema de questões de importantes vestibulares. Devagar com o andor, pois.

Em tempo: o primoroso DVD de Celso Viáfora é daqueles que se veem/ouvem de joelhos, com o encarte e um lenço nas mãos. Algumas das canções são comoventes - Quando Vi Meu Pai Chorar, por exemplo, dói na alma, no coração e na mente. Evoé, Viáfora! É isso.

São Paulo, 22 de março de 2012.

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P.S. Coincidentemente, Pasquale termina seu texto saudando Celso, da mesma forma que eu o fizera, em minha coluna do Ninguém me Conhece, quando tratei a respeito do moço. Aproveite quem ainda não o leu e dê uma passadinha por lá: A Cara de Celso Viáfora, um Brasileiro que nem a Gente.

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P.S.2 Pelo menos ele ganhou um Ensaio...

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