Fazendo jus ao nome do blog, deixemos um tiquinho de lado a música e tratemos de poesia. Recentemente escrevi sobre o livro de poemas Pop Para-Choque, de Vlado Lima, e citei uma frase de um texto por mim escrito há quase três anos, justamente no chamado Dia Internacional da Poesia e tratando do assunto. Por conta disso acabei relendo-o e fiquei espantado com as tintas carregadas que usei. Passados três anos não sei se ainda penso exatamente assim; o texto está repleto de verdades absolutas, e o mundo transpira relativismo... Contudo, como crônicas, poemas, romances, canções etc. são retratos de um momento, resolvi publicá-lo aqui. Na pior das hipóteses, dá pano pra manga...
O poeta x a poesia
Por Léo Nogueira
Ao passo que o mundo está repleto de poesia, há cada vez menos poetas. Poesia, boa ou ruim, qualquer um faz, basta um mínimo de sensibilidade e afinidade com as palavras (muitas vezes nem mesmo isso). Já um poeta não é todo dia que aparece. Quando digo poeta não estou simplesmente me referindo a um fazedor de versos. Há poetas que nunca escreveram nem uma linha sequer, no entanto, são poetas. Como é possível? Claro que é possível! Um poeta é aquele que tem uma visão peculiar das coisas que o rodeiam. Um poeta é aquele que AGE como um. E agir como um não significa vestir-se, falar, gesticular ou andar como um. Um poeta não é o que veste, é o que despe. Não adianta ser bom de verso e/ou de rima e na vida real contradizer o escrito. O poeta tem que ser condizente até com sua própria contradição, pois o poeta está em constante estado de mudança. Quem não muda não pode ser poeta.
O poeta não pode ser feliz. Felicidade é pra quem quer pouco ou quase nada da vida, e o poeta é um ambicioso. Não falo de ambição no sentido financeiro da palavra, mas no sentido do impossível. O poeta quer aquilo que sabe que nunca vai conseguir alcançar, por isso o tenta por meio das palavras, sejam versos ou simplesmente pela oralidade. Aliás, o poeta opta por querer o impossível pra que justamente de tal impossibilidade nasça sua poesia. Patativa do Assaré nunca escreveu uma linha, mas era poeta. Há quem escreva milhares delas e jamais chegue a sê-lo. E não importa qual segunda profissão o poeta tenha. De faxineiro a presidente, qualquer um pode ser poeta, embora ache que no caso deste último as chances sejam menores.
Hoje há uma busca incessante pelo bem material. Estamos no tempo do ter. E o poeta pertence ao tempo do ser, embora se equilibre mal ou bem transitando através de todos os tempos. Os bares, as feiras, as lojas, os escritórios, os consultórios, as filas dos bancos, as faculdades, os velórios, as festas, os saraus, as alcovas ou as salas de estar estão absolutamente carentes de poetas. Daí que uma pessoa perde o amor de sua vida e rabisca uns mal-ajambrados projetos de versos e lança a si próprio a alcunha de poeta? Ora, poupe-me! Vá jogar um video-game, escrever um e-mail ou ler um livro de autoajuda com cem passos pra reconquistar um amor perdido, passos esses que ignoram totalmente o mais importante no amor: a opinião que a pessoa amada tem a respeito desse amor!
Não. Poetas estão em falta no mercado. Aliás, poetas não pertencem ao mercado. Nem mesmo ao mercado de vendas de livros de poesia. Poetas pertencem única e exclusivamente ao respeito à dor que fingem deveras sentir. Não há poeta sem dor. Mesmo que seja preciso inventá-la. E hoje ninguém quer dor, todos querem os holofotes. Não há holofotes na dor. Há apenas o breu. Mesmo à luz do dia. O poeta é um crente da descrença. É aquele que sabe que toda sua grandeza consiste em não passar de um verme, independente da roupa que vista ou do veículo que use pra se locomover. Mesmo porque o poeta não precisa de veículo pra se locomover. Enquanto os portugueses construíam caravelas pra conquistas ultramarinas, o poeta, sem sair do lugar, conquistava reinos absurdamente maiores, apenas pra perceber que não lhe valiam de absolutamente nada.
Não foi o poeta quem criou o Dia Internacional da Poesia. Mesmo porque, o Dia Internacional do Poesia é todos os dias, o que é igual a dia nenhum. Principalmente quando não há poetas… E tanta poesia!
De médico e de louco, dizem, todos temos um pouco. Já o poeta, imprescindivelmente tem que ter muito de loucura, embora não careça de medicina. O poeta é escravo da liberdade porque sabe que esta é só uma espécie diferente de prisão. O poeta é um triste. Porque sabe que, embora se pudesse trocaria toda sua poesia por um pouco de felicidade, a única coisa que vai deixar quando se for é justamente sua poesia. Já aquele que não é poeta, mas faz poesia, é um felizardo, pois não sabe que, quando morrer, sua poesia não lhe sobreviverá.
São Paulo, 21 de março de 2009.
***
Na época em que escrevi esses pensamentos caóticos eu não era ainda um blogueiro, então mandei-os por e-mail mesmo a alguns chegados, inclusive a duas ou três professoras que me deram aulas na faculdade. Uma delas, a arretada (e querida) Viviane Veras, fez todo um compêndio pra esculhambar com luva de pelica meus rascunhos; já outra, (a não menos querida) Mayra Pinto, lembrou-se de um poema de Manoel de Barros, que diz mais o menos o que eu quis dizer ao mesmo tempo que contradiz tudo. Daí que resolvi terminar esta postagem com ele:
Matéria de poesia
Por Manoel de Barros
Disputados no cuspe à distância
Servem para poesia
O homem que possui um pente
E uma árvore
Serve para poesia
Terreno de 10x20, sujo de mato - os que
Nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
Servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmiosO bule de Braque sem boca
São bons para poesia
As coisas que não levam a nada
Têm grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
Tem o seu lugarNa poesia e na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
Caco de vidro, grampos,Retratos de formatura
Servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
Por exemplo: pedras que cheiramÁgua, homens
Que atravessam períodos de árvore,
Se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
E que você não pode vender no mercadoComo, por exemplo, o coração verde
Dos pássaros
Serve para poesia
As coisas que os líquenes comem
- Sapatos, adjetivos -Têm muita importância para os pulmões
Da poesia
Tudo aquilo que a nossa
Civilização rejeita, pisa e mija em cima,Serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
Servem demaisO traste é ótimo
O pobre diabo é colosso
Tudo que explique
O alicate cremosoE o lodo das estrelas
Serve demais da conta
Pessoas desimportantes
Dão pra poesiaQualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
A lagartixa de esteiraE a laminação de sabiás
É muito importante para poesia
O que é bom para o lixo é bom para a poesia
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
A palavra repositório que eu conheço bem:Tem muitas repercussões
Como um algibe entupido de silêncio
Sabe a destroços
As coisas jogadas fora
Têm grande importância- Como um homem jogado fora
Aliás, é também objeto de poesia
Saber qual o período médioQue um homem jogado fora
Pode permanecer na terra sem nascerem
Em sua boca as raízes da escória
As coisas sem importância são bens da poesia
Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
Ao poema, e as andorinhas de junho.
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Dito assim, parece fácil...
Léo,
ResponderExcluirParabéns! Você é não somente um grande poeta, mas também um cronista de primeira!
Faço minhas suas palavras, especialmente estas:
"Um poeta é aquele que tem uma visão peculiar das coisas que o rodeiam. Um poeta é aquele que AGE como um. E agir como um não significa vestir-se, falar, gesticular ou andar como um. Um poeta não é o que veste, é o que despe."
[...] o poeta não precisa de veículo pra se locomover. Enquanto os portugueses construíam caravelas pra conquistas ultramarinas, o poeta, sem sair do lugar, conquistava reinos absurdamente maiores, apenas pra perceber que não lhe valiam de absolutamente nada."
Lendo aqui Manoel de Barros, me lembrei de quando conheci esse nosso poeta, há exatos 20 anos, num jornal que minha irmã me trouxe exatamente para que eu lesse estes versos:
"Poesia não é para compreender
mas para incorporar.
Entender é parede,
procure ser uma árvore!"
Fui completamente fisgada pela sua poética!
Era 1992 e eu estava chegando em São Paulo, tentando entender/incorporar (?) esta cidade. Agora, sinto-me fisgada também pela poesia desta cidade.
Beijos,
Esther
Valeu pela presença e pelo depoimento, Esther!
ExcluirSortuda, você. Há 20 anos eu só conhecia Barros de Alencar! Hahaha!!!
Beijão do
Léo.
Dito assim, parece fácil, e para o poeta, é. E ao mesmo tempo, posto que ele deveras sente, não é. Ou não. Hahahahahaha!
ResponderExcluirBeijos,
Danny, que, tal qual o poeta dos passarinhos, sabe que a cada dia, sabe menos.
Danny, acredita que eu entendi o que você quis dizer? Hahaha!!!
ExcluirBeijos que não passarão,
Léo.