domingo, 30 de julho de 2017

A Palavra É: 26) Ponte

Por Rob Gonsalves
No princípio, havia o abismo entre duas extremidades, mas cada uma delas se sentia em paz, quiçá até feliz, pois não se dava conta de sua solidão. E solidão é como qualquer outro sentimento negativo: não nos afeta muito quando sempre fez parte de nossa vida. Um eremita, por exemplo, vive lá sossegadinho em seu canto, longe da muvuca que algum néscio batizou com o nome de civilização. Até que um dia, por um motivo qualquer, vê-se arrastado pro meio do convívio de outros seres humanos, depara-se com o afeto, com o toque, com o sexo, com a separação, com a mágoa, com a dor... E adeus felicidade. Quando volta pra sua caverna, já é outro, pois tem pela primeira vez na vida consciência de sua solidão.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Crônicas Desclassificadas: 187) Confissões de um homem preso fora do artista

Adoro crônicas, e, de tanto gostar delas, acabei me tornando também um cronista, embora menor. E, se hoje escrevinho com regularidade, tenho que admitir que em grande parte devo isso a Carlos Heitor Cony, cuja coluna diária na Folha de S.Paulo acompanhei durante anos. O fato de ele ter envelhecido mal e ter ficado gagá, transformando sua fina ironia em mero cinismo azedo, não conseguiu destruir a estima e a gratidão que tenho por sua obra. Inclusive, é necessário que eu acrescente, ele também é um excepcional ficcionista. Comecei citando-o porque o li certa vez admitir que a felicidade depõe contra a criação. Durante os cerca de 20 anos em que esteve casado, foi feliz e, portanto, não teve ganas de escrever nada que ultrapassasse suas obrigações de jornalista.

domingo, 23 de julho de 2017

Pra não passar em branco o sétimo ano do blogue

Esta publicação é só pra não passar em branco. Nos primeiros seis aniversários de meu blogue, sempre publiquei um texto comemorativo. Contudo, este ano, quando chegou a data (9/7), estava eu, o homem, travando uma briga com o eu artista. Já aviso que ambos perdemos: um nocauteou o outro. Daí, ficou sem clima pra comemorações. O homem disse ao artista: "Vou parar de te alimentar!" Ao que o artista replicou: "Sou eu quem te alimenta!" Porrada pra lá, porrada pra cá; ego roxo pra lá, bagos inchados pra cá; a única coisa boa que aconteceu com tudo isso foi que, como ele e eu, no fundo, no fundo (beeeem lá no fundo...), nos queremos bem, um ajudou o outro a se levantar.

terça-feira, 18 de julho de 2017

A Palavra É: 25) Frio

Apesar de meu descarado humor, meu hábito hilário (e um tanto otário) de fazer graça, meu incendiário ardor e meu jeitão de boa-praça, no fundo eu sou um triste. Na tristeza consiste minha alegria. E, quem diria?, chega a ser um paradoxo. É que nos sentimentos nunca fui muito ortodoxo. Lamento. Vivo em conflito entre o feio e o finito, entre o nem e o mal, entre o apimentado e o sal. É quase um desacato, um grito. Por isso sou grato à tristeza, que é quem me faz ver com clareza o breu que me ilumina. Ela é gente-fina! E ainda agrega valor (ui!) a minha dor. E, como todo triste que se preze, sou expert em viajar na maionese.

domingo, 16 de julho de 2017

Os Manos e as Minas: 29) Eu e Teju Franco — Dois olhares (e uma canção) sobre a juventude


1) Síndrome de Benjamin Button

Pra mim, existem dois tipos de seres humanos: os que têm filhos e os que não têm. Eu, pertencente à segunda categoria, muitas vezes me flagro, com certa inveja e meio como se eu fosse um ET, observando (admirando) as relações entre pais e filhos. E dessas observações constatei uma coisa: a paternidade envelhece — ou amadurece; como queiram. É que, quando vejo um pai com um filho, noto que o senso de responsabilidade daquele faz que ele pareça mais velho do que realmente é, e o vejo como se ele fosse muito mais velho que eu, mesmo que se trate de um moleque. Mas, pensando bem, talvez o inverso é que seja a grande verdade: eu que, por não ter filho, às vezes ajo inconsequentemente, como se o moleque fosse eu. Não à toa, vira e mexe esqueço minha idade e gosto de imaginar que tenho ainda... mas, afinal, qual é minha idade mesmo?

quarta-feira, 12 de julho de 2017

A Palavra É: 24) Dor


Ah, a dor... De certa forma, ouso dizer que talvez eu adore a dor, mas quando ela está a-dor-mecida, quando ela está dor-mente, quando ela está dor-mindo. Quando ela está no dormitório da dor. Mas aí de repente ela desperta e vira um ar-dor, e eu já não posso mais segurar o an-dor. Em certos momentos, nem consigo mesmo andar. E eu não sei onde vai dar a dor. Claro, talvez eu esteja apenas dourando a dor, porque uma dor de alma não é uma dor de dente, embora seja mais urgente. É que ela zoa o radia-dor, e dor-avante passa a durar. Meio que nem um doremi. E eu me sinto duro por fora e como que drogado por dentro. Ali, bem onde a dor tem seu centro.

domingo, 2 de julho de 2017

Crônicas Desclassificadas:186) A flor e o Espinoza

Sabadão. Vinte horas de la matina. Calor da porra! Horário de verão recém-implantado. Garganta rangendo mais que fusquinha faltando óleo em subida da Imigrantes. Timóteo, em estado ressacal, apenas despertado do sono da lerdeza, jogou a moeda de um real pra cima. Desse cara, ligaria prum brou pra tomar outras... e umas. Desse coroa, compraria umas brejas e se quedaria em casa lendo Nietzsche, além do bem e do mal, pai, filho, espírito santo, amém. Deu coroa. Ele, por cima dos óculos rotos de aros raros, centralizou foco na porra da moeda e tascou, à guisa de improviso: "Coroa é do tempo do cruzeiro, meu velho!" Nem pestanejou. Aproveitou o pouco crédito que tinha junto à (sic) operadora e operou uma ligação direta que foi parar, do outro lado da linha, no escutador de Baltazar. A prosa, como diria um músico de barzinho, deu-se "mais ou menos" assim: