Ah, a dor... De certa forma, ouso dizer que talvez eu adore a dor, mas quando ela está a-dor-mecida, quando ela está dor-mente, quando ela está dor-mindo. Quando ela está no dormitório da dor. Mas aí de repente ela desperta e vira um ar-dor, e eu já não posso mais segurar o an-dor. Em certos momentos, nem consigo mesmo andar. E eu não sei onde vai dar a dor. Claro, talvez eu esteja apenas dourando a dor, porque uma dor de alma não é uma dor de dente, embora seja mais urgente. É que ela zoa o radia-dor, e dor-avante passa a durar. Meio que nem um doremi. E eu me sinto duro por fora e como que drogado por dentro. Ali, bem onde a dor tem seu centro.
No olho do furacão. E eu quero me doar à dor ao mesmo tempo que quero ser seu domador. É um paradoxo. Porque só quem vivencia plenamente a dor (como um plana-dor), quem não procura pra ela um silenciador, pode viver na vera os momentos de ausência da dor. Paciência. Até porque quando ela chega não há escapador pra escapar da dor. Você cai nas garras de uma madame V de vontade e vingança — como um anjo vinga-dor. É feito um temporal que cai sobre uma floresta, devastador. Algumas árvores cedem e desabam; já outras se mantêm firmes (parafraseei o Osho). É desafiador, e sabemos que aquelas que superaram a tormenta saíram dela mais fortes, pois é um momento fortalecedor. Embora a vontade de desabar seja imensa. Ali, bem onde a dor compensa.
A gente pode até tentar a-dor-nar a dor, o problema é que não orna. Ela se torna ainda mais durável. Pra não dizer a-dor-ável. Quando tudo é dor, qualquer sentimento alheio que não seja igual ao seu é perturba-dor. Porque nessa hora, quando se crê na dor, ela passa a ser nosso cre-dor e nós seus deve-dores. Mas, quando nos tornamos íntimos da dor, não é raro ter a ilusão de que isso é algo acalententa-dor, aquece-dor, dilata-dor, propaga-dor. Talvez o mais cruel da dor é que ela é egoísta. Naquele exato momento que é desperta-dor, foda-se o mundo inteiro. Quando a dor é grande, nos tornamos pequenos. É nossa dor tudo o que importa. Ali, onde Inês é morta.
Porque a gente não sabe por onde escoa a dor. Ela chega que nem um disco voa-dor. E talvez seja por isso que só ouvimos discos que tratem de nossa dor. Dia desses, meu amigo Max Gonzaga soltou a seguinte pérola: "As pessoas gostam de canções que digam como elas estão, mas se sentem incomodadas quando ouvem canções que dizem como elas são." Touché, Max, meu velho! O camarada pode ouvir um milhão de vezes Roberto Carlos cantar "mas, se não for por amor, me deixe aqui no chão". Em contrapartida, quando vem um desses tipos sarcásticos e diz que "sou classe média, papagaio de todo telejornal", aí o bicho pega. Mas ele mais pega ali onde a dor é cega.
E não sossega. Não existe Dorflex que dê jeito. Claro, refiro-me à grande Dor, essa com maiúsculo, que é a nossa. Pra dorzinha alheia, há uma farmácia em cada esquina. Estou me referindo a um Tratado sobre a Dor, porque ela é minha e ninguém tasca, por isso é a que que faz a diferença. Por exemplo, pra meu amigo Fernando Cavallieri, a minha não passa de uma dorzinha burguesa. Porque, na real, pra ele o que fundamental é a dor dele (quem diz isso é o egoísmo da minha, perdón, Cava). É que a maior dor do mundo é a dor do eu, justamente porque é a que mais doeu. Se eu morro, não há mais dor. Por isso, pra muitos morrer passa a ser tenta-dor. Não é meu caso. E isso é fato. Porque eu vivo ali, onde a dor dá barato.
E, por falar em dor e morte, isso me fez lembrar do que já dizia o grande Gilberto Gil: "Não tenho medo da morte/ Mas sim medo de morrer/ Qual seria a diferença/ Você há de perguntar/ É que a morte já é depois/ Que eu deixar de respirar/ Morrer ainda é aqui/ Na vida, no sol, no ar/ Ainda pode haver dor/ Ou vontade de mijar." E o pior é quando você sente dor e vontade de mijar ao mesmo tempo, porque aí você se depara com um mijador. Sorry, people, hoje estou um divaga-dor, um flerta-dor, um inala-dor. Já dizia Fernando Pessoa (e essa não poderia faltar por aqui) que "O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente". Ali onde a dor é um presente.
Mas dor (assim como o amor) nunca foi coisa pra amador. Mas além desses há o adulador; o buscador; o computador; o destruidor; o enganador; o frequentador; o governador; o habitador; o instalador; o jogador; o lapidador; o manipulador; o navegador; o observador; o perdedor; o questionador; o revelador; o sonegador; o torturador (sem esquecer o tatuador); o usurpador; o versejador; o xerocador; o zoador; e quem passa a vida sem sentir dor, ocupado que está em ganhar grana. Ah, pra terminar, dizem por aí que a rima de amor com dor é pobre. E eu rebato dizendo que não existe rima pobre quando o verso é rico. Quem rima com sinceridade e sentimento pode rimar dor com pedra que terá feito uma grande rima. Bem ali onde a dor é obra-prima.
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PS1: Volto a escolher a palavra, mas só porque o melhor momento de tratar da dor é quando estamos felizes. SQN.
PS2: Trilha sonora: Marisa Monte, De Mais Ninguém (Marisa Monte – Arnaldo Antunes)
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Ler as suas crónicas faz-me bem à dor, torna-a mais macia. Que dizer, você brinca com as palavras de um jeito que adoro. Abraço Mi
ResponderExcluirÔ, querida Mi, ler seu comentário foi ameniza-dor.
ExcluirAbração,
Léo.