Há exatos 17 anos morria o compositor "maldito" Sérgio Sampaio, de uma crise de pancreatite. A título de curiosidade, pesquisei no arquivo da Folha de São Paulo e encontrei uma ínfima nota, escrita por free-lance, numa lateral de página dedicada aos obituários onde se lia: "O cantor e compositor Sérgio Sampaio, 47, morreu às 5h de ontem, no Rio. Autor da música Bloco na Rua (sic), Sampaio morreu de pancreatite crônica. Ele estava internado no Hospital Quarto Centenário, no centro, desde abril. O enterro será hoje, às 10h, no Cemitério São João Batista". Só. Como se se tratasse de um anônimo. Bem, pelo menos, se o nome do sujeito lhe gerava dúvidas, sua associação à música "Bloco na Rua", ou melhor, Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua, certamente lhe deve ter lançado luz. Afinal, quem nunca ouviu "Eu quero é botar meu bloco na rua/ Brincar, botar pra gemer/ Eu quero é botar meu bloco na rua/ Gingar, pra dar e vender"? Pois então, Sérgio Sampaio é o autor da canção que contém esses versos, canção esta que participou do VII FIC (Festival Internacional da Canção), em 1972, vencido por Fio Maravilha, de Jorge Ben (muito antes de vir a ser Ben Jor). No entanto, o lançamento logo em seguida de um compacto com Eu Quero É Botar... ultrapassou a considerável soma de 300 mil vendas.
1) Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua (Sérgio Sampaio)
O Brasil tem tantos bons compositores, que acabamos nos acomodando com os que estão, digamos, mais à mão, sem nem sequer imaginar que um pouco de pesquisa fatalmente nos faria esbarrar em outros artistas de grandiosa obra, talvez maior até do que a de nossos queridinhos midiáticos. Foi o que aconteceu comigo em relação a Sérgio Sampaio. Apesar de não estar de todo alheio a ele e a sua obra, e, apesar de ter em minha casa uma discoteca/cedeteca considerável, não possuía nada dele. O acaso veio preencher-me essa lacuna.
De maneira politicamente incorreta, deparei-me com a obra-prima Cruel, CD póstumo e trabalho incompleto, que, graças à costumeira generosidade de Zeca Baleiro, que o concluiu e lançou (por seu selo Saravá Discos), veio finalmente à luz 12 anos após ter sido fecundado. E o impacto em mim foi tão fulminante que não tive outra saída que não ir a esses blogs amigos baixar sua discografia anterior, visto que seus discos permanecem fora de catálogo. A conclusão a que cheguei foi a de que o Brasil perdeu um compositor em plena evolução, pois uma mais apurada análise mostrou-me que estava havendo uma melhora gradativa disco a disco. A se manter essa linha de evolução e a doença não lhe subtraísse os anos, viriam discos primorosos na sequência de Cruel.
Claro que são conjecturas. Pode ser que seu inconsciente, trabalhando tendo em vista a fatalidade que se aproximava, tenha-o motivado a criar tão viscerais e pungentes canções. Não foi sem um quê de melancolia que assisti a sua situação retratada em alguns vídeos caseiros disponíveis no youtube com imagens suas, magérrimo, cantando e tocando alucinadamente, de bermudas e chinelas, no que pareciam ser residências simples. E, quando seus olhos miravam a câmera, havia neles fúria, fome, raiva, medo, deboche... Uma verdadeira fera acuada usando suas armas (a música) pra se defender... e atacar... Sorrindo.
2) Cabra Cega (Sérgio Sampaio - Sérgio Natureza)
O sucesso que Sérgio Sampaio conquistou no começo de sua carreira (e que nunca viria a se repetir) é o que a maioria dos artistas passa a vida perseguindo. Só que, no seu caso, foi sua própria destruição. Despreparado (e desprevenido) por esse sucesso que lhe caiu na cabeça como uma rocha que despencasse da montanha, Sampaio, naturalmente, foi até os limites do que tal condição lhe permitia, às vezes até os ultrapassando. Sérgio Natureza, um de seus poucos parceiros, disse à Folha, quando do lançamento de Cruel, que a carreira do amigo foi atrapalhada por seu temperamento. "Ele era muito inteligente e defendia seus porquês com toda a força. Era transparente, claro, franco, o que talvez não fosse politicamente correto". Seu primeiro LP, mesmo contendo Eu Quero É Botar..., obteve vendas bem aquém do que se esperava, e assim, sucessivamente, ao passo que lapidava cada vez mais suas canções (e sua poesia), mais se afastava do sucesso com o qual quase sem querer se deparara.
Contudo, ou talvez por isso mesmo, essa derrocada artística proporcionou-lhe uma experiência de vida que lhe possibilitou construir, à margem da indústria, uma das obras mais relevantes (e subestimadas) da música popular brasileira. Não à toa Sampaio, descoberto por Raul Seixas, apesar de ter construído uma obra na qual predominavam ritmos brasileiros, é, não raras vezes, associado aos roqueiros, chegando mesmo a ser admirado por muitos destes. O fato é que, assim como sua vida não conhecia fronteiras, sua canção ia pela mesma estrada. Eclético e livre, sem as amarras que uma gravadora lhe imporia, usava e abusava de sonoridades e ritmos os mais variados, de acordo com o que quisesse dizer. Assim, rock, jazz, choro, samba e o que mais coubesse em seu volão não passavam de ferramentas pra que dissesse o que tinha pra dizer. E ele tinha muito.
Tiro o chapéu pra Zeca Baleiro, que conseguiu finalizar Cruel com o amor necessário pra não deturpar um trabalho tão ímpar como o de Sampaio. Como, infelizmente, não encontrei esse CD em nenhuma loja (tomaria nas prateleiras o espaço de futilidades mais consumíveis), tive que o baixar, assim como aos anteriores Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua (1973), Tem Que Acontecer (1976) e Sinceramente (1982). O que quero dizer é que passei a ouvir na sequência as canções dos quatro discos, e a impressão que me deu foi a mesma de ler um bom livro em vários capítulos. Ou seja, o enredo avança, mas a linearidade no estilo permanece. Ouso dizer que, se Sampaio tivesse vivido tempo suficiente pra finalizar ele mesmo seu último disco, não teria chegado a um resultado muito distinto do que o alcançado por Zeca. E, ainda assim, ouvem-se ecos do Baleiro ali, o que dobra o interesse sobre o trabalho.
Entre as tantas frustrações acumuladas por Sampaio, talvez a maior delas tenha sido não ter nunca conseguido que seu ídolo maior e seu conterrâneo Roberto Carlos (ambos nasceram em Cachoeiro de Itapemirim-ES) gravasse algo seu. Passou perto, pois foi gravado por Erasmo. Mas, se não logrou o intento, em algo se parecia com o "Rei". E, por que não dizer?, com o próprio Chico Buarque: Roberto excomungou seu talvez maior sucesso, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno; Chico deixou A Banda a ver Titanics; e Sampaio nunca resolveu a equação de ter que conviver o resto da vida à sombra de seu "Bloco na Rua". Como na canção que fez pra seu pai, Pobre Meu Pai, bem desabafava: "Hoje, meu pai/ Não é uma questão de ordem ou de moral/ Eu sei que eu posso até brincar/ O meu carnaval/ Mas meu coração é outro".
3) Maiúsculo (Sérgio Sampaio)
Batesse hoje seu coração, Sampaio certamente lhe diria: "Suje os pés na lama/ e venha conversar comigo"; afinal, "um livro de poesia na gaveta não adianta nada,/ lugar de poesia na calçada"; saiba que, "tropeçando bêbado pelas calçadas/ me recordando de não ter bebido nada/ e olhando essas luzes que se apagam lentamente,/ eu sou a luz e a semente". É que "quanto mais eu sofro/ mais coração me aparece"; e "tanto faz eu ser poeta ou pirado/ tanto faz ser inocente ou culpado/ tudo isso é tão normal/ a porta sempre vê o outro lado". Mas eu "tive cuidado de ter os pés quase sempre no chão/ e a cabeça voando/ como se voa na imaginação,/ longe do resto do bando,/ mas sempre perto do meu coração"; porque "mais do que cantar pra o mundo inteiro,/ eu quero cantar primeiro/ só para o seu coração"; no entanto, "pra você que mal enxerga,/ uma nave extraterrena/ vai ser sempre um avião"*. Por isso que acho que "não há nada mais sozinho/ do que ser inteligente/ e poder cantarolar,/ errar, desafinar,/ assim sinceramente". Só eu "sei como dói meu amor de poeta,/ se vê linha reta/ quer logo entortar,/ meu coração é de quem não tem cura/ procura e torna a procurar/ e você nunca esta lá". Mas, fazer o quê?, "quem é do amor é mais quente/ viaja contra a corrente/ tem sangue de aguardente/ nas doces veias do amor"; por isso "pus meu carro no declive sem sequer o freio de mão/ e amei como se o amor fosse o esteio da vida". E é por isso que "solto meus bichos/ pelas músicas quando me aflijo,/ mas um homem sem esse feitiço/ e sem um carinho a que recorrer/ pode matar/ querer morrer,/ pois perdeu todo o sentido de viver".
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*Fragmento extraído da canção Cabra Cega, melodia de Sampaio e letra de Sérgio Natureza.
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Parabéns Leo, pelo belo artigo. Sampaio era especial. Tive a sorte e o prazer de assistí-lo, ao vivo, algumas vezes. Uma delas em um pequeno bar da Lapa, Arco da Velha, com poucas pessoas presentes (tinha um show do Alceu Valença no Circo Voador, ao lado, na mesma hora)e pude trocar algumas palavras com ele. Pena que o mundo nos privou tão cedo deste talento.
ResponderExcluirOlá, Kláudia! Puxa, que inveja! E como ele era? Taí uma biografia que eu gostaria de ler. Diz aí.
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
Oi Leo,
ResponderExcluirO Rodrigo Moreira escreveu a biografia dele. Vc encontra no site estantevirtual.com.br
Ele era muito engraçado, sempre de bom humor, pelo menos nas vezes em que vi. Teve um show dele com o Jards Macalé na Funarte que a gente ria o tempo todo...Tb o assisti em um 6 e meia do João Caetano.
Preciosa informação, querida! Vou atrás!
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
Quanta emoção para meu pobre coração de irmã e fã de um homem/artista generoso e genial. Obrigada, gente.
ResponderExcluirMara Sampaio.
Mara, se meu texto te emocionou, sou eu quem agradece por sua visita. Saiba que este texto é o mínimo que eu podia ter feito em sinal de gratidão a esse artista que tanto representa pra mim. Sinta-se em casa.
ResponderExcluirUm abraço do
Léo.
Léo querido sobre seu texto só uma coisa há a dizer. EU GOSTEIIII ! Kaká Silva
ResponderExcluirLeo, assim como você só fui conhecer a obra do Sergio Sampaio há pouco tempo. Sempre gostei muito de uma musica (tem que acontecer) gravada no cd Vô Imbolá do Zeca Baleiro e fiquei sabendo e fui ao show "Cruel" em homenagem as 15 anos do falecimento do Sergio. Desde então tenho escutado e lido muitas coisas sobre o Sergio e o seu texto é realmente muito preciso e pontual. Parabens por ,assim como eu e muitos, fuçar a obra do Sergio e ajudar a divulgar ainda mais esse poeta do riso e da dor, que merece com certeza um tratamento diferenciado por tudo que fez e, que ainda pulsa e emociona com suas letras cheias de verdades e atemporalidade. Parabens Leo.
ResponderExcluirDouglas Simon
Kaká, querido, sobre seu comentário, só tenho uma coisa a dizer: eu gostei de você ter gostado.
ResponderExcluirBeijão do
Léo.
Olá, Doulgas!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelo comentário. Sobretudo gostei do que você escreveu sobre a atemporalidade. Penso exatamente isso, as canções de Sampaio, se ouvidas hoje, têm um frescor impressionante!
Volte sempre!
Abração do
Léo.
Minha professora Mayra não conseguiu postar seu comentário. Me mandou por e-mail:
ResponderExcluir"Pois é, Léo, Mais um gauche na nossa cultura. Alguns viram paradigmas - Noel, Drummond - outros correm o risco de sumir no esquecimento. Bacana a sua batalha pelo reconhecimento do ótimo compositor.
Em tempo: no carnaval deste ano, saí num bloquinho iniciante - Saci da Bexiga era o nome se não me engano - que inaugurou os trabalhos justamente com Eu quero botar... foi emocionante!
Abração!
Mayra."
Oi, Mayra! Grato pela visita e pelos comentários. Que legal isso do "Saci da Bexiga". Realmente Eu Quero É Botar... ainda é muito tocada nos carnavais atuais. É mais um caso de canção que fica mais famosa que o autor. Infelizmente.
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
Leo, você fez de uma costura de frases, uma declaração de vida. Garimpando Sergio Sampaio estou, parabéns!
ResponderExcluirDimi, o cara é genial! Vai lá na página d'O X do Poema (clubecaiubi.ning.com/profile/OXdoPoema) e procura as canções que comecem com 45, são todas dele. Valeu pela visita!
ResponderExcluirAbração do
Léo.
Uau. Garimpando Sampaio também.
ResponderExcluirE eu que pensava que a frase era minha tsc tsc
"um livro de poesia na gaveta não adianta nada,/ lugar de poesia na calçada"
Pensávamos igual.
:))
Então somos três, Anja! Grato pela visita e pela divulgação no fb.
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
primo,niltinho
ResponderExcluirOi, Niltinho. Prazer em receber sua visita.
ResponderExcluirAbraço do
Léo.
Foi e ainda é o cara!
ResponderExcluirO maior de Cachoeiro!
Grato pela visita, Francorebel. Passe por aqui mais vezes, pra conhecer outros "caras".
ExcluirAbraço do
Léo.
Sérgio Sampaio.... só sei ouvir e pensar... Sérgio Sampaio, o póstumo.
ResponderExcluirValeu pela visita, Wilson!
ExcluirAbraço,
Léo.
Oi Queridão!
ResponderExcluirJá havia passado por aqui,mas hoje volto trazendo comigo uma saudade danada do Sergio Sampaio. Ele fez parte de uma época muito especial de minha vida.
Trago comigo hoje,alguns amigos do facebook
Beijos e nem vou dizer que sou sua fã.Seus escritos são preciosos!
Oi, Lucinda!
ExcluirDevo confessar que até pouco tempo não conhecia muito a obra de Sampaio, mas finalmente baixei toda sua discografia (seus CDs se encontram fora de catálogo) e fiquei viciado, meses e meses sem conseguir ouvir outra coisa!
Quanto os elogios a mim, sou todo agradecimentos.
Beijos do
Léo.
Oi, Léo. Adorei seu texto, sempre de uma enorme sensibilidade. Sérgio Sampaio foi mesmo um artista impressionante, genialíssimo.
ResponderExcluirCitei um pouquinho da sua prosa no 365 Canções Brasileiras, no post 333, sobre "Tem Que Acontecer". Ficaria honrado com sua visita!
Abração
Salve, Miyage san! Sempre bom te ler por aqui. Vou lá, sim. No entanto, tenho que procurar o link de novo.
ExcluirAbração,
レオ。
Perdão pela demora, Léo-san:
Excluirhttps://365cancoesbrasileiras.wordpress.com/2019/11/29/333-sergio-sampaio-tem-que-acontecer/
Grato, Miyage san!
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