quinta-feira, 19 de maio de 2011

Trinca de Ouro: 2) Kana (+ Yosui Inoue), Samantha Navarro e Zeca Baleiro

Este mês de maio, que começa taurino e termina geminiano (ui!), promete ser especial pra mim, pras pessoas que me são próximas e pros amantes de música em geral que se encontrem em São Paulo nos dias 20 e 21 de maio. É que estou à frente da produção de três shows que prometem ser, no mínimo, muito bons. Claro que "muito bons" é muito pouco mas a (falsa) modéstia não me deixa ir além, pra não cair no autoelogio.

Deixo que os shows falem por eles mesmos, por ora basta acrescentar que os motivos pra que resultem imperdíveis não são poucos. Começo pelo de Kana, que, após um longo inverno, tem o renovado prazer de voltar aos palcos (Centro Cultural de são Paulo, rua Vergueiro, 1000, dia 20 de maio, às 19h - grátis), desta vez com algo mais pra contar/cantar. É que, finalmente, depois de três anos de atraso (foi lançado no Japão em 2008), seu tão esperado (ao menos por nós) Imigrante chega às boas lojas do Brasil. Este CD contou com a produção esmerada de Vasco Debritto e traz um repertório cheio de surpresas: além de releituras de A Paz (Gil/Donato) e Coisas do Brasil (Guilherme Arantes/Nelson Motta), há uma canção (até então) inédita de Tavito em parceria comigo (Metáfora), outra do clarinetista cubano Paquito D'Rivera também em parceria comigo (Eclipse - The Magic City), três canções com Vasco Debritto, a nova safra da parceria Kana/Léo, uma luxuosa versão em piano e voz de nossa Raízes, e as participações de (em ordem alfabética) Dany López, Élio Camalle, Milton Guedes, Samantha NavarroTavito e Zeca Baleiro, fora o time impecável de músicos. No show, além da banda, participarão Élio CamalleSamantha Navarro e Tavito.

Os segundo e terceiro shows, respectivamente, posso dizer que serão históricos pelo raro da ocasião: a genial cantautora uruguaia Samantha Navarro se apresentará nos palcos paulistanos do Centro Cultural (dia 20, às 12h30 - grátis) e do Lua Nova (rua 13 de maio, 540, Bixiga, dia 21, às 21h - R$ 10), com dois músicos brasileiros do primeiro time, trazendo-nos um reprtório que mescla canções de seus vários CDs, mas com ênfase em seu novo Volver al Inicio, que, além de trazer uma versão em francês (da própria Samantha) de À Primeira Vista, de Chico César, contou também com a participação de Zeca Baleiro na canção Arenal. No show do sábado, haverá ainda as participações de Élio CamalleKana e Kléber Albuquerque, em duetos que prometem ser inesquecíveis. Tudo o que eu puder acrescentar sobre Samantha e os shows acima mencionados será pouco perto do que presenciarão os presentes. Agora, às canções desta Trinca de Ouro, que, propositalmente, conta com três versões, gravadas nos discos acima citados:

1) ARENAL (AREAL)

Há cerca de um ano recebi um e-mail de Samantha no qual me pedia pra fazer uma versão em português pra uma canção sua recém-composta. Contou-me ela que estava finalizando um novo trabalho e pretendia convidar um artista brasileiro pra fazer com ela um dueto. Senti-me envaidecido e, na sequência, ao ouvir a canção, contente por sabê-la bela. Não que fosse uma surpresa.

A canção chamava-se Arenal. Pus mãos à obra, procurando mexer o mínimo possível em sua estrutura, visto que as palavras que ela escolhera praticamente coincidiam com seu significado em português. Ao longo dos anos tenho feito muitas versões, até mesmo como forma de exercício, e aprendi que o bom versionista é aquele que respeita a poesia e a sonoridade do original. Ah, e o estilo do autor também (creio que se dá igual com tradução literária, principalmente quando se trata de poesia). Em alguns momentos mesmo há que se usar o jogo de cintura. A liberdade do versionista lhe permite até, quando for o caso, que melhore a ideia, mas sem ego, sempre a serviço do original.

No caso de Arenal, há, por exemplo, um verso no qual o verbo acariciar está na terceira pessoa do singular do tempo presente. Só que, detalhe, em espanhol se pronuncia "acarícia" em vez do nosso "acaricía". Após queimar alguns neurônios, cheguei a um resultado que considerei satisfatório: "Faz carícias". Mantive a rima e o significado com uma simples mexida. A solução agora, lida, parece óbvia, mas, em se tratando de criação, por vezes há que se percorrer um longo caminho pra se chegar à obviedade. Já em outras oportunidades, criar algo que parece complexo se logra num piscar de olhos.

Tirante o bendito "acaricia" (escreve-se assim, sem acento), o trabalho envolveu mais prazer que sacrifício. E, ao que parece, agradou também a Samantha. Curioso, perguntei-lhe em quem pensara pra cantá-la. Ela me disse que tinha um sonho de vê-la cantada por Zeca Baleiro, mas ainda não tinha entrado em contato com ele, o que foi minha deixa pra me oferecer a intermediar o convite. Quando escrevi a Zeca, ele prontamente aceitou, e, pra minha surpresa, contou-me que já conhecia um pouco do trabalho dela por intermédio de uma amiga uruguaia. Quando, por fim, Samantha lhe enviou as bases pra que ele pusesse a voz, fui convidado a assistir à gravação... e dar meus pitacos. Quanto ao resultado, tirem suas próprias conclusões ouvindo-a no link no final do texto.

ARENAL (AREAL)

Avanza, tropieza, levanta, empuja
Vacila, esquiva, escapa, alcanza
Acerca, acaricia
Avaricia, codicia, se entrevera malicia
Te mira y espera
Anhelar sonrisas
Arenal
Arenal


Avançatropeça, levanta, empurra
Vacila, se esquiva, escapa, alcança
Se achega, faz carícias

Avareza, cobiça, com feitiço e malícia
Te olha e espera
Recolher sorrisos
Areal
Areal

***

2) CIDADE DO VENTO (CIUDAD DEL VIENTO)

Cidade do Vento não é propriamente uma versão, trata-se mais de uma canção bilíngue, mas que nasceu assim por força da fatalidade (e de um pouco de preguiça...). Havíamos eu e Kana acabado de voltar de uma viagem maravilhosa a Montevidéu, e Kana, ainda se sentindo acariciada pelo inebriante vento que, trazido pelo rio-mar, corta a cidade, compôs uma melodia e pediu que eu lhe pusesse uma letra que falasse do tal vento. Pô, fazer uma letra pro vento, e ainda por cima pra um vento específico (e estrangeiro), não é lá muito fácil, convenhamos...

Mas calhou que a melodia era boa e acabei decorando-a. Poucos dias depois, voltava eu do centro caminhando pela avenida Nove de Julho, quando senti uma lufada de vento parente da montevideana que me fez lembrar da melodia de Kana. Imediatamente nasceram os versos "Este viento siempre cambia la dirección/ de las calles de mi corazón", assim mesmo, em espanhol. Na mesma hora o cérebro fez a tradução automática (quase) literal: "Esse vento sempre muda a direção/ das estradas do meu coração". Daí nasceu aideia de fazê-la nas duas línguas. Em parte foi uma solução que me fez economizar o que seria a outra metade da letra, pois enquanto ia compondo um verso, já procurava seu similar na outra língua. Alguns nasceram primeiro em espanhol, outros em português, daí fui mantendo a estrutura de cada estrofe, só deixando a cargo de Kana escolher qual língua começaria a canção. Assim, em vez de escrever outra parte, ofereci-lhe outra visão do mesmo assunto.

Então veio o convite de Vasco pra gravarmos o Imigrante, terceiro disco de Kana que ora é finalmente lançado. Como um ano antes mais ou menos Kana tinha sido convidada por Samantha a participar do disco de seu grupo, La Dulce, aquela pensou em retribuir a gentileza convidando esta pra cantar a parte em espanhol da canção. De quebra, convidamos outro amigo uruguaio, o excelente pianista Dany López, que acabou responsável pelo resultado final da faixa, gravada toda (com exceção da voz de Kana) no Uruguai. E resultou charmosíssima, com ritmo local mesclando os tambores do candombe com o que Dany chamou de milongón, uma espécie de milonga desacelerada. Mas nosso amigo Tavito, que participou em outra faixa, ao ouvi-la, cravou: "É uma bossa nova latina!". Ouçam e tirem suas próprias conclusões.


CIDADE DO VENTO (CIUDAD DEL VIENTO)
Kana – Léo Nogueira

Esse vento sempre muda a direção
Das estradas do meu coração
Embaralha o idioma dessa canção,
Meus cabelos e meus pés no chão

E eu me deixo errar ao seu sabor
Rumo a um novo amor
Sinto, vendo o rio mudar de cor,
Frio e calor

É um vento bom que vem do céu
Vento de Montevidéu

Este viento siempre cambia la dirección
De las calles de mi corazón
Hasta cambia el idioma de mi canción
Me revuelve el pelo y la visión

Y me dejo errar a su sabor
Rumbo a un nuevo amor
Siento, cuando el río cambia el color,
Frío y calor

Es un viento lleno de deseo
Viento de Montevideo

***

3) O PRIMEIRO PASSO (YUME NO NAKA HE)

Esta já nasceu pensada a fazer parte do Imigrante. Yume No Naka He, um rock a la Beatles, foi lançado no Japão no começo da década de 1970 por seu autor, o japonês Yosui Inoue, uma espécie de Dylan orinetal (ainda hei de escrever um Ninguém me Conhece sobre ele). O sucesso que a canção alcançou foi tão retumbante que atravessou anos. Kana teve a ideia de gravá-la em ritmo de forró e, pensando nisso, nasceu O Primeiro Passo. Só que tive que dar outros passos, pois a primeira versão que compus, como resultou muito livre, não passou pelo crivo do autor. Escaldado, pedi que Kana traduzisse linha a linha e, com a tradução literal ao lado, procurei ser o mais fiel possível. Considerando as diferenças entre as duas línguas.

Com a canção pronta e parte do arranjo já gravado, pensamos em convidar algum artista brasileiro pra cantá-la junto com Kana. E foi justamente dela a ideia de chamar o Baleiro, visto ser ele um divulgador da música nordestina. Contamos com um empurrãozinho providencial de sua irmã, a poeta Lúcia Santos, que, nossa amiga e parceira de Kana, fez que chegássemos mais rápido ao outro lado da ponte.

E, assim como aconteceria tempos depois com ArenalZeca nos recebeu em seu estúdio, foi solícito, ótimo anfitrião, e, ao final, ainda nos disse que se mantinha à disposição caso fosse necessário, pois ainda estava "no prazo de validade". Nesse mesmo dia me disse que estava musicando uma letra que eu lhe havia enviado fazia anos. O começo não podia ser mais promissor. Agora esperamos que, com o lançamento do disco, O Primeiro Passo, que virou uma espécie de tecnoarrasta-pé, tenha tanto êxito por aqui quanto o rock no qual se baseou.

O PRIMEIRO PASSO (YUME NO NAKA HE)
Yosui Inoue/versão: Léo Nogueira

Se procurar na gaveta não tá
Se sufocar... na gravata não tá
Não tá na grana o amor
Não tá no elevador
Não tá na mala nem na sala do vigésimo andar

Quem planta chuva colhe temporais
O quê de tão urgente você quer procurar mais?
Gente é pra se lançar
A gente quer dançar
A vida é curta, então curta a vida, se é capaz
Bora!

Quem disse que era proibido sorrir?
Se alguém falou, esse não tá mais aqui
Sem perder a fé
Vai-se até a pé
Com vinte e quatro horas tem tempo de sobra pra quê?

Quem quer achar, melhor não se avexar
Quem quer chegar, melhor olhar a paisagem que há
Sonhar o que é?
Sonhar o quê que é?
É o primeiro passo pro sonho se realizar

***

4 comentários:

  1. Lindas canções, maravilhosas vozes, letras e inspirações. Talentos de primeira grandeza. Léo, obrigada por postar. abraço
    Márcia Tauil

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  2. Eu que agradeço, Márcia. Ainda mais vindo de você, outra linda voz.

    Um abraço do
    Léo.

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  3. Vamos ver/ouvir/sentir a doçura da Kana!
    bjs

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  4. ...misturada à poesia (e não só) bem temperada de Lúcia, o resultado é um fenômeno!

    Beijos do
    Léo.

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