Atualmente a marca Sugiyama é conhecida internacionalmente como sinônimo de qualidade em se tratando de fabricação de violões. Trata-se de um violão genuinamente brasileiro, pensado e criado a partir da sonoridade da música brasileira. Não são poucos os violonistas conceituados que têm em suas casas um violão Sugiyama (alguns deles mais de um). Ironicamente, como o próprio nome revela, Sugiyama é japonês. Mas um japonês, sem dúvida nenhuma, de alma brasileira. E sua história é das mais interessantes. Recentemente estive novamente em sua casa, acompanhando Kana, que, após anos de economias, acaba de entrar pro seleto rol de clientes do luthier Shigemitsu Sugiyama san.
Por causa disso tive o raro privilégio de passar algumas horas na companhia dessa figura única, conhecer seu local de trabalho e aprender com suas muitas histórias. Sugiyama é um apaixonado por música, e é fácil perceber que trabalha com amor, além de estar eternamente em busca de uma melhor sonoridade. Trabalha só e arduamente, é quase um mago da madeira, tem com ela uma relação de unidade, como se fosse uma extensão de seu corpo. Tendo em mãos alguns pedaços de madeira de diversos tamanhos e formatos, enfatizou que cada madeira tem um som e um detalhe pode fazer toda a diferença; mostrou-me mesmo vários esqueletos de violões abortados, porque não chegaram ao nível de qualidade esperado.
Sugiyama também possui uma espécie de estufa, onde a madeira passa por uma climatização durante anos (algumas ficam lá durante três décadas!) antes de virar violão (consideradas as devidas diferenças, lembrei-me do processo de fermentação dos vinhos), e explica que muitas coisas devem ser levadas em conta quando um violão está sendo fabricado, entre elas a região pra onde ele irá. Alguns de seus clientes, por exemplo, moram no Texas, onde o clima é praticamente desértico durante o dia e à noite faz um tremendo frio, portanto, a madeira desses violões deve ser preparada levando isso em consideração, caso contrário, depois de pronto o violão pode acabar rachando. Kana perguntou-lhe se havia problema no caso do Japão e ele riu, dizendo-lhe pra ficar sossegada.
Antes de continuar, preciso esclarecer que não o entrevistei, não teria capacidade nem talento pra isso. Meu relato é fruto de um agradável bate-papo, e escrito agora de memória, portanto, passível de erros. Isto posto, continuemos. Por falar em detalhe, um deles também fez toda a diferença em sua vida. No começo da década de 1970, ainda no Japão, esteve em dúvida entre se mudar pro Canadá ou pro Brasil, acabando por optar pelo último, por uma série de fatores. Em primeiro lugar, os trâmites eram menos burocráticos, ou seja, a documentação que tinha de preparar era mais simples; em segundo lugar, o clima era mais convidativo, e o povo, caloroso, assim, consequentemente, esse calor se revelava na música feita aqui. Fiquei pensando no que teria sido feito dele se tivesse optado pelo Canadá.
Kana, um tanto insegura, tocava alguns temas, familiarizando-se com o novo instrumento, ante o olhar observador de Sugiyama, que, em determinado momento, procurou uma lixa, pediu-lhe licença e esfregou-a nos dedos dela. Em seguida, explicou que o violão brasileiro é comumente tocado com a carne dos dedos, e não apenas com as unhas, como tocam muitos, sobretudo na Europa e no Japão. Esse contato faz que o som se propague com mais intensidade. Explicou ainda que, em geral, a música popular brasileira é pensada pra ser tocada ao violão, ao contrário da europeia, que, pela tradição clássica, tem no piano sua base de criação. Por isso ele procura construir seus violões tendo o cuidado de que o som soe de forma igual por toda a extensão do braço do violão.
Depois tocou um pouco o violão de Kana, com firmeza, e percebi que o som saía muito mais alto do que quando da execução dela. Afinal, quem o estava tocando era ninguém menos que seu criador. Contou ele que chegou no Brasil em 1973. Se não me engano trabalhou um tempo na fábrica Giannini, depois decidiu se dedicar a fazer seus próprios violões, tendo como consultores alguns violonistas brasileiros de renome. Acima escrevi "se não me engano" porque Sugiyama ora falava em português, dirigindo-se a mim, ora em japonês, dirigindo-se a Kana, o que fez que me escapasse muita informação. Sem falar que, como sua dedicação durante esses anos todos foi voltada ao aperfeiçoamento de seus violões, seu português não é exatamente impecável.
Como a prosa estava boa, fui me animando e cheguei a lhe fazer bastantes perguntas. Pena que não levei um gravador; muita coisa acabou se perdendo devido a minha fraca memória. Contudo, se o tivesse levado, não sei se ele teria falado tanto e tão abertamente, visto que é arredio a entrevistas. Disse-me que o que tem pra dizer seus violões explicam melhor, além do mais, anda cansado de responder às mesmas perguntas. Indaguei-lhe por que resolveu sair do Japão, e sua resposta foi objetiva. Contou que no Japão, infelizmente, a maioria dos músicos prefere copiar e executar a música estrangeira (isso eu já havia notado, cheguei mesmo a escrever a respeito aqui), e ele, como criador, queria viver num país onde majoritariamente se criasse música, necessitava estar perto da criação, pra ser por ela inspirado.
Foram poucas horas, mas muitos assuntos, só que preciso terminar dar um fim a este texto. Antes, contudo, tenho que dizer que o profissionalismo de Sugiyama é tanto, que, ao saber que estávamos sem carro, deu-nos uma carona, preocupado com a segurança de sua cria. Em casa, contou-nos uma história que ouviu de um amigo japonês músico: há muito tempo, no Mississipi, como houvesse a previsão de uma possível enchente, uma família fugiu deixando pra trás um piano, que, descoberto pelos negros locais, passou a ser tocado por estes, que, embora não soubessem ler partitura, de tanto brincar com o instrumento acabaram sem querer inventando o blues. Em seguida disse que, no caso do Brasil, como o piano era pesado demais pra subir o morro, os negros, ao violão, inventaram o samba. E deu uma sonora gargalhada.
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P.S. Atualmente com 72 anos (embora não aparente), Sugiyama deixa escapar certa insegurança em relação ao futuro, lamentando o momento por que passa a música popular, a desvalorização do violão brasileiro, e confessa, entre orgulhoso e triste, que já há muitos imitando-lhe o estilo e criando violões à la Sugiyama, mas de forma mecânica, em série, ao contrário dele, que fabrica cada violão pra ser único. Mas o futuro de quem imita é o esquecimento, ao passo que o legado de Sugiyama lhe sobreviverá. Quem tem seus violões dará testemunho disso. Por falar neles, meu texto estava repleto de nomes, mas, quando fui pedir-lhe autorização pra citá-los, elegantemente me pediu que não o fizesse, pois poderia parecer que usa tais pessoas pra autopromoção. Fiquei metade chateado, pois tive de mudar bastante o texto, mas metade fascinado, por sua humildade. Depois, pensei, quem quiser chegar a esses nomes só precisa fazer uma rápida busca na internet. Está tudo lá.
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É mano... construir um instrumento é uma arte.
ResponderExcluirQuem compara percebe a diferença entre um instrumento feito por luthier e um de marca.
O de luthier é ooooooutra história.
Quero ver esse violão da Kana aí...
Abração
Valeu, Gabo!
ExcluirÉ um violão de responsa, pode acreditar!
Abração,
Léo.
Tão longe!... :-(
ResponderExcluir... tão perto!
ExcluirQue lindo!
ResponderExcluirQue maravilha! rs
ExcluirNão é só o violão brasileiro que está sendo desvalorizado. São a arte e a cultura brasileira, como um todo, fruto dessa mentalidade demagógica e mercantilista que assola a nossa contemporaneidade.
ResponderExcluirQue bom saber que o grande Sugiyama é uma pessoa tão simples assim.
Belo texto e parabéns pela experiência memorável que vocês viveram.
Belas palavras, Denilsão! Endosso-as.
ExcluirAbraços,
Léo.
Léo...
ResponderExcluirNão sei se comentei, mas no ano passado aprofundei-me (Sim, é possível fazer isso pelo Youtube...rs) nos estudos de lutheria e, se tivesse a sua disposição pra escrever, poderia botar muita lenha nessa fogueira...
Desde a multa que a Gibson recebeu por utilizar madeiras em extinção (o que acho um absurdo!!!! Tenho certeza de que a Gibson para ter um mogno em mãos, replantaria quatrocentos eucaliptos...rs) até a diferença entre um instrumento Neck-Through (inteiriço) e um Bolt-on (braço parafusado)...
https://www.youtube.com/watch?v=hAdQPkbyEG8
E a empolgação do dono da empresa Paul Reed Smith (o próprio)
https://www.youtube.com/watch?v=zmFSivO5Tuk
Pô, Ricardim, você sempre surpreendendo com suas multiplicidades! Vou lá ver.
ExcluirAbração,
Léo.
CAra, eu ja toquei um violão Suguyama, o Rolan tem um. É fudêncio! Impossível não gostar, eu não consigo descrever a beleza do timbre do violão dele.
ResponderExcluirO Rolan, hem? Quem diria! E por que é que ele não toca? rs
ExcluirDetalhe importante: algumas pessoas escrevem Suguiyama, outras, Sugiyama. Pronuncia-se gui, mas em japonês original se escreve gi. Quer dizer, na grafia ocidental, claro; em kanji é outro papo. Hahaha!
Abraço,
Léo.
João Bosco usa um Sugiyama 1981 até hoje. Dava essa informação, "João Bosco usa um violão Sugiyama modelo 1981", em vários de seus discos. Toquinho usa também. E uma infinidade de grandes violonistas, principalmente brasucas. Dá pra perceber que os clientes do japa são artistas que conhecem bem da área, tratam bem o violão. E eu disse usa, no presente. Ou seja, lutheria, como é arte pura, dura, e é entendida e amada por poucos, mas pra sempre. Ele que fique feliz, embora tenha que penar ($$) por não fazer seus instrumento em série. Imagino que qualquer fábrica da área toparia. Mas estou com ele, totalmente de acordo. Isso é arte. E ponto.
ResponderExcluirEu também gostaria de usar uma 'viola' dele, quem sabe ser endorse, pois costumo tratar com carinho meus filhos de 06 cordas.
Aê, Dodô! Só você pra dar nome aos bois! Hahaha!
ExcluirTô contigo, e digo mais: acontece exatamente igual na música, há aqueles artistas em série e aqueles que se esmeram na originalidade, mesmo tendo que penar ($$). Ainda bem que esses teimosos persistem na teimosia (sic), caso contrário hoje ouviríamos uma música e teríamos ouvido todas.
A vida deveria ser assim vivida por todos...
ResponderExcluirValeu, Ricardo! O problema é que, num mundo do ter, o ser é o que menos vale.
ExcluirAbração,
Léo.
Que quiser ouvir um bom solo com um violão Sugiyama, é só escutar a música Aquarela do cantor Toquinho. Lindo!!
ResponderExcluirValeu, anônimo!
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