terça-feira, 12 de março de 2013

Crônicas Desclassificadas: 78) Os novos meninos do Brasil

Moacyr Scliar (1937-2011) costumava escrever às segundas, no caderno Cotidiano, da Folha, crônicas baseadas em notícias ali publicadas no decorrer da semana anterior. Ultimamente, quase sem querer, percebi que tenho sido tocado também por algumas dessas notícias a ponto de querer me manifestar por crônicas ou contos. A mais recente delas que me chamou a atenção foi a do ciclista atropelado que perdeu um braço. Cheguei à conclusão, pois, de que nossa sociedade tem formado jovens um tanto bárbaros (psicopatas?), que,  a despeito da pretensa boa educação que recebem, perderam o senso do respeito pela vida alheia. Então, acabei escrevendo um conto que é mais ou menos uma compilação de casos recentes ou nem tanto, mas que refletem um mal que pode estar se alastrando sem ganhar a devida preocupação da sociedade. No entanto, antecipo: apesar de tomar como base alguns fatos reais, trata-se de uma obra de ficção.

Os Novos Meninos do Brasil

Adolfo H.J., mais conhecido como Júnior, é um cara que sabe viver a vida. Cheio de energia, aventureiro, movido a velocidade (e algum álcool), vive cada dia como se fosse o último. Branco, cabelos pretos e olhos cinzentos, é o típico paulistano de boa família "projetado" pra vencer na vida. Compensa a mediana estatura (1,65 m; ele mente que tem 1,70) com um grande carisma. Sempre estudou nas melhores (e mais caras) escolas, é fluente em inglês (passou um ano em Londres), tem 22 anos e está no último ano de psicologia numa universidade estadual. Quando se formar já terá emprego garantido, porque seu pai, dr. Adolfo, um sujeito bem-relacionado e precavido, anda mexendo uns pauzinhos pro filho não ter de enfrentar muitos problemas pra chegar a este que será seu primeiro emprego. Júnior vai começar por cima! Moral!

Bem-articulado, possui o dom da oratória. Nos trabalhos da faculdade tem um acordo com os colegas: os outros escrevem e ele apresenta. Tem sempre um fulaninho de óculos, um nerd da vida, que no papel é um gênio, mas quando abre a boca... Nessa hora é que ele entra. Dono de um charme peculiar e um corpo trabalhado há anos em academias, tem muitas paqueras (aliás, ficantes), mas não namora a sério, porque ainda é novo e, ademais, prefere ficar com os amigos, visto que é muito popular. Júnior é um líder nato. Engraçado, envolvente, criativo, sempre bola novas ideias pra tirar a turma do tédio de seus compridos dias. Nos fins de semana gosta de viajar, geralmente pra lugares onde haja passeios com alta carga de adrenalina, mas, quando fica por aqui, também encontra alternativas.

Notívago, durante a madrugada está em seu elemento. É figurinha facilmente encontrada na região da Paulista, às vezes voando em zigue-zague pra testar o motor do carro do pai (quando este está de bom humor e joga as chaves na mão do filhão); às vezes caminhando pelo calçadão, garrafa de vodca camuflada sob as axilas, fumando unzinho; outras vezes ainda perambulando pela Augusta, indo do luxo ao lixo, visto que é descolado e entra em qualquer bocada. Júnior é chegado num corpo a corpo; quando criança em geral suas brincadeiras de mão terminavam e pancadaria, com o tempo, foi refinando o estilo, buscando alternativas que não pusessem seu belo rostinho na direção do soco, pois, embora os anabolizantes o ajudem, o tamanho atrapalha, e, vez em quando, aparece um mais "sangue no olho".

Tudo começou quando Júnior, então com doze anos, devido a uma situação um tanto constrangedora que não relataremos, levou uma surra do filho da empregada, um pretinho por quem ele se viu inexplicavelmente atraído. Na verdade não era atração, descobriu depois, apenas curiosidade, visto que em sua escola não havia ninguém com essa tonalidade de pele. Agora, já adulto, nem se lembra mais do garoto, mas, de vez em quando, sai com uns travestis, só de farra, e, na hora de pagar, usa os punhos no lugar da carteira. Claro que está sempre acompanhado de sua patota, porque esses tipos não prestam, e, no mano a mano, acabam sacando da bolsa uma faca, um estilete ou outro material cortante. Certa vez chegou mesmo a se envolver numa situação que foi parar nos jornais, quando, de brincadeira, atacou um suposto gay com uma lâmpada fluorescente.

Mas no final não deu em nada. Dr. Adolfo, bem-relacionado, com a ajuda de um advogado resolveu a questão rapidamente. No mais, a imprensa sempre aumenta. Ninguém morre só de levar com uma lâmpada fluorescente na cabeça. Se bem que no fundo a experiência foi válida pra que Júnior ficasse mais ligeiro. Afinal, ele nem sabia que tinha câmeras naquela região. Depois desse dia, quando pensava em algo pra se divertir, procurava executar o plano em locais com menos visibilidade, como quando ele e seus camaradas incendiaram um mendigo. Dessa vez saiu no jornal, mas a polícia não pôde chegar até eles. Depois soube que o mendigo tinha ascendência indígena, e a coisa tomou proporções maiores, gerou protestos e o escambau, mas, na verdade, ele nem sabia disso. Mendigo lá tem raça?

Agora bola fora mesmo deu quando confundiu uma empregada doméstica com uma prostituta. Também, com aquela roupa, e numa hora daquelas, sozinha num ponto de ônibus de quebrada, o quê que uma pessoa de bem podia pensar? Não teve dúvidas, sentou o braço. Dessa vez deu jornal também, mas, quando envolve mendigo, empregada doméstica ou qualquer outro tipo dessa laia, nunca pega nada. E, quer saber? Nem se arrependeu. Pensou que estava "prestando uma homenagem" àquela que trabalhara em sua casa, a tal da mãe daquele outro, e isso lhe fez até bem. Júnior na verdade não é uma má pessoa, essas brincadeiras são só pra desestressar; esse povo que não estuda não sabe como é punk encarar uma facul. Livros, estágios, TCC, provas. Se o aluno não inventa algo pra se distrair, enlouquece.

Como num fim de semana em que o pai lhe emprestou o carro, daí ele e os manos resolveram dar umas bandas pelo interior, pra respirar um pouco de ar puro e pegar umas interioranas. Foi em São José dos Campos ou outra com nome de santo, nem lembrava mais (cidade do interior é tudo igual, uma praça, uma igreja e um bando de caipiras ao redor), pararam pra almoçar e Júnior estacionou sem querer numa vaga pra deficiente. Daí, o inacreditável: justo naquela hora chegou um aleijadinho motorista. Com um monte de vagas livres, o mané entrou numas de bater boca com ele. Justo com quem? Foi até educado, tentou pedir desculpas, mas o cara, se garantindo dentro do carro adaptado, achando que não ia levar, levou. Júnior arrancou o fulano de dentro do veículo e lhe ensinou boas maneiras. A m... foi que tiveram que sair fora sem comer.

Tempos depois se envolveu em mais uma, mas, por sorte, conseguiu um bode expiatório. Foi quando viajou pruma cidadezinha boliviana lá no c* do mundo, pra ver seu time num jogo importante. Não que ele seja lá um apaixonado por futebol, prefere mesmo jogar, aliás, é um ponta-esquerda de responsa, mas vai aos estádios mais pela farra que pelo jogo. Nessa ocasião, a partida tava tão chocha, que Júnior de repente se lembrou do lance com o índio incendiado e rolou um flashback vendo aquele monte de índios ali. Já tinha tomado umas, e, pra fugir do tédio, lançou um sinalizador na direção da tribo. Essa foi por pouco, porque, quando o negócio matou um dos indiozinhos, ele e mais uns trutas, já de volta a São Paulo, conseguiram "convencer" um laranja lá da periferia a assumir a culpa. O moleque é "de menor" mesmo, daqui a pouco tá na rua.

O problema dessas brincadeiras é que vão virando um vício, e, como todo vício, a gente acaba querendo aumentar a dosagem. Daí que certo dia, após uma balada nervosa, tendo bebido umas e fumado outras, dia quase amanhecendo, dessa vez devidamente protegido sob o teto do carro do pai, levava os camaradas pra casa quando, só pra não perder o hábito, começou a ziguezaguear e furar uns faróis vermelhos, com o ponteiro da velocidade subindo, como num videogame... E plaft! Teria sido um cachorro? Pô, que m... Bem na hora em que virara pra trás pra pegar a garrafa... Foi quando um dos trutas no banco de trás soltou um berro quando reparou num braço que jazia no chão do carro. Cantou pneu e se mandou sem tchau nem bença. Na rua a essas horas boa coisa não devia ser.

Por sorte ninguém anotou a placa. Jogaram o braço pela janela na Marginal Pinheiros e foram dormir. Afinal, não tinha sido um cachorro, óbvio, mas um zicado indo pro trabalho de bicicleta. Júnior leu que se tivessem descoberto o braço a tempo teria dado pra reimplantá-lo, mas São Paulo é grande. E o rapaz nem morreu, só ia ter que aposentar a bike. Uma a menos pra atrapalhar o trânsito. Dr. Adolfo ouviu de Júnior que este tinha atropelado um cachorro, mas no dia seguinte nem associou o incidente à manchete, pois não dá atenção a essas notícias de menor importância. O funileiro em poucos dias fez milagre. Agora, passado um tempo, recém-formado, Júnior é só alegria. Trabalha numa multinacional, responsável pela seleção dos novos funcionários. Nesse exato momento está em sua sala entrevistando um tipo que curiosamente não tem um braço.

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