Segundo o Aurélio, ironia é: "1. Modo de exprimir-se que consiste em dizer o contrário daquilo que se está pensando ou sentindo, ou por pudor em relação a si próprio ou com intenção depreciativa e sarcástica em relação a outrem. Ex.: Voltaire foi um mestre da ironia. 2. Contraste fortuito que parece um escárnio. 3. Sarcasmo, zombaria. Segundo o Houaiss: 1. Figura por meio da qual se diz o contrário do que se quer dar a entender; uso de palavra ou frase de sentido diverso ou oposto ao que deveria ser empregado, para definir ou denominar algo; esta figura, caracterizada pelo emprego inteligente de contrastes, usada literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos. 2. Uso de palavra ou expressão sarcástica; qualquer comentário ou afirmação irônica ou sarcástica. 3. Contraste ou incongruência que se afigura como sarcasmo ou troça; acontecimento marcado por esse contraste ou incongruência.
Estamos entendidos? Antes de tocar num assunto, na dúvida, é sempre bom, irmãos, dar uma espiada em "nosso pai". Isto posto, venho por esta confessar que tenho um fraco pela ironia. Sou um ser irônico por natureza. Fazer o quê? Sou assim. Há coisas que fazem parte de nós desde sempre, como a cor dos olhos, cabelos e epiderme; outras, ganhamos com o tempo, como peso e altura; outras, perdemos com o tempo, como cabelo, virilidade, vergonha na cara etc.; e há ainda aqueles elementos que fazem parte de nossa personalidade: uns são sérios, outros cínicos, outros engraçados, alguns são vagabundos, outros trabalham demais, há os alcoólatras, os que não bebem uma gota, os que adoram churrascos, os vegetarianos, os héteros, os homossexuais, os bissexuais, os pansexuais, os assexuados, os ateus, os crentes, os que só creem na hora do perigo, os superficiais, os profundos, os sensíveis, os brucutus, os galinhas, os fiéis, os radicais de esquerda, os radicais de direita, os radicais de centro (de centro?)...
E há os irônicos, entre os quais me incluo. Cheguei mesmo a escrever crônica a respeito (leia-a aqui). Só que ultimamente o assunto voltou à baila, um pouco por causa de uma crônica que Antonio Prata escreveu na Folha (chamada Guinada à direita – leia-a aqui), leitura à qual ninguém sobreviveu incólume. Houve quem a adorou – como eu, que invejei não a ter escrito –; quem a espinafrou; houve até quem, não a entendendo, elogiou-a; houve, inclusive, aqueles que, mesmo conhecendo o Prata, acharam que ele realmente havia dado a tal guinada à direita... Enfim, parabenizo-o pelo sucesso do texto, pois ultimamente li pouca coisa que gerasse tão calorosas manifestações (obviamente não estou me referindo àquelas que bloqueiam avenidas e promovem quebradeiras). E não medimos o êxito de algo somente pelos aplausos. Muitas das grandes peças de Nelson Rodrigues, quando de sua estreia, receberam honoráveis vaias.
Pois bem, voltemos ao foco. O fato é que eu, que tantas vezes me senti injustamente perseguido por coisas que inocentemente escrevi, e que, outras vezes, senti-me escrevinhando em língua morta, por não conseguir que nem mesmo pessoas próximas a mim me entendessem e apoiassem, sensibilizei-me ante os dissabores do Prata e, qual Jesus em relação a Madalena, resolvi me solidarizar com ele e escrever estas linhas. Claro que ele não precisa de minha solidariedade, afinal, é maior, vacinado, e sabe se defender muito bem. Digo mais, creio piamente que já sabia o auê que suas palavras iriam causar. Contudo, nem que seja por amor à estilística, prosseguirei, não em sua defesa, mas em defesa do uso da ironia, que anda tão em baixa, que cheguei mesmo a ler um ou outro artigo provando por A mais B que o simples fato de usá-la já representa, em si, sinal de tirania.
Ok, não sou professor, filósofo, intelectual, muito menos expert em nada. No máximo, possuo diploma de leigo. O que quero dizer, do alto de minha inguinorança, é que todas essas opiniões radicais é que são tirânicas. Apesar de leigo, creio-me um pensador, e, como tal, dou-me o direito de utilizar-me das ferramentas que quiser pra dar meu recado. Claro, há os irônicos radicais, mas não se combate um radical usando do radicalismo que se situa em seu extremo oposto. O que me parece é que hoje todos somos cheios de certezas, e, munidos dela, tudo o que lemos o fazemos com olhos apaixonados, e tais olhos nos embaçam a visão. O olhar carece de certo distanciamento pra que entendamos determinadas questões (também já escrevi sobre isso – aqui). Imagino que todos os leitores que neste exato momento seguem estas linhas já estudaram interpretação de texto na escola. Tô errado?
Como já escrevi em outra oportunidade, o irônico escreve de forma irônica um pouco por se ver impotente em relação às grandes causas da humanidade (grandes pelo menos pra ele). Na impossibilidade de mudá-las, ridiculariza-as utilizando-se do diapasão da ironia. É crime? Não vejo por que seria. É comum encontrar na literatura mundial personagens asquerosas, ou nem tão asquerosas assim, mas capazes de realizar atos condenáveis pela sociedade. E nesse caso não significa que o autor de tal obra comunga do mesmo pensamento/ação de sua personagem, non è vero? Não condenamos Dostoiévski, tampouco Eça, nem mesmo Camus, diria mais, aplaudimos Saramago, quando nos toma por bestas quadradas que não enxergam um palmo à frente do nariz (e estou me referindo a outro tipo de cegueira)... Agora, o pobre do Prata, numa crônica, pode não?
Claro que as obras dos supracitados autores não podemos chamar de irônicas, mas o raciocínio é o mesmo. Já no caso da crônica do Prata, a beleza e, sobretudo, a coragem dela residem justamente no fato de ele ter transformado a si próprio em personagem. Este, pra mim, foi o golpe de mestre, o que fundiu a cuca de desavisados leitores, e mesmo de avisados. Imagino como ele deve ter se divertido enquanto a escrevia. Citando novamente Nelson Rodrigues (desculpem, estou lendo sua biografia, então ele acaba sendo citação recorrente), escreveu este certa vez: "a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No Crime e Castigo, Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos.
"E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a plateia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los." Faz o maior sentido, não? Claro, Nelson era um apaixonado (graças a Deus!), e, como tal, suas linhas estão repletas de excessos. Contudo, excessos à parte, são de um didatismo cruel. O mesmo que eu quis imprimir nestas minhas torpes linhas. Afinal, há que ser didático nos tempos atuais. Há que tratar marmanjos como se ainda fizessem pipi na cama. Quando homens feitos, graduados, tidos por lidos, agem como analfabetos funcionais, o que mais podemos fazer? Sim, leitor, a ironia nada mais é que a fina flor da impotência. Não fosse, o Prata não teria escrito "Peço perdão aos antigos leitores, desde já, se minha nova persona não lhes agradar, mas no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente".
Agora, pra terminar esta lição, visto que nosso patrão, o relógio, a tal nos obriga, peço aos que chegaram até aqui que, antes de agirem novamente como censores, releiam a frase do Prata, mas só depois de terem dado nova passada de olhos pelo primeiro parágrafo desta apostila. Sim, aquele que começa com "Segundo o Aurélio, ironia é" etc. Eu espero. ... ... ... Releram? Entenderam? Ainda não? Bem, nesse caso, acho que precisamos aplicar uma severa lição de casa. Detecto em alguns o vício da leitura mastigada. O que o cérebro não entende, o coração agride. Sugiro então a leitura de dois ou três gibis; na sequência, um pouco de autoajuda, seguida por algum best-seller (não, não precisa necessariamente ser Paulo Coelho); nesse momento já podem tentar uma ou outra poesia (mas sem muita metáfora, pra não dar indigestão); em seguida, acho que Rubem Braga em doses homeopáticas não fará mal; depois disso, descansem o cérebro por uns dois dias, e já podem retornar. Afinal, antes de começarmos a lição nº 2, é preciso que tenham entendido a nº 1.
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Léo, meu caro, a ironia sutil não é para todos...
ResponderExcluirConformamo-nos? Sei lá. Muitas vezes sou irônica, e nem tão sutil assim, mas me levam a sério demais. Não entendem a ironia.
Daqui a pouco teremos de criar uma espécie de "selo ironia", para que não nos interpretem de forma equivocada...
Enfim...
Beijos irônicos,
Danny.
É, Dannoca, tá todo mundo muito sério, muito certinho... e muito raivoso! Só que avisar que o texto é irônico é que nem explicar a piada antes de contar, né? Tristes tempos... Apesar de tão bem munidos de brinquedinhos eletrônicos que nos resolvem (quase) todos os problemas, vamos cada vez pior de intelecto...
ExcluirBeijos cansados,
Léo.