Eu Não Vi, Mas Me Contaram...: 1) Zidane x Ronaldo

... foi num sábado, véspera da final da Copa do Mundo na França. Ronaldo estava comandando sua equipe em Jaguariúna fazia já duas semanas. Ele acreditava que dentro de mais quatro ou cinco dias terminariam o serviço que haviam ido fazer, mas se viu vítima de uma espécie de rebelião: se não levasse seus comandados de volta pra São Paulo pra verem o jogo da final com suas respectivas famílias, todos entrariam em greve. Voto vencido, foi obrigado a ceder. Ronaldo era um cara responsável, trabalhador e daqueles que pensam sobretudo na empresa; sabia que aquela desnecessária viagem acarretaria gastos evitáveis, mas... o que podia fazer?

Domingo cedinho, ainda não havia amanhecido quando a Kombi da empresa arrancou rumo a São Paulo com Ronaldo ao volante acompanhado dos seis funcionários que haviam feito o percurso inverso duas semanas antes. Após seis paradas (deixou cada um deles em casa), lá ia Ronaldo rumo a Diadema. O sol nascera havia pouco, fazia um dia bonito. Não pôde evitar abrir um sorriso ao pensar na alegria da filhinha ao vê-lo. A menina era seu xodó, Ronaldo vivia pra ela, por quem seria capaz de fazer o impossível. Afinal, ninguém ia morrer por causa desse gasto a mais. Aumentou o volume da música sertaneja e, desafinado, cantou junto "em vez de você ficar pensando nele...".

Estacionou do outro lado da rua, pra não bloquear a entrada da garagem de seu Olegário, que podia sair com o Monza a qualquer momento. Seu Olegário era o proprietário do imóvel e morava com a família na casa da frente. Na garagem só cabia um carro, o dele. Ronaldo desceu as escadas e passou silenciosamente pelas duas primeiras casas alugadas até chegar à terceira, a sua. Nem bem girou a chave e abriu a porta, viu Amanda, sua esposa, dar um pulo do sofá e vir, nua, abraçá-lo. "Amor, que surpresa! Por que você não avisou que vinha? Nossa, que fedor! Vai tomar um banho, já! Dá aqui essa mochila. Vai, vai!"

Ronaldo, enquanto era empurrado pela esposa em direção ao banheiro, de rabo de olho reparou em dois copos vazios (em sua casa não havia taças, pois ele não bebia) e uma garrafa de vinho Natal em cima da mesinha defronte ao sofá. Franziu a sobrancelha; Amanda não tinha o costume de dormir nua, muito menos na sala. ... e também não bebia. Fechou a porta, encarou seu rosto no espelho enquanto o lavava e foi tomado por uma súbita raiva. Vestido, ligou o chuveiro. Com o ouvido grudado à porta, tentou identificar os sons que vinham da sala. Foi quando ouviu murmúrio de vozes e passos apressados. Escancarou abruptamente a porta a tempo de ver Lázaro, o pastor da igreja do bairro, recolhendo suas roupas.

Os dois olhares se fitaram. Num, terror; no outro, ódio. Lázaro saiu em desabalada carreira, com Ronaldo em seu encalço. A cada dois metros caía uma peça de seu vestuário, ora uma meia, ora a cueca, ora um sapato, de modo que, quando pulou o portão e ganhou a rua, Lázaro levava consigo apenas as vergonhas (que, pelo visto, não tinha). Como estivesse o portão trancado e Ronaldo, na pressa, não se tivesse lembrado de pegar a chave, ficou vendo o respeitável pastor correr pela rua, nu como viera ao mundo. Este nascera de novo!

Ronaldo, tranquilamente, tirou um cigarro do bolso, acendeu-o, e pôs-se a fumar enquanto observava o outro sumir por uma esquina. Desceu lentamente os mesmos degraus, fumando, pensativo. Quando entrou em casa, Amanda, já vestida, veio a seu encontro, chorando, dizendo que podia explicar tudo. Ronaldo, um camarada forte como um touro (e aqui não vão segundas conotações), empurrou-a com uma das mãos, fazendo-a cair no chão. Jogou o cigarro, ainda pela metade, no corredor, e, com movimentos lentos, foi desabotoando o cinto, com o olhar cortante como lâmina fixo na adúltera.

Rasgou-lhe o vestido de um puxão e sentiu um prazer sádico em açoitá-la. Teria matado a esposa ali mesmo, se os gritos desta não tivessem acordado toda a vizinhança. Seu Olegário, de pijama, apareceu na entrada e, com um berro, parou Ronaldo. Em tom firme, disse que "se você quiser espancar sua esposa, é do lado de fora do portão. Aqui dentro eu não permito!". O homem era um tampinha, mas o tom de sua voz impunha respeito. Ronaldo, sem nada dizer, deixou o cinto escapar de suas mãos, foi até o quarto, enfiou aleatoriamente algumas roupas numa mala, beijou carinhosamente a testa da filha, que, apesar do barulho, dormia como uma inocente que era, saiu sem falar nada nem fitar ninguém e ganhou a rua. À tarde, contrariando seus hábitos de cristão fervoroso, tomava cachaça num boteco vendo Zidane acabar com a Seleção Brasileira. Ao final da partida, a expressão de seu rosto podia tanto ser um sorriso (amarelo) quanto uma careta.

Na segunda-feira não foi trabalhar. O patrão mandou outro encarregado levar a equipe de Ronaldo de volta a Jaguariúna, pra terminar o trabalho. Na quarta ele apareceu, como se nada tivesse acontecido. A Rádio Peão já deixara todo mundo a par, mas, ou por medo ou por vergonha alheia, ninguém comentou nada. Nos dias que se seguiram, um mudo Ronaldo fazia seu trabalho mecanicamente, com longos momentos de intervalo pra seu cigarrinho, quando se esquecia da vida olhando, pela janela, um ponto qualquer no horizonte. Algumas semanas depois ele não foi trabalhar de novo. A Rádio Peão novamente contou as novidades: Ronaldo pedira transferência ao patrão e fora de mala e cuia pra Brasília... com esposa e filha.

***

O conto acima é inspirado em fatos reais. Na época eu trabalhava na referida empresa. Naturalmente, mudei os nomes, pra proteger a integridade dos envolvidos. Ver eu não vi nada, admito, mas a Rádio Peão me deixou a par de todos os detalhes. Quanto disso é verdade, quanto é ficção, eu não sei. Afinal, quem conta um conto...

***