Nenhuma relação sobrevive muito tempo sem química. Com a
parceria musical não é diferente. Pelo fato de ser letrista, tenho
muitos parceiros, porém, embora a maioria deles me incense, são poucos
aqueles que me incitam a tornar a parceria prolífera. Não culpo os demais. Há vários fatores que pesam contra sua eficácia. Pode parecer bobagem, mas noto que condição social,
posicionamento político, distância geográfica, ausência física e tantas
outras coisas acabam por afastar possíveis parceiros. Aproveito,
portanto, pra pedir desculpas àqueles cuja expectativa foi frustrada por minha proletária
poesia. Em contrapartida, aproveito também pra
homenagear um parceiro que, apesar de ser um dos melhores letristas que
conheço – amizade à parte –, possui a generosidade de receber com bons
olhos as letrinhas que frequentemente lhe envio e, mais que isso, na
maioria das vezes transformá-las em belíssimas canções. Refiro-me a
Marcio Policastro, a quem dedico esta trinca.
1) CENAS DO COTIDIANO
1) CENAS DO COTIDIANO
Escrevi
há alguns dias crônica na qual tratava de meu medo ao politicamente
correto (leia aqui). Há uma patrulha do certo e do errado à solta hoje
em dia que nos poda a liberdade de expressão, ou seja, de nos
expressarmos livremente, com nossos jargões, nosso linguajar por vezes
chulo, nossas gírias e piadas, nossas frases feitas etc. E chega a ser
até engraçado, pois muitas vezes são as mesmas pessoas que se pronunciam
contra a censura às biografias. Peraí então, 'xô ver se entendi: quer
dizer que escrever biografia pode, mas falar um palavrãozinho
besta que é comum até na boca das crianças, não? Qual o critério, pois?
Meu mano Marcio Policastro me contou dia desses que passeava pela famosa rua Oscar Freire, quando, ao passar por uma loja de calçados, ouviu, à queima-roupa, uma perua, histérica, que devia ter um senhor pé (e notem que não estou sendo irônico, nem dizendo que a dita cuja era sapata; estou simplesmente atentando à anatomia, digamos, pododáctila), sentenciar a uma incrédula vendedora que, se não houvesse ali seu número, ela desistiria do país. E contou-me ele mais um ou dois fatos pitorescos que, na verdade, são mais corriqueiros do que pensamos. Foi o suficiente pra que meu cérebro politicamente incorreto começasse a entrar em ação, do que resultou a letra abaixo, que, obviamente, acabou musicada pelo mesmo Policastro. Procurem ouvi-la como uma crônica, sem juízo de valor:
Meu mano Marcio Policastro me deu o privilégio de ver, em primeira mão, a arte da capa de seu primeiro disco, que se chamará, até segunda ordem, Pequeno Estudo sobre o Karma. Aliás, compartilhei do privilégio com outro amigo de Marcio. Contudo, tal ato não foi gratuito: ele nos pediu que lhe déssemos, a respeito da capa, uma opinião sincera. Dei-lhe a minha, que foi concisa, na qual notava sentir falta apenas de um ou outro detalhe que evidenciaria mais o título; já seu outro amigo (não cito seu nome por tratar-se de troca de e-mails privada), por sua vez, dedicou-lhe uma crítica mais laboriosa. Pra resumir, o que interessa aqui é que, em determinado ponto da troca de e-mails, Poli, em resposta à falta de pessoas na capa, alegou ao amigo ser um misantropo.
Conheço-o há não poucos anos, durante os quais tenho notado vez por outra seus arroubos sagitarianos, contudo, se tivesse que o definir num adjetivo, certamente não seria este. Fiquei pensativo, confesso que achei até engraçado vê-lo posicionar-se como um antissocial. Passado um tempo, fui cuidar da vida, mas a tal palavrinha não me saía do pensamento. E, como sói acontecer (sabia que um dia usaria esse bendito verbo soer! Yes!), só consegui me livrar dela quando arregacei as mangas e a transformei em personagem de uma letra. Finda esta, obviamente a enviei a Poli, que lhe preparou uma melodia cuja ironia acentua ainda mais a misantropia da poesia (desculpem o eco). Pois bem, pra ser curto, digo, culto e grosso, vamos a ela, então:
Se você falasse menos
Acho até que os meus venenos
Me morriam na boca
Se você fosse a mobília
Eu não era essa ilha,
Esse urso na toca
3) ESCADARIA
Minha querida amiga (que, não coincidentemente, aniversariou ontem), a poeta maranhense Lúcia Santos, que anda por Sampa a cuidar dos olhos (e tem se acostumado ultimamente a ser musa inspiradora de minhas letras), dia desses postou no fb uma historinha da qual foi personagem passiva, que teve lá seus aspectos cômicos e dramáticos (não necessariamente nessa ordem). Escreveu ela: "Meu irmão ao telefone: 'A consulta não é pra mim, é pra minha irmã que tem glaucoma (...) Não, não é criança, é uma senhora de 49 anos (...) Se ela consegue subir escada sozinha? Acho que não...'. Enquanto ele fala, eu rio em lágrimas. Na parede, o espelho plano reflete a imagem embaçada de uma senhora que não me reconheço. Onde foi que tropecei pra não chegar ilesa?"
Como disse, ela tem se acostumado a ser musa de minhas letras, e tal depoimento acima justifica o que causam em meu cérebro suas palavras. Pois bem, condoído de sua situação, fiquei com a palavra "escada" impregnada em minha massa cinzenta, e só consegui tirá-la de lá depois de dar-lhe um significado mais, como direi?, filosófico. Pensei que todos nós, sem exceção, temos nossos degraus a vencer, afinal, a vida nada mais é que uma escadaria (rumo ao nada?). E, com esses elementos em mente, transformei seu post (ê, palavrinha!) numa letra, no intuito de, ao menos, reconfortá-la. E, em seguida, enviei-a a Marcio Policastro, que tratou de dar cores sonoras ao preto e branco desses degraus poéticos. Espero que lhes agrade o resultado (e nem preciso dizer que dedico a canção à musa):
Meu mano Marcio Policastro me contou dia desses que passeava pela famosa rua Oscar Freire, quando, ao passar por uma loja de calçados, ouviu, à queima-roupa, uma perua, histérica, que devia ter um senhor pé (e notem que não estou sendo irônico, nem dizendo que a dita cuja era sapata; estou simplesmente atentando à anatomia, digamos, pododáctila), sentenciar a uma incrédula vendedora que, se não houvesse ali seu número, ela desistiria do país. E contou-me ele mais um ou dois fatos pitorescos que, na verdade, são mais corriqueiros do que pensamos. Foi o suficiente pra que meu cérebro politicamente incorreto começasse a entrar em ação, do que resultou a letra abaixo, que, obviamente, acabou musicada pelo mesmo Policastro. Procurem ouvi-la como uma crônica, sem juízo de valor:
Uma perua histérica dava piti:
"O meu numero, mocinha, é 44:
Se não tiver, desisto desse país!"
A mocinha falou: "Tá esperando o quê, infeliz?"
Dois moleques com a 10 do Barcelona
Caminhavam pela rua João Ramalho
Um cantou, quando cruzou uma gostosona:
"Ai, se eu te pego, se eu te pego eu te estraçalho!"
A gostosona falou: "Eu sou traveco, seu pirralho!"
São cenas que não passam na tevê
Pois quem só anda de helicóptero não vê
Na Paulista, numa fila do Bradesco
Um anão de terno ria ao celular
Veio um segurança, um tipo gigantesco
Que pediu por favor pr'ele desligar
O anão falou: "Sou deputado. Ponha-se no seu lugar!"
Seis da tarde, ia rumo a Itaquera
Num vagão hiperlotado do metrô,
Uma loira que, por bem, nem loira era
Que xingou quando um negão a encoxou
O negão falou: "Vai de táxi, minha flor!"
São cenas que não passam na tevê
Pois só quem anda de helicóptero não vê
***
2) CULTO E GROSSO
Meu mano Marcio Policastro me deu o privilégio de ver, em primeira mão, a arte da capa de seu primeiro disco, que se chamará, até segunda ordem, Pequeno Estudo sobre o Karma. Aliás, compartilhei do privilégio com outro amigo de Marcio. Contudo, tal ato não foi gratuito: ele nos pediu que lhe déssemos, a respeito da capa, uma opinião sincera. Dei-lhe a minha, que foi concisa, na qual notava sentir falta apenas de um ou outro detalhe que evidenciaria mais o título; já seu outro amigo (não cito seu nome por tratar-se de troca de e-mails privada), por sua vez, dedicou-lhe uma crítica mais laboriosa. Pra resumir, o que interessa aqui é que, em determinado ponto da troca de e-mails, Poli, em resposta à falta de pessoas na capa, alegou ao amigo ser um misantropo.
Conheço-o há não poucos anos, durante os quais tenho notado vez por outra seus arroubos sagitarianos, contudo, se tivesse que o definir num adjetivo, certamente não seria este. Fiquei pensativo, confesso que achei até engraçado vê-lo posicionar-se como um antissocial. Passado um tempo, fui cuidar da vida, mas a tal palavrinha não me saía do pensamento. E, como sói acontecer (sabia que um dia usaria esse bendito verbo soer! Yes!), só consegui me livrar dela quando arregacei as mangas e a transformei em personagem de uma letra. Finda esta, obviamente a enviei a Poli, que lhe preparou uma melodia cuja ironia acentua ainda mais a misantropia da poesia (desculpem o eco). Pois bem, pra ser curto, digo, culto e grosso, vamos a ela, então:
CULTO E GROSSO
Se você falasse menos
Acho até que os meus venenos
Me morriam na boca
Se você fosse a mobília
Eu não era essa ilha,
Esse urso na toca
Se você não me agulhasse
Talvez eu tivesse a classe
Prima-irmã da etiqueta
É que quando você grita
Minha alma de eremita
Quer descer desse planeta
Sou um tipo misantropo
Sociável, ma non troppo
Quê que eu posso fazer?
Sou um lobo mal-domado,
Porém, quando encurralado,
Atacar me dá prazer
Eu aceitaria a jaula
Mas cabulei umas aulas
Do curso de adestração
Sei me portar bem à mesa
Só que a minha natureza
Só que a minha natureza
Quer que eu coma com a mão
Eu como carne de pescoço
Mas não engulo disparate
Sou um cara culto e grosso
Fora do meu habitat
***
3) ESCADARIA
Minha querida amiga (que, não coincidentemente, aniversariou ontem), a poeta maranhense Lúcia Santos, que anda por Sampa a cuidar dos olhos (e tem se acostumado ultimamente a ser musa inspiradora de minhas letras), dia desses postou no fb uma historinha da qual foi personagem passiva, que teve lá seus aspectos cômicos e dramáticos (não necessariamente nessa ordem). Escreveu ela: "Meu irmão ao telefone: 'A consulta não é pra mim, é pra minha irmã que tem glaucoma (...) Não, não é criança, é uma senhora de 49 anos (...) Se ela consegue subir escada sozinha? Acho que não...'. Enquanto ele fala, eu rio em lágrimas. Na parede, o espelho plano reflete a imagem embaçada de uma senhora que não me reconheço. Onde foi que tropecei pra não chegar ilesa?"
Como disse, ela tem se acostumado a ser musa de minhas letras, e tal depoimento acima justifica o que causam em meu cérebro suas palavras. Pois bem, condoído de sua situação, fiquei com a palavra "escada" impregnada em minha massa cinzenta, e só consegui tirá-la de lá depois de dar-lhe um significado mais, como direi?, filosófico. Pensei que todos nós, sem exceção, temos nossos degraus a vencer, afinal, a vida nada mais é que uma escadaria (rumo ao nada?). E, com esses elementos em mente, transformei seu post (ê, palavrinha!) numa letra, no intuito de, ao menos, reconfortá-la. E, em seguida, enviei-a a Marcio Policastro, que tratou de dar cores sonoras ao preto e branco desses degraus poéticos. Espero que lhes agrade o resultado (e nem preciso dizer que dedico a canção à musa):
Ao subirmos os degraus da vida
Cada um deles tem um preço, um peso
Mas é melhor que escolher a descida
Nunca chegamos, no fim, sem tropeços
Isso faz parte da subida
Isso faz parte da subida
Mas é melhor que voltar ao começo
Ou que o incêndio mostre a porta da saída
Mas ainda assim subimos
E, ainda assim, sublimes
Nunca chegamos quem fomos, ao alto
Da nossa vã sabedoria
E sabe lá se lá em cima o salto
É o que nos resta dessa escadaria...
***
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