A primeira vez que ouvi falar de Daniel Gonzaga foi num especial da Rede Globo em que ele apareceu, tímido, um tanto inseguro, cantando Sangrando, do pai Gonzaguinha. Tímido, sim; inseguro, sim; mas muito parecido com o pai, sobretudo no timbre e na firmeza da voz, que naquele momento parecia não lhe pertencer. Não tive como não me emocionar. De repente, atrás dele desceu um telão e lá estava o velho Luiz Gonzaga Jr. sangrando com o filho, num tardio dueto. Aí foi impossível conter o pranto. Naquela noite eu não imaginava que nossas vidas ainda iam se cruzar.
Voltando no tempo, lembro-me perfeitamente de outro dia em que fui levado às lágrimas. Minha mãe, como de costume, lavava a roupa ouvindo no rádio (era na AM) o programa de Eli Correa. Eli, com seu jeito exagerado, aliás, não muito diferente do de outros apresentadores de AM, de repente começou a contar quase berrando como se dera o acidente que vitimara de modo fatal o cantor Gonzaguinha. Não sei se foi seu jeito de dar a notícia ou se foram os primeiros versos de O Que É O Que É, entoados pelo autor na sequência, mas o fato é que entrei num pranto convulsivo que durou um tempo infindável. Já gostava de Gonzaguinha quando (pra mim) Chico não passava de uma banda e Caetano, de um cara sem lenço e sem documento. Jobim, então, nem existia. Daí o desespero do pranto, que foi dos maiores que já me acometeram, superior ao da morte de Senna, por exemplo.
Cinco anos depois Daniel Gonzaga lançava seu primeiro disco, Sob o Sol. Ouvi em algum lugar a canção Poeira e, por causa dela, só sosseguei quando adquiri o disco. Descobri então um compositor muito diferente daquele tímido e quase doce rapaz do especial da Globo. O compositor de Sob o Sol era árido, intempestivo, indagador. O DNA não lhe passara imune. O rapaz já chegava dizendo a que vinha; em vez de renegar o pai, expunha-o (e a si): "Eu não nasci, fui consequência de uma vida que meu pai não escolheu/ A culpa não é minha, o sonho continua sendo meu/ Amigo, me diz o quê que eu faço aqui"; em vez de esconder seus medos, punha-os na vitrine, com a coragem que só sabem ter os que temem: "Às vezes eu e o meu medo/ Rezamos juntos por conseguir o direito de morrer mais cedo". Na primeira canção de seu primeiro disco já mostrava que por ali vinha chumbo grosso!
2) Poeira (Daniel Gonzaga)
Daniel Gonzaga e O Terço
Daniel Gonzaga e O Terço
Então ele veio a Sampa, e nossa incansável Daisy Cordeiro - que, sempre atenta aos bons compositores, já o conhecia - terceirizou-o, levando pra cima e pra baixo, apresentando-o a uma série de pessoas, entre elas, Élio Camalle. O encontro de dois compositores de verve não podia passar em branco, obviamente. Daniel, que sempre fora (e continua sendo) um compositor solitário (como fora o pai), mostrou a Camalle uma inacabada canção que foi um prato cheio pra que este a concluísse. Quando Camalle me mostrou Mambembe, o resultado daquele encontro, vi que nascia ali uma pérola de nosso cancioneiro. Infelizmente Daniel nunca a gravou, e Camalle, tomado por uma estética pop que dominou seu segundo CD, Cria, acabou transformando a parceria de tal modo que ficou irreconhecível. Aquela dor pungente e ao mesmo tempo lírica não sobreviveu ao arranjo "conceitual". Não é que tenha ficado ruim. Pra quem nunca ouviu a canção tal qual foi concebida, não estava mal, porém pra mim, que a ouvi "no berço", a versão do disco não me convenceu. Tanto que, no lançamento do Cria, no Sesc Pompeia, pro qual Daniel veio do Rio fazer uma participação, ambos esqueceram o arranjo e se entregaram à emoção original.
Então eu e Kana fomos ao Rio, onde encontramos Daisy, que também estava por lá, e foi justamente por mãos dela que fomos parar no bairro de Humaitá, mais especificamente no apartamento de Daniel. Deparei-me com um rapaz imperscrutável, de olhos que fitavam um ponto num horizonte invisível enquanto seu dono se esforçava por prestar atenção numa conversa que deveras não lhe interessava. Não chegava a ser antissocial, era até simpático, mas, quando abria a boca, dificilmente conseguia não ser vago. Tentei achar o ponto franco, a parte mais rasa do fosso que me permitisse penetrar em sua fortaleza, mas não obtive êxito. Essa parceria me escapou. Va bene, não podemos ganhar todas... O mais engraçado (ou seria triste?) é que tenho certeza de que ele, mais que não se lembrar de mim, nem sequer deve se lembrar daquele dia. E o pior é que ainda tive comichões ao deparar-me com Noel Rosa - Uma Biografia, de João Máximo e Carlos Didier, livro que eu procurava havia séculos e que encontrei ali, largado sobre um móvel qualquer num canto de sua sala. Faltou pouco pra eu ter uma recaída e ser acometido pelo vício infantil do furto (na época eram gibis em bancas de jornais). Contive-me, contudo.
Não nos cruzamos mais. Acompanhei sua sossegada trajetória à distância, mas atento. Veio seu segundo CD, menos inspirado, mas igualmente ácido, Os Passos na Passarela, de 1998, em seguida um disco em homenagem ao pai e ao avô, que não me interessou muito, visto que o que dele eu queria ouvir era seu trabalho autoral. Esse disco me pareceu um acerto de contas com seu passado, pra que ele pudesse zerá-lo e, por fim, amadurecido, lançar seu melhor trabalho, Areia, de 2004, este, sim, uma obra-prima! Nele Daniel explora a urbanidade do pai mesclada com a sonoridade nordestina do avô. E consegue, filtrando essas duas referências, construir uma sonoridade sua, verdadeira, original. É um disco repleto de canções de grosso calibre, literalmente, como nos versos da canção Beijo (nada a ver com a homônima de Kana), "Comprei um revólver pra poder te dar um beijo [...]/ Hoje, meu irmão, é de coração/ Eu quero liberdade pra pisar o pé em cima do chão/ E ser um homem melhor de ideia/ E talvez um homem um pouco mais sereno de coração/ Comprei a arma para ver se sobrevivo e/ desarmo essa armação [...]". A maturidade chegou a um compositor sem rabo preso, sem compromissos alheios à arte que exerce e exercita. Claro que, como não sou crítico, não pretendo que minha opinião seja mais que puro achismo. Ah, seu novo disco, Comportamento Geral, é inteiramente dedicado às canções do pai. Claro que ninguém mais do que ele tem o direito de gravar um disco somente com canções de Gonzaguinha. Da mesma forma, eu tenho o direito de aguardar, pois, o próximo. Até porque, musicalmente falando, prefiro as leituras às releituras.
3) Beijo (Daniel Gonzaga)
No percurso de Daniel, cheguei a pensar que ele, como mais um artista filho de artista, cedo ou tarde acabaria se aproximando da turma da Trama. Mas Daniel não é dado a andar em bandos (o que eu já devia ter percebido). Ele, sim, estaria sendo verdadeiro se intitulasse algum trabalho seu de O Bloco do Eu Sozinho. Mas... Quer saber? Acho que sozinho ele está muito bem acompanhado.
***
***
Leozito,
ResponderExcluirDo Daniel, só conheço o disco Areia, e gosto muito! As músicas dele têm realmente uma acidez cortante e desconcertante. O que eu acho extremamente necessário hoje em dia. Que bom termos um Daniel Gonzaga entre nós!
Beijo!
Salve, Danny! Bom te ler por aqui de novo!
ResponderExcluirVá lá no link e ouça outras canções dele, ou então, no próprio site do moço, os links todos estão no final do texto.
Beijão do
Léo.
Me refiro ao Dani sempre como meu irmãozinho carioca. Doce, amoroso e ao mesmo tempo intempestivo, quase intocável. Um cara que você pode ficar na casa dele por dias sem conseguir encontrar com ele, mas quando encontra tem bacia de agua no chão da sala com argila pra juntos fazermos bonecos e feijãozinho na panela de pressão...aquele especial com carne moída. Aquele que consegue assitir à um filme na Tv com o fone de ouvido, ouvindo um Cd e lendo um livro simultâneamente. Aquele que adora aeromodelismo, skate e jogar futebol com Salvador (seu labrador), enfim..eu amooooooooooooooo esse cara!
ResponderExcluirDaisy Cordeiro
Oi, Daisoca!
ResponderExcluirE, como disse, foi você quem no-lo terceirizou.
Beijos do
Léo.
Daniel é talentoso. Já o assisti algumas vezes. Gosto de seu trabalho. É verdadeiro e isso, não tem preço. Valeu, Daniel Gonzaga.
ResponderExcluir"Eu não ando só, só ando em boa companhia,
Com meu violão, minha canção e a poesia"
Salve, parceira! Estamos todos bem acompanhados!
ResponderExcluirBeijos do
Léo.
P.S. Saudade de parceirar contigo...
Não achei ele tímido naquele especial. Achei que parecia um Gonzaguinha de arrepiar. Aliás eu tenho uma história com o Gonzaguinha, qaundo ele morreu eu tava muito na fase "Gonzaguinha", cantor inciante de barzinhos saca? Po, chorei tanto quando morreu o Gonzaguinha.
ResponderExcluirAí me veio o Daniel e quando eu escutei aquela dele com o Elio eu falei: - Taí saiu ao pai!
"Ninguem olha nos meus olhoos, ninguem sabe quem sou eeeeu"
Salve, Sonk! Na verdade, quando disse que o achei tímido, foi o que ficou em minha lembrança daquela noite, mas não posso ser 100% seguro, porque com os olhos embaçados não dava pra ver direito. Hehe! Mas ainda bem que ele saiu ao pai, né não?
ResponderExcluirAbração do
Léo.
P.S. Aquela com Camalle tá no player do X do Poema: Mambembe.
ResponderExcluirRsrs. Léo, claro que eu lembro de vc e da Kana! Que absurdo! Rsrs. Obrigado pelo texto e pelas lembranças. Espero que vc ouça o CD novo. Eu gosto bastante. Dá pra ouvir no site: www.danielgonzaga.com.br. ----- um fortíssimo abraço! (e ao Camalle, Cordeiro, Brandão.......). Até já!
ResponderExcluirSalve, Daniel!
ExcluirFico feliz em saber que meu texto chegou até você. Os abraços serão dados. E vou lá no seu site ouvir as novidades. Sucesso aí!
Abração do
Léo.