Já deixei claro neste espaço por várias oportunidades que tenho um carinho muito grande pelo Uruguai. Um grande país se faz com grandes pessoas, grandes atitudes, com pensadores que sejam também providos de grandes sentimentos. E, pra mim, o exemplo maior de um grande uruguaio é Mario Benedetti, escritor e poeta falecido em 2009. Na Argentina há espetaculares escritores, mas ser argentino não é fácil; a tradição faz pesar a camisa; a intelectualidade quase europeia, ou, como diria Marcos Aguinis, o atroz encanto de ser argentino, essa conjunção de fatores deu ao mundo escritores de complexa (e por vezes exaustiva) literatura. Benedetti, sem essa responsabilidade, tornou-se um escritor que, sem detrimento da intelectualidade dos vizinhos, alcançou alta carga dramática, resvalando no sentimentalismo sem, contudo, sucumbir a ele. Tal mescla resultou em romances fantásticos, como A Trégua e Gracias Por El Fuego, entre outros (sem falar em seus pungentes poemas).
Estou no momento terminando a deliciosa leitura de Andamios (andaimes), ainda sem tradução pro português. Comecei até a fazer uma tradução por conta própria, vai que alguma editora mais ousada se interessa... Mas, indo ao assunto do texto, em Andamios Benedetti aproveita-se da personagem principal do livro – Javier Montes, um ex-exilado político que, de volta ao Uruguai após doze anos, escreve artigos esporádicos pra um jornal espanhol – pra expor argumentos bem interessantes acerca da sociedade atual. Um desses artigos em particular me chamou tanto a atenção que resolvi traduzi-lo. Deliciem-se:
Eu e a publicidade*
Por Mario Benedetti
Por sorte, suspeito de que não seja o único. Estamos saturados. Também é certo que a propaganda produz anticorpos. Por exemplo, tem gente que tem vontade de se barbear com qualquer maquininha que não seja a que a TV nos propõe e impõe. Se de todo jeito vou consumir a refinada porcaria que o mercado exibe, reclamo que não seja a do chiqueiro televisivo. Pelo menos quero ser dono de minha opção de lixo.
Um dado curioso: as agências de publicidade recrutam seus protótipos na classe média, porém sempre os apresentam com a vestimenta, as posturas, o ar vaidoso, a rotina ociosa da alta burguesia. O dia em que chegarmos a compreender que a propaganda comercial, além de nos incitar a adquirir um produto, também está nos vendendo uma ideologia, nesse dia talvez passemos da dependência à desconfiança. E esta, como se sabe, é uma antecipação da independência.
A esta altura, acho que ficou evidente que eu e a publicidade não nos damos bem.
Yo y la publicidad
Estou no momento terminando a deliciosa leitura de Andamios (andaimes), ainda sem tradução pro português. Comecei até a fazer uma tradução por conta própria, vai que alguma editora mais ousada se interessa... Mas, indo ao assunto do texto, em Andamios Benedetti aproveita-se da personagem principal do livro – Javier Montes, um ex-exilado político que, de volta ao Uruguai após doze anos, escreve artigos esporádicos pra um jornal espanhol – pra expor argumentos bem interessantes acerca da sociedade atual. Um desses artigos em particular me chamou tanto a atenção que resolvi traduzi-lo. Deliciem-se:
Eu e a publicidade*
Mais de uma vez estive tentado a telefonar a uma ou várias agências de propaganda, a fim de lhes transmitir uma mensagem muito pessoal e sucinta: "Não percam seu tempo comigo. Para mim a propaganda é como se não existisse. Quando pela manhã leio o jornal, os anúncios não contam. Não importa que ocupem um espaço de cinco centímetros numa coluna ou uma página inteira. Não existem. Passo as páginas procurando e lendo textos, notícias, artigos de opinião, análises econômicas, placares esportivos, mas não me detenho em nenhum anúncio. Não contam. Desvio-me deles como de inimigos ou de buracos na estrada."
Com a televisão me acontece algo parecido. O zapping nervoso, irreprimível, de meu indicador obstinado vai me salvando do melhor detergente do mundo, do automóvel mais veloz, do cigarro mais elegante, do xampu esplendoroso. Na verdade não suporto que a telinha estúpida arrume ou bagunce minha vida.
Por sorte, suspeito de que não seja o único. Estamos saturados. Também é certo que a propaganda produz anticorpos. Por exemplo, tem gente que tem vontade de se barbear com qualquer maquininha que não seja a que a TV nos propõe e impõe. Se de todo jeito vou consumir a refinada porcaria que o mercado exibe, reclamo que não seja a do chiqueiro televisivo. Pelo menos quero ser dono de minha opção de lixo.
Um sociólogo norte-americano disse há mais de trinta anos que a propaganda era uma formidável vendedora de sonhos, mas o fato é que eu não quero que me vendam sonhos alheios, mas simplesmente que os meus se realizem. Por outro lado, é óbvio que a publicidade mercantil é direcionada a todas as classes sociais: uma empresa que fabrica ou vende, por exemplo, aspiradores não pergunta a seu cliente em potencial se ele é latifundiário ou metalúrgico, militar aposentado ou pedreiro; nem mesmo pergunta se é católico ou ateu, marxista ou guarda-costas. Sua única exigência é que lhe paguem o preço estabelecido. No entanto, ainda que a propaganda esteja direcionada a todas as classes, o produto que motiva cada anúncio sempre aparece rodeado por um só perfil: o da classe alta ou da que ambiciona sê-lo.
O fabricante importador de uma determinada marca de cigarros sabe perfeitamente que seu produto pode ser adquirido por um burocrata, um torneiro ou uma manicure, mas, quando o promove, na televisão aparecerá fumando-o algum playboy cujo mais sacrificante que terá que fazer será em todo caso jogar polo, ou tostar ao sol na coberta de um iate, tendo ao lado uma beldade feminina de microtanga. Uma moto pode ser uma ferramenta de trabalho indispensável para um mensageiro ou um eletricista mecânico, porém na publicidade aparecerá vinculada a um alegre bando de rapazes e garotas, cuja tarefa prioritária na vida é sair de excursão em meio a paisagens impecáveis, desprovidos, logicamente, de detalhes tão incômodos como a miséria ou a fome. Um xampu pode ter como usuária normal uma telefonista ou uma funcionária da indústria têxtil, mas no comercial de TV as cabeleiras (que serão loiras, como as norte-americanas, e não castanhas, como as ostentadas por lindíssimas e trigueiras morenas da América Latina) ondearão ao impulso de uma suave brisa, enquanto a dona desse encanto correrá lentamente (é óbvio que na TV se pode "correr lentamente") ao encontro do musculoso adônis que a estará esperando com um sorriso daqueles.
O mundo capitalista tem suas divindades: por exemplo o dinheiro, que representa o Grande Poder. Para o homem que tem dinheiro, e portanto poder, a vida é diversão, conforto, estabilidade. Não tem problemas de trabalho (entre outras coisas porque normalmente não trabalha) e até apela ao sacrossanto dinheiro para solucionar seus problemas sexuais e/ou sentimentais. Naturalmente a publicidade não nos propõe que todos ingressemos nesse clã de privilégio, já que nesse caso deixaria de sê-lo. Apenas tenta nos convencer de que essa classe é a superior, a que indefectivelmente tem ou vai ter o poder, é a que definitivamente decide. Mostrar (com o pretexto de um relógio ou de uma loção after shave) que seus integrantes são ágeis, criativos, elegantes, sagazes, charmosos, é também um modo de mitificar essa espécime, de deixar bem estabelecida sua primazia e, em consequência, de assegurar uma admiração e até um culto a essa imagem. É óbvio que a classe alta tem gerentes pançudos, feias matronas, um ou outro crápula, mas não são estes os que aparecem na telinha.
O fabricante importador de uma determinada marca de cigarros sabe perfeitamente que seu produto pode ser adquirido por um burocrata, um torneiro ou uma manicure, mas, quando o promove, na televisão aparecerá fumando-o algum playboy cujo mais sacrificante que terá que fazer será em todo caso jogar polo, ou tostar ao sol na coberta de um iate, tendo ao lado uma beldade feminina de microtanga. Uma moto pode ser uma ferramenta de trabalho indispensável para um mensageiro ou um eletricista mecânico, porém na publicidade aparecerá vinculada a um alegre bando de rapazes e garotas, cuja tarefa prioritária na vida é sair de excursão em meio a paisagens impecáveis, desprovidos, logicamente, de detalhes tão incômodos como a miséria ou a fome. Um xampu pode ter como usuária normal uma telefonista ou uma funcionária da indústria têxtil, mas no comercial de TV as cabeleiras (que serão loiras, como as norte-americanas, e não castanhas, como as ostentadas por lindíssimas e trigueiras morenas da América Latina) ondearão ao impulso de uma suave brisa, enquanto a dona desse encanto correrá lentamente (é óbvio que na TV se pode "correr lentamente") ao encontro do musculoso adônis que a estará esperando com um sorriso daqueles.
O mundo capitalista tem suas divindades: por exemplo o dinheiro, que representa o Grande Poder. Para o homem que tem dinheiro, e portanto poder, a vida é diversão, conforto, estabilidade. Não tem problemas de trabalho (entre outras coisas porque normalmente não trabalha) e até apela ao sacrossanto dinheiro para solucionar seus problemas sexuais e/ou sentimentais. Naturalmente a publicidade não nos propõe que todos ingressemos nesse clã de privilégio, já que nesse caso deixaria de sê-lo. Apenas tenta nos convencer de que essa classe é a superior, a que indefectivelmente tem ou vai ter o poder, é a que definitivamente decide. Mostrar (com o pretexto de um relógio ou de uma loção after shave) que seus integrantes são ágeis, criativos, elegantes, sagazes, charmosos, é também um modo de mitificar essa espécime, de deixar bem estabelecida sua primazia e, em consequência, de assegurar uma admiração e até um culto a essa imagem. É óbvio que a classe alta tem gerentes pançudos, feias matronas, um ou outro crápula, mas não são estes os que aparecem na telinha.
Um dado curioso: as agências de publicidade recrutam seus protótipos na classe média, porém sempre os apresentam com a vestimenta, as posturas, o ar vaidoso, a rotina ociosa da alta burguesia. O dia em que chegarmos a compreender que a propaganda comercial, além de nos incitar a adquirir um produto, também está nos vendendo uma ideologia, nesse dia talvez passemos da dependência à desconfiança. E esta, como se sabe, é uma antecipação da independência.
A esta altura, acho que ficou evidente que eu e a publicidade não nos damos bem.
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Yo y la publicidad
Por Mario Benedetti
Más de una vez estuve tentado de telefonear a una o varias agencias de propaganda, a fin de transmitirles un mensaje muy personal y muy escueto: "No se gasten conmigo. Para mí la propaganda es como si no existiera. Cuando por la mañana leo el diario, los avisos no cuentan. No importa que ocupen un espacio de cinco centímetros por una columna, o una página entera. No existen. Paso las páginas buscando y leyendo textos, noticias, artículos de opinión, análisis económicos, resultados deportivos, pero no me detengo en ningún aviso. No cuentan. Los eludo como a enemigos o como a baches en la carretera".
Con la televisión me pasa algo semejante. El zapping nervioso, incontenible, de mi índice obstinado, me va salvando del detergente mejor del mundo, del automóvil más veloz, del cigarrillo más elegante, del champú esplendoroso. En verdad no soporto que la pantallita estúpida organice o desbarate mi vida.
Por suerte sospecho que no soy el único. Estamos saturados. También es cierto que la propaganda genera anticuerpos. Por ejemplo, a uno le vienen ganas de afeitarse con cualquier maquinita que no sea la que la tele nos propone e impone. Si de todos modos voy a consumir la refinada cochambre que exhibe el mercado, reclamo que no sea la del muladar televisivo. Al menos quiero ser dueño de mi opción de basura.
Un sociólogo norteamericano dijo hace más de treinta años que la propaganda era una formidable vendedora de sueños, pero resulta que yo no quiero que me vendan sueños ajenos sino sencillamente que se cumplan los míos. Por otra parte, es obvio que la publicidad mercantil va dirigida a todas las clases sociales: una empresa que fabrica o vende, por ejemplo, aspiradoras, no le pregunta a su cliente potencial si es latifundista u obrero metalúrgico, militar retirado o albañil; tampoco le pregunta si es católico o ateo, marxista o gorila. Su única exigencia es que le paguen el precio establecido. Sin embargo, aunque la propaganda va dirigida a todas las clases, el producto que motiva cada aviso siempre aparece rodeado por un solo contorno: el de la clase alta o la que ambiciona serlo.
El fabricante importador de una determinada marca de cigarrillos sabe perfectamente que su producto puede ser adquirido por un burócrata, un tornero o una manicura, pero cuando lo promociona en televisión aparecerá fumado por algún playboy, cuyo más sacrificado quehacer será en todo caso jugar al polo, o tostarse al sol en la cubierta de un yate, junto a una beldad femenina en mínimo tanga. Una motoneta puede ser un indispensable útil de trabajo para un mensajero o un mecánico electricista, pero en la publicidad aparecerá vinculada a una alegre pandilla de muchachos y muchachas, cuya tarea prioritaria en la vida es la de salir en excursión en medio de paisajes impecables, desprovistos por supuesto de detalles tan incómodos como la miseria o el hambre. Un champú puede tener como usuaria normal a una telefonista o a una obrera textil, pero en la tanda comercial de la televisión las cabelleras (que serán rubias, como las norteamericanas, y no oscuras, como las que ostentan las lindísimas morochas/trigueñas de América Latina) ondearán al impulso de una suave brisa, mientras la dueña de ese encanto corre lentamente (es obvio que en la tele se puede "correr lentamente") al encuentro del musculoso adonis que la espera con la sonrisa puesta.
El mundo capitalista tiene sus divinidades: verbigracia el dinero, que representa el Gran Poder. Para el hombre que tiene dinero, y por tanto poder, la vida es diversión, confort, estabilidad. No tiene problemas laborales (entre otras cosas, porque normalmente no labora) y hasta apela al sacrosanto dinero para solucionar sus problemas sexuales y/o sentimentales. Por supuesto, la publicidad no nos propone que todos ingresemos en ese clan de privilegio, ya que en ese caso dejaría de serlo. Tan sólo intenta convencernos de que esa clase es la superior, la que indefectiblemente tiene o va a tener el poder, la que en definitiva decide. Mostrar (con el pretexto de un reloj o de una loción after shave) que sus integrantes son ágiles, ocurrentes, elegantes, sagaces, apuestos, es también un modo de mitificar a ese espécimen, de dejar bien establecida su primacía y en consecuencia de asegurar una admiración y hasta un culto de esa imagen. Es obvio que la clase alta tiene gerentes panzones, feas matronas, alguno que otro rostro crapuloso, pero no son estos los que aparecen en la pantallita.
Un dato curioso: las agencias de publicidad reclutan sus prototipos en la clase media, pero siempre los presentan con la vestimenta, las posturas, el aire sobrador, la rutina ociosa de la alta burguesía. El día en que lleguemos a comprender que la propaganda comercial, además de incitarnos a adquirir un producto, también nos está vendiendo una ideología, ese día quizá pasemos de la dependencia a la desconfianza. Y ésta, como se sabe, es un anticipo de la independencia.
A esta altura, creo que está claro que yo y la publicidad no nos llevamos bien.
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* Extraído do capítulo 52 do livro Andamios, de 1996. Tradução minha.
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Muito bom! E não... de facto, oops!, de fato Benedetti não é o único... :-)
ResponderExcluirAbraço.
Ainda bem, né, Samuel?
ResponderExcluirAbração do
Léo.
Massa!
ResponderExcluirAdoro o Benedetti. Tava indo comprar a trégua mas não achei e esqueci, agora vou atrás novamente.
:-)
Veleiro
Vá, sim, meu filho! E, se tiver grana, compre a obra completa. Esse cara é um dos maiores escritores do século XX, sem sombra de dúvida!
ResponderExcluirAbração do
Léo.