quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Trinca de Copas: 1) Ayrton Mugnaini Jr., Enrico Di Miceli e Walter Ribeiro

Observação: Pra não gerar melindres entre os parceiros, optei pela já manjada (porém democrática) ordem alfabética por título.


1) DITADURA DA ALEGRIA

Como todos sabem (ou quase todos), escrevi neste espaço recentemente um texto acerca de Enrico Di Miceli, quando de seu aniversário. Aproveitei a oportunidade e lhe enviei um soneto fresquinho, que tinha nascido praticamente junto com outro texto que também escrevi recentemente, Tratado sobre o Desamor. Aliás, o soneto era-lhe mesmo um complemento, um bônus. Talvez inebriado pelas canções do disco de Enrico, Amazônica Elegância (com Joãozinho Gomes, deixe-me acrescentar antes que vire vidraça!), resolvi lhe enviar o soneto/letra, ainda mais porque fazia tempo que não lhe mandava nenhuma letra nova. 

Pouco tempo depois ele me ligou lá de Macapá pra contar as novidades e avisar que a canção estava pronta. Quando abri meu e-mail e  a ouvi, fiquei fascinado, pois, embora a gravação pertença à Tosco Records, era linda! E doída! Explicara-me ele que uma pessoa que lhe era muito próxima tinha acabado de ser internada com leucemia aguda e que ele compusera a melodia como um desabafo, uma válvula de escape. Por isso saíra assim tão profunda. Como já falei demais de Enrico no texto recente, vou direto pra letra. Quem quiser saber mais a respeito dele já sabe onde procurar.    

DITADURA DA ALEGRIA  

Agora que até a felicidade

Dá pra ser parcelada no cartão

Agora, que eu perdi a identidade,

Me diz pra quê que serve um coração

Usando tantos livros de autoajuda
A lei te obriga a ter que ser feliz
A vã filosofia ficou muda
Na dúvida passamos um verniz

Agora, que pensar saiu de moda
Um tolo todo dia inventa a roda
Deus vive dentro de um computador

Viver é pose pra fotografia
E, em plena ditadura da alegria,
Me diz o que é que eu faço co'essa dor


***

2) RECEITA DO SAMBA

O compositor Leoni é um camarada que sabe usar muito bem o marketing pessoal. Mesmo estando longe da grande mídia há algum tempo, aprendeu a usar seu site de forma bem criativa. Está sempre em contato direto com seus fãs, delegando a estes uma participação mais ativa em seu processo de criação, seja no que se refere a shows, discos, ou mesmo parceria. Neste último quesito, chega mesmo a, de tempos em tempos, bolar uma espécie de concurso do qual o vencedor se tornará "oficialmente" seu parceiro.

Desavisado, resolvi participar do mais recente deles. Chamava-se Essa Letra Vai Dar Samba?, e a competição se dava assim: Leoni postou uma melodia sua e de Walter Ribeiro (compositor baiano que havia sido finalista em concurso anterior)... Quer dizer, depois descobri que a melodia era apenas do segundo. Depois, já tendo sido escolhido o vencedor do concurso, Leoni acrescentaria uma vírgula ou uma nota à canção e assim se tornaria parceiro do vencedor (que moleza, hem?). Pois bem, voltemos. Os candidatos tinham que letrar o samba em questão e disponibilizar no youtube um vídeo cantando sobre a base.

Como letrar melodia é meu forte, pensei que ia ser barbada. E, de fato, fiz a letra em tempo recorde, e, particularmente, fiquei muito satisfeito com o resultado, pois, além de ter conseguido um belo resultado, ainda resumi nela o que penso sobre muitas questões referentes à sociedade de hoje. Convidei Sonekka pra gravá-la e fui lá me inscrever. Pra resumir, não passei nem da primeira fase. E o que me entristeceu mais foi perceber que o nível estava pra lá de baixo. Letras cheias de lugares-comuns, outras sem a menor noção de ritmo e prosódia... Enfim, paro por aqui senão vão dizer que sou mau perdedor. Ah, a campeã foi uma letra que exaltava o Rio de Janeiro (guardo meus comentários pra mim).

Que fiz eu? Descaradamente, sabedor de que Walter Ribeiro era, como eu, membro do site do Caiubi, tasquei-lhe à queima-roupa o convite pra que ele compusesse outra melodia pra minha letra baldia. E aí foi minha vingança. No bom sentido, claro, pois as há (refiro-me a vinganças no bom sentido). Não é que o gajo topou? E ainda fez um samba mais bonito que o outro! Confiram:

RECEITA DO SAMBA
Walter Ribeiro - Léo Nogueira

Agora é minha hora, companheiro
Agora, não tem chororô nem vela

É bom guardar na bolsa seu dinheiro

E ouça: acabou sua novela


Vi muito fura-fila, e eu co'a senha
Tranquilamente à espera. Até quando?
Por isso, por favor, senhor, não venha
Dizer que eu não sei com quem tô falando

Não é questão de esquerda ou de direita
É de deveres e direitos
É de respeito ao cidadão
Pra se viver em paz, vale a receita
Que o samba ensina sem cobrar
Que é não parar a evolução

Às vezes, pôr o dedo na ferida,
Sem medo, também é sabedoria
Guardar as quatro patas pra outra vida
Não mata ser gentil e dar bom-dia

Se quer andar de vidro e peito abertos
Ô, indivíduo! Faça sua parte!
Trocar o que é fácil pelo certo
É o jeito natural de fazer arte

Não é questão de esquerda ou de direita
É de deveres e direitos
É respeitar o cidadão
Pra se viver em paz, vale a receita
Que o samba ensina sem cobrar

Que é não parar a evolução

***

3) SAMBA FUNERÁRIO


Acho que quis ser parceiro de Ayrton Mugnaini desde sempre. O problema é que Ayrton tem no humor sua maior fonte de inspiração. Já eu tenho por hábito tematizar a dor. Claro que nossos universos não se resumem a isso, além do mais, acho mesmo que o humor é uma espécie de máscara da dor. E o cômico é que meus amigos me acham um cara muito engraçado, mas em geral isso não se traduz em minhas letras. Talvez a dor seja a máscara de meu humor...

Bem, há alguns milhões de anos achei que tinha feito umas três ou quatro letras engraçadas e mandei-as pra Ayrton. No final das contas as letras não eram tão engraçadas assim (nem tão boas), e a parceria continuou ali, à espera. Finalmente acabamos parceiros meio que por acaso, por intermédio de Sonekka, que mostrou uma parceria dele comigo a Ayrton, que mexeu aqui e acolá, suprimiu um isso, acrescentou um aquilo, e a canção acabou virando o hino do Tonq (Tosqueira ou Não Queira), grupo do qual ambos fazem parte.

Mas ainda não era isso. Não podíamos ser considerados "oficialmente" parceiros. Ou melhor, podíamos ser considerados oficialmente, mas não "na vera". Foi então que, depois de eu ter me frustrado com o resultado da primeira investida, foi a vez de Ayrton dar o passo. Mandou-me um e-mail dizendo que tinha algumas melodias vagas que careciam de letras como inquilinos e perguntou-me se eu não queria ajudá-las. Topei na hora, até porque sempre preferi letrar melodias. Só que ficou nisso, ele acabou nunca me enviando as tais melodias, mas aí a coragem já havia voltado, e foi minha vez de dar novo passo.

Como a maioria de meus parceiros me pede letra, sou obrigado a compor letras antes das respectivas melodias. Por conta disso, bolei alguns métodos que democratizo aqui. Os dois mais certeiros são: 1) Pego uma melodia de alguma canção de que gosto e faço-lhe uma nova letra. Em seguida, sem dizer nada ao parceiro escolhido, envio-lhe a letra que fiz pra canção tal, e este, sem nada saber, põe-lhe outra melodia. Às vezes me divirto comparando as duas. 2) Vez em quando eu mesmo, no intuito de metrificar e dar ritmo aos versos, acabo cantarolando alguma melodia enquanto vou inventando versos. De vez em nunca sai uma boa melodia que acabo aproveitando, mas, na maioria das vezes, descarto-a e mando a letra resultante pro parceiro escolhido.

Deu-se assim com Samba Funerário. Tinha o tema na cabeça, mas, pra desenvolvê-lo, acabei cantarolando um sambinha mequetrefe que me ajudou a consolidar as estrofes. E ele ficou ali, sem que eu soubesse pra quem o iria mandar. Explico: Quando faço uma letra, na maioria das vezes penso já no parceiro enquanto vou fazendo. Mas há oportunidades em que não me vem ninguém à mente, e vou simplesmente compondo o que sai da cachola. Samba Funerário foi desse grupo. Daí calhou que, relendo-o, notei que ali havia dor e humor, então veio meu "eureca"! Naquela letra havia um pouco de Ayrton e um pouco de Léo! Humor + dor. Resultado: Mandei-lhe a letra num dia e dois dias depois ele me mandou a canção gravada. E o resultado está aqui:

SAMBA FUNERÁRIO*
Ayrton Mugnaini Jr. - Léo Nogueira

Quando alguém morre
Os anjos dizem amém
Os anjos dizem amém
E os demônios também

A família chora
O defunto vira santo
Dizem: não era hora
Dizem: não era pra tanto
Se a família é pobre
E caixão for pouco demais
Aí a terra cobre
O chão aceita um a mais

Quando alguém morre...

Mas o tempo passa
E todo mundo se esquece
Se um lembra, acha graça
Outro vai fazendo prece
Na fila tem mais gente
Esperando pra nascer
A vida segue em frente
Sina é viver e morrer

Ninguém quer morrer
Nem eu nem você
Ninguém quer morrer
Nem vovó, nem neném
Ninguém quer morrer
Mas se ninguém morrer
Aqui não vai mais ter
Lugar pra ninguém

Não faço drama
Todo fruto cai do galho
E ainda “fica a fama,
E a fama dá trabalho”
Se São Pedro me chamar
Vou ter que sair da praça
Quem me ama vai chorar
E invejoso, rir sem graça

Quando alguém morre
Os anjos dizem amém
Os anjos dizem amém
E os demônios também

***

Aviso aos navegantes: Não me responsabilizo pela qualidade das gravações (algumas até que estão boas, mas não é a regra), apenas pela das canções, ok?


*Como Ayrton acabou posteriormente gravando nosso samba em seu mais recente CD, em respeito aos ouvidos dos leitores subi a gravação do disco, obviamente de melhor qualidade. O mesmo ocorreu com Receita do Samba, remixada por Walter e disponível em sua página (walterribeiro.com.br), de onde roubei, aliás. (6/2/2012)

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