Não me lembro de nada. Claro, tinha pouco mais de três anos de idade. Tudo o que sei foi de ouvir falar. E também do que me contaram tenho vaga lembrança. Dá a impressão de que minha família fez um acordo tácito como que pra apagar o ocorrido. Sei apenas que foi durante a Copa do Mundo de 1974. Naquele dia o Brasil jogava. Não me perguntem contra quem. Eu estava certamente diante da tevê, mas meus pensamentos infantis deviam estar vagando por universos que hoje me são inacessíveis. Assim como os meus, os pensamentos de minha mãe não estavam naquela tela. Ela, alheia a tudo, no quintal, pendurava no varal as roupas que acabara de lavar. Que não deviam ser poucas. Estava grávida de não sei quantos meses. Havia uma terceira personagem que também não acompanhava o jogo: o cachorro do vizinho. Talvez irritado pelos fogos, num acesso de desespero, pulou o muro e resolveu descontar sua ira em minha mãe, que, ao perceber a indesejável visita aproximar-se, trepou numa árvore que havia no quintal (sim, havia uma árvore no quintal!), com inesperada agilidade, e pôs-se a gritar por socorro. Seus berros, contudo, foram inúteis. O máximo que conseguiram foi juntar-se aos da multidão. O jogo acabou, o cachorro se cansou, minha mãe desceu (ou caiu) da árvore e, alguns meses depois, deu à luz uma menina a quem jamais chegou a ver, pois nasceria morta.
1) Mandingueiro (Moacyr Luz - Aldir Blanc)
O passo seguinte foi sair do transe e pedir a Camalle que pegasse o violão, no que foi prontamente atendida. Pude então testemunhar um momento mágico. De olhos arregalados (e ouvidos, idem) presenciava uma letra minha, que não passava de meras palavras jogadas num papel, ganhar contornos melódicos. Parecia um duelo no qual os dois duelistas estivessem do mesmo lado. Daisy cantava e Camalle acompanhava, às vezes se antecipando a ela, até que, por fim, estava pronta a canção, que, por uma feliz coincidência, tinha sido por mim intitulada Nós.
Como quando o sexo é bom e feito por vez primeira, o processo se repetiu e nasceu naquela mesma noite A Morena e a Paz, segunda parceria do trio num único dia. No meu caso, o deslumbramento era dobrado, pois, além de ser a primeira vez que via ao vivo um parceiro musicar uma letra minha, ainda tinha o agravante do método "cordeiriano" de compor. Hoje posso explicar (e entender) melhor: Daisy Cordeiro não é simplesmente uma das melhores e mais ecléticas cantoras brasileiras (o crítico Mauro Dias já escreveu que ela, além de ser extraordinária sambista, domina com naturalidade os mais variados ritmos), é também uma compositora dona de uma intuição ímpar. Embora não toque nenhum instrumento, guarda em seu cérebro a sequência harmônica exata de cada melodia que compõe, chegando ao extremo de corrigir desavisados violonistas.
Foi assim meu primeiro contato com Daisy Cordeiro. Outros encontros vieram, e a mágica se repetiu sem nunca perder seu encanto. Às vezes nem precisávamos compor pra detectar a magia, pois no caldeirão de Daisy há outras receitas além das musicais. Foi pensando nisso tudo que resolvi escrever este depoimento. Poderia, em vez disso, ter escrito acerca dos prêmios que ela já conquistou, dos projetos que encabeçou (e dos que produziu pra terceiros), dos dois CDs que gravou, dos mares que navegou e os céus que cruzou levada por seu (en)canto, mas isso qualquer repórter mais ou menos interessado, com o auxílio de São Google, poderia lograr. Optei por escrever o que nenhum deles poderia.
Morreu com ela meu sonho de ter uma irmã. Com os anos, outros sonhos (poucos) viraram realidade e outros tantos por sua vez também encontraram o descanso eterno no cemitério dos sonhos natimortos. E a vida prosseguiu por caminhos inescrutáveis até me levar pela mão ao apartamento onde vivia meu então recente amigo e parceiro Élio Camalle, lá se vão anos. Adoraria descrever com riqueza de detalhes aquele dia, pois me foi de imensa importância, porém, minha precoce esclerose terminaria por me fazer construir uma obra de ficção, e não um depoimento verídico. Assim sendo, contarei apenas o que se salvou em meu disco rígido.
Eis que a campainha tocou e entrou ninguém menos que Daisy Cordeiro. Eu a conhecia de nome. Sendo ela uma amiga de Camalle e companheira de armas (nessa guerra infindável que é a música), mais cedo ou mais tarde eu, recém-alistado, teria mesmo que a conhecer. Deslizava dentro de um leve e generoso vestido que não escondia um admirável par de pernas (pernas estas que tratei de resgatar na foto acima). Sua altura também era simpática, pois, em vez de afastar, aproximava. Por carecer, digamos, de altivez. O olhar um tanto estrábico acompanhado por um charmoso sorriso dava o toque final à receita.
Não me lembro do que comemos. Tampouco do que bebemos. Minha memória salvou apenas informações acerca da agradável tarde que passamos e que entrou pela noite. Em determinado momento veio à tona a famosa pastinha verde (quem não está inteirado leia o texto Boca da Noite – Parte I), que então morava temporariamente e de favor no apartamento de Camalle. Daisy depôs nela olhos ávidos, sentou-se no chão e começou a folheá-la. Enquanto isso, eu conversava com Camalle, fingindo indiferença mas notando que aos poucos uma transformação ocorria naquela criatura. Eu, que já havia visto um santo baixar num amigo de um amigo certa vez, identifiquei o processo, mas fui tranquilizado por Camalle, que dava sinais de que tudo estava sob controle e que aquilo sempre acontecia. Daisy, com uma mão tapando um ouvido, balançava a cabeça pra cima e pra baixo sussurrando palavras incompreensíveis, pigarreando e fechando os olhos de vez em quando.
Não me lembro do que comemos. Tampouco do que bebemos. Minha memória salvou apenas informações acerca da agradável tarde que passamos e que entrou pela noite. Em determinado momento veio à tona a famosa pastinha verde (quem não está inteirado leia o texto Boca da Noite – Parte I), que então morava temporariamente e de favor no apartamento de Camalle. Daisy depôs nela olhos ávidos, sentou-se no chão e começou a folheá-la. Enquanto isso, eu conversava com Camalle, fingindo indiferença mas notando que aos poucos uma transformação ocorria naquela criatura. Eu, que já havia visto um santo baixar num amigo de um amigo certa vez, identifiquei o processo, mas fui tranquilizado por Camalle, que dava sinais de que tudo estava sob controle e que aquilo sempre acontecia. Daisy, com uma mão tapando um ouvido, balançava a cabeça pra cima e pra baixo sussurrando palavras incompreensíveis, pigarreando e fechando os olhos de vez em quando.
O passo seguinte foi sair do transe e pedir a Camalle que pegasse o violão, no que foi prontamente atendida. Pude então testemunhar um momento mágico. De olhos arregalados (e ouvidos, idem) presenciava uma letra minha, que não passava de meras palavras jogadas num papel, ganhar contornos melódicos. Parecia um duelo no qual os dois duelistas estivessem do mesmo lado. Daisy cantava e Camalle acompanhava, às vezes se antecipando a ela, até que, por fim, estava pronta a canção, que, por uma feliz coincidência, tinha sido por mim intitulada Nós.
Como quando o sexo é bom e feito por vez primeira, o processo se repetiu e nasceu naquela mesma noite A Morena e a Paz, segunda parceria do trio num único dia. No meu caso, o deslumbramento era dobrado, pois, além de ser a primeira vez que via ao vivo um parceiro musicar uma letra minha, ainda tinha o agravante do método "cordeiriano" de compor. Hoje posso explicar (e entender) melhor: Daisy Cordeiro não é simplesmente uma das melhores e mais ecléticas cantoras brasileiras (o crítico Mauro Dias já escreveu que ela, além de ser extraordinária sambista, domina com naturalidade os mais variados ritmos), é também uma compositora dona de uma intuição ímpar. Embora não toque nenhum instrumento, guarda em seu cérebro a sequência harmônica exata de cada melodia que compõe, chegando ao extremo de corrigir desavisados violonistas.
Foi assim meu primeiro contato com Daisy Cordeiro. Outros encontros vieram, e a mágica se repetiu sem nunca perder seu encanto. Às vezes nem precisávamos compor pra detectar a magia, pois no caldeirão de Daisy há outras receitas além das musicais. Foi pensando nisso tudo que resolvi escrever este depoimento. Poderia, em vez disso, ter escrito acerca dos prêmios que ela já conquistou, dos projetos que encabeçou (e dos que produziu pra terceiros), dos dois CDs que gravou, dos mares que navegou e os céus que cruzou levada por seu (en)canto, mas isso qualquer repórter mais ou menos interessado, com o auxílio de São Google, poderia lograr. Optei por escrever o que nenhum deles poderia.
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Oi irmãozinho, amado amigo!! vou te lembrar. Naquele apartamento, a gente levava uma churrasqueirinha de tomada, então comíamos carninhas, linguicinhas, regadas a bastante cervejinha.kkkkkkk. Naquela noite também nasceu "Demência" em parceria com nossa querida Marcia Salomon. Obrigada por me mostrar os sentimentos da sua lembrança. Estou muito emocionada! beijos e te amo!
ResponderExcluirMoço, fui lá no blog e não consegui postar o comentário. Coisas do blogger... Então vou escrever aqui rapidamente o que eu ia escrever lá depois que li o texto.
ResponderExcluirCara, você tem uma virtude que eu admiro muito, uma virtude que realmente eu gostaria de desenvolver mais, trabalhar mais, torná-la mais presente no cotidiano. É a generosidade. Você é um cara muito generoso. Não sei quem te ensinou essas coisas, se veio contigo lá do sertão, se foi construído pouco a pouco com pá, cimento e esquadria em terras paulistas com as dificuldades pulando pela janela da porta da rua, ou se é coisa hereditária.
Sim, assim como tem doenças que herdamos, tem também alguns vícios. E essa tua generosidade é quase um vício, uma virtude-vício. Você tenta, você reluta, você incomoda com umas alfinetadas aqui, umas cutucadas ali, umas ironias acolá... E lá vem de novo o vício-virtude da generosidade te alimentar ou te proteger ou te alforriar ou te bendizer. Ou tudo de uma só vez.
O que você escreveu sobre a Daisy Cordeiro é pura generosidade. A descrição da moça, os contornos de sua aura sentada ali no chão de casa vasculhando escritos, o jeito de compor, o olhar...
É meio bobo escrever isso aqui na lista, fora do contexto das nossas infindáveis conversas em email (que aliás estamos em falta) porque essa impressão pode não ser compartilhada pelos demais. Mas às favas o pouco que os demais sabem. Que procurem saber, foi tão fácil pra mim. Que vasculhem seus escritos nas letras de canções e descubram o que eu descobri. Que entendam de uma vez por todas que toda palavra é autodenúncia! E você está aqui há anos se autodenunciando.
Um tempo atrás escrevi por aqui no mesmo viés, ritmo, vibe com que escrevo no email pra você e fui mal interpretado por alguém que viu em mim o que a boca estava cheia, o que a alma estava cheia. E era feio pra danar.
Prometi não mais escrever, diminui consideravelmente os escritos pra não incentivar ninguém a revelar sua própria incapacidade de compreensão. Mas aí veio aquele email da Memeca homenageando a Solange e eu vi que a culpa não é de quem escreve, é de quem lê, e como se lê ruim nos dias de hoje... como se lê apressado, como se lê fora do compasso... Tempos modernos, meu rei, tempos modernos.
Eu fiquei tão feliz com o email da Memeca pra Solange, achei tão puro, tão, tão... deixa eu encontrar a palavra... Tão humano! Ela lamentava a distância, a impossibilidade de felicitar pelo aniversário reafirmando que o amor era o mesmo, a amizade era a de sempre e que se sentia muito feliz por tê-la como amiga.
Aquele email é a Memeca em carne viva, com aquele abraço caloroso e humano que só ela tem. Aquele email era uma denúncia, de si mesmo, de amizade, de fraternidade, de humanidade.
E esse seu escrito sobre a Daisy Cordeiro é da mesma forma. Fraterno, humano, generoso.
Todo mundo tem seu lado sombrio, você tem o seu (e eu conheço uma parte) eu tenho o meu (e desconfio que você conheça também uma parte) e saber conviver com ele é um mistério. Uma das coisas que aprendi é que o exercício das virtudes nos deixa em paz, nos dá um fôlego para aceitar o que não aprovamos (nosso lado sombrio). Tentar pôr luz nos nossos vícios-defeitos é uma forma de aceitá-los e conviver com eles de uma forma respeitosa, tranquila, mas austera. Deixando bem claro em quem manda em quem...
Tenho um cd da Daisy Cordeiro aqui, vou ouvir por esses dias imaginando a cena retratada no seu post do blog.
Claro, ouvi a canção Nós. Uau. De arrepiar, muito, mas muito bonita.
É isso, tomei café hoje de manhã curtindo essa canção, e fiquei pensativo.
abraçãoooo
Veleiro
P.S. agora não vou mais editar, só colei aqui o que tinha escrito lá... rsrsrs
Cordeiro, queridona!
ResponderExcluirQue bom que gostou! Fico feliz. Mas acho que, fora os comes e os bebes, o encontro com a Salomon foi outro dia. Sondemos...
Sergim, agradeço as gentis palavras. Respondi lá na m-música.
Beijos do
Léo.
...olha Daysinhaaa que gata!rsss..que ela é um puta cantora eu já sabia...parabéns Daysinha..sucesso sempre!!!
ResponderExcluirGabo, desculpe, mas seu comentário me passou batido até hoje. Contudo, concordo, sem tirar nem pôr (ou tirando e pondo... qué sé yo!)
ResponderExcluirValeu!
Abraço do
Léo.