O Sopa de Letrinhas, pra quem não conhece, é um sarau (des)organizado há anos por Vlado Lima. Quem já foi sabe o que é. Quem nunca foi, lendo o texto que escrevi a respeito de seu mentor intelecnorante (Vlado Lima, 86% Mau) terá uma ligeira ideia da “bagaça”. Ou então, indo ao bar Lua Nova na última sexta-feira de cada mês (leve dentes de alho e crucifixos!). Foi justamente numa dessas noites que conheci Lúcia Santos.
1) Farsa (Zeca Baleiro - Lúcia Santos)
Nila Branco
Na noite em questão, o Sopa estava de endereço novo, ainda que provisoriamente. Ia acontecer na Casa das Rosas, na av. Paulista. E Kana estava entre as atrações musicais. Chegamos cedo. Noite agradável, clima amistoso, vários conhecidos, a noite prometia. Só que o que não podíamos adivinhar é que o milagre seria maior que a promessa. Ainda mais porque o começo do sarau foi desanimador: abrindo a noite, um cara esquisitão, suando, recitava (lendo) um poema quilométrico recheado de linguajar chulo. Seu intuito era provocar, mas a impressão que dava era a de que o maior incomodado era ele. E aqui gostaria de abrir um parêntese: alguns amigos, pra me agradar, chamam-me poeta. Não me considero um, embora tasque a palavra lá no meu release. Mas faço isso apenas pra me sentir com sangue azul em determinadas situações. Na realidade acho que, hoje em dia, apesar de haver um sem-número de poemas, são cada vez mais raros os poetas. Ser poeta não é só se vestir de forma singular e empostar a voz pra recitar qualquer porcaria. Ser poeta é algo que deve ser natural da pessoa. Só quem é sabe sê-lo sem esforço. Foi o que pudemos identificar em seguida, com a apresentação (e a transformação) de Lúcia.
Quando Vlado a apresentou, vi subir ao palco uma moça pequena, de olhos vivazes, sestrosos, e atitude brejeira, dentro de um vestido de mariazinha (ou terá sido saia?). Ah, ostentava um penteado (?) rasta. Notei-lhe um ligeiro tremor de insegurança que foi logo abandonado quando abriu a boca e uma voz firme, incisiva, sentenciou, com genuíno acento nordestino: “haja rivotril/ pra ficar meio débil/ a ponto de acreditar/ que as suas mentirinhas/ são ingênuas brincadeiras/ primeiro de abril/ só tomando rivotril/ pra não mandar você/ para a puta que o pariu”! Tive que agachar pra pegar meu queixo que havia caído. Kana ficou eufórica (futuramente musicaria esse poema). A noite estava salva! O que simbolizava a presença de palco de Lúcia, contudo, nada teria valido se sua poesia não fosse boa. E era.
Lúcia recitou ainda outros poemas que agora me fogem, mas igualmente certeiros. Outros poetas e cantores se apresentaram, entre eles Kana (maravilhosa, como sempre), alguns foram bem, outros nem tanto, mas a figurinha da moça recitando seus poemas com aquela postura intrépida, com um quê de cangaceira, ficou dando voltas e mais voltas em minha mente durante toda a noite. Findo o sarau, encontramos o igualmente bom poeta Leopoldo Skoberg, companheiro de versos e prosas (e copos), a quem perguntei se conhecia a dita cuja. Respondeu-me ele: “Claro, é minha amiga”. E, antes que pudéssemos soletrar rivotril, pegou-nos pelas mãos e apresentou-nos, com os melhores adjetivos. Quando demos por nós, já estávamos proseando como velhos conhecidos.
Daquela noite em diante, passamos a nos ver com regularidade, ora em nossa casa, ora em seu apartamento. Pudemos, inclusive, frequentar alguns de seus “famosos” saraus, performáticos, enigmáticos, uma festa (etílica) de versos e cores, nos quais as luzes funcionavam mais por sua ausência, e Leopoldo, pela presença de seu narguilé (ah, e de seus versos, por supuesto). Eu me sentia meio que na caverna de Sociedade dos Poetas Mortos. Pairava no ar uma atmosfera de conspiração.
Kana parceirou com ela antes de mim, já que Lúcia tinha certa dificuldade (timidez?) pra parceirar a quatro mãos. Eu me contentava em “terceirizar” seus versos, apresentando-os a feras como Clarisse Grova, Adolar Marin, Kléber Albuquerque, Élio Camalle… Até que um dia, desabusadamente, danifiquei-lhe um pequeno poema, tomando a liberdade de acrescentar-lhe outras estrofes e enviar o produto final pra que Marcio Policastro o musicasse. Dessa maneira tão, digamos, natural, espontânea, antiforçada, tornamo-nos, enfim, parceiros.
Aqui abro outro parêntese (será que fechei o anterior?): Lúcia é um bom exemplo da diferença entre poeta e letrista. Quer vê-la em sérios apuros, entregue-lhe uma melodia pra ser letrada. O suor é inversamente proporcional ao resultado. Porém, quando a palavra se acende em seu âmago, labaredas de versos incendeiam papéis, corações e mentes (e, atualmente, telas de computadores). Contudo, Lúcia prima pela sonoridade dos versos, mesmo quando a métrica e/ou a rima não estão em seus lugares esperados. Por isso, seus poemas são facilmente musicáveis (e musicados). Assim, ela é hoje uma letrista da maior relevância, sem, efetivamente, dignar-se de ser uma.
Outra característica de Lúcia é a defesa do direito ao silêncio, principalmente nos muitos saraus de que participa. Certa vez, presenciei um arranca-rabo entre ela e um poeta que não gostava de ouvir. E sou testemunha de que nesses momentos suas palavras são igualmente cortantes. Assim como não houve esparadrapo que me bastasse quando li seus livros Quase Azul Quanto Blue e Uma Gueixa Para Bashô (este último, de haicais). Seu livro do meio, Batom Vermelho, ela ainda está me devendo, e aproveito a ocasião pra cobrar-lhe em público o mimo.
Ainda a respeito de haicais, lembro-me de que Lúcia, numa entrevista, comentava que, apesar de parecer aos leigos mais fácil, é um desafio escrever um poema em apenas três versos. Eu que o diga. Já tentei um milhão de vezes mas nunca me saiu nenhum que prestasse que sobrevivesse pra contar a história, digo, o poema. Tenho, irremediavelmente, uma verborragia hemorrágica escorrendo-me pelas veias… Responda-me você, oh, destemido leitor, se é fácil escrever versos como “amor água/ em solidão pedra/ tanto medra até que mágoa”; “como um conto de Tchecov/ o amor/ ainda comove"; “minha mão adaga/ quando a tua/ não me afaga”; “não me lance/ esse olho de lince/ senão eu danço”; “tua língua em meu ouvido/ babel/ onde tudo faz sentido”; “em tua mão destra/ meu violino só/ vira orquestra”. Atreva-se, leitor! Ou haicale-se pra sempre!
Abro mais um parêntese (o terceiro): de tanto lhe devorar os versos, acabei decifrando-a: Lúcia é uma poeta que vai na contramão de Pessoa. Ao passo que este dizia que “o poeta é um fingidor; finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, Lúcia é uma sentimental; sente tão completamente, que chega a sentir que não é dor a dor que deveras falseia. Em outras palavras, Lúcia se traduz (se trai) e se desvela tendo sua poesia como fio condutor. Quando diz “teimo/ em não pôr termo nesse amor,/ ardo,/ te amo/ mesmo que finda a tarde,/ na madrugada queimo”, está realmente em chamas, não é apenas figura de linguagem. Da mesma forma, está dizendo a verdade quando afirma que “é muita vela pra pouco defunto/ é muita boca pra pouco assunto/ é pouca chuva pra tanto deserto/ é pouca luva para tanto frio/ é muito cio para pouco falo/ é pouco abalo pro meu terremoto/ é muita veia para pouco sangue/ é pouco caso pra tanto tesão/ é muita areia pro teu caminhão”. Mas, quando ama, sem ficar rubra, revela que “ele nem se tocou/ que estava/ enfim/ diante de um grande amor/ quando deu por si/ caiu em mim”. Ou ainda, quando se deixa traduzir, dizendo: “sou bacana/ discípula de Baco/ sou sacana/ se enchem meu saco/ sou cigana/ não caio no vácuo/ venho e vou/ sou mais do que tenho/ por isso dou”. E o que dá não é pouco.
Há algum tempo, Lúcia se desiludiu do frio de São Paulo (não estou me referindo ao clima) e voltou à sua terra, pra, como diria o Natureza, “viver de brisa/ arder em brasa/ no calor do Maranhão”. Cá ficamos nós, saudosos da prosa, dos versos, dos saraus... Dia desses, Camalle me confidenciou: “Cara, tô louco pra musicar um poema da Lúcia, mas, como é um haicai, tá faltando estrofe”. Ao que lhe respondi: “Não seja por isso”. Moral da história: passamos a madrugada acrescentando estrofes e melodia a um sonoro refrão que sentenciava: “a cabeça de um homem/ numa bandeja/ toda mulher deseja”!
Por ora, é isso que nos resta: enquanto não a revemos de frente, contentamo-nos em profanar-lhe o verso.
Por ora, é isso que nos resta: enquanto não a revemos de frente, contentamo-nos em profanar-lhe o verso.
Belo texto, Léo. Belo, porque verdadeiro, além de bem escrito. Essa é a Lúcia Santos. Mulher, menina, poeta que encanta a todos.
ResponderExcluirAbraços,
Grato, Hilda! Lúcia merece muito mais!
ResponderExcluirAbraços do
Léo.
Léo, que texto lindo! Lindo e emocionante. Estive no último sarau de Lúcia aqui em Sampa (tua casa). Tuas palavras nos fazem voltar no tempo. A voz de Lúcia está em minha mente declamando "Rivotril" e "Façanha". Um momento prazeroso e inesquecível. Adoro os poemas de Lúcia! Um abraço.
ResponderExcluirSoninha:
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado. Aquela noite foi realmente incrível!
Um abraço do
Léo.
Lucia? Lucia, minha xará, modéstia à parte, é o máximo! A indignação e o desaforo feitos poema... Lucia Helena Corrêa
ResponderExcluirValeu, querida! Boa dupla de poetas porretas vocês duas, hem?
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