quinta-feira, 4 de novembro de 2021

No Embalo da Toada: 3) A vida é amuleto

Passo por aqui de novo pra dar prosseguimento à dobradinha Toada/O X do Poema. Desta vez, trago pra cá texto que escrevi sobre dois discaços. Vamos a ele. E a eles:


A vida é amuleto*

A primeira vez que fui ao Rio não fiquei encantado apenas com a beleza da cidade, mas também com os nomes de bairros e ruas. Tudo o que lia me lembrava alguma canção famosa, até os itinerários de ônibus. O que demonstrava que o carioca parecia ter um amor-próprio lá nas nuvens. E eu ficava pensando: por que em São Paulo o mesmo não ocorre? Claro, há honrosas exceções, mas que só confirmam a regra. A título de exemplo, Chico Buarque tem um CD que se chama Carioca; Ivan Lins, outro que se chama Acariocando… Não vejo nenhum grande artista de São Paulo que homenageasse sua cidade no título de um trabalho.

Mas, e por falar em exceções, um dos mais paulistanos compositores que conheço se chama Celso Viáfora, que, de quebra, é também um dos melhores letristas da atualidade — além de ser também um talentoso melodista. Celso é um exemplo do que dizia Fernando Pessoa, pois é universal falando de sua aldeia. Contudo, Celso não é apenas um compositor bairrista; também costuma escrever pra além de sua aldeia. Não à toa tem canções lindas com o baiano Vicente Barreto e com o supracitado Ivan Lins, carioca da gema. Chego a pensar que se Celso fosse carioca talvez sua obra lograsse ter o reconhecimento que merece.

Não choraminguemos. Ele segue firme e forte e, como um bom uísque — melhor seria dizer como uma boa cachaça —, melhor a cada ano. Já um dos melhores melodistas que conheço se chama Rafael Alterio, também conhecido como o “Garga”. Tenho que admitir que suas canções já me levaram às lágrimas não poucas vezes. E me dá orgulho dizer que estou entre seus parceiros menores. O Garga, apesar de não ser um cantor de voz potente, possui um timbre charmoso e é um intérprete que sente o que canta. Sem falar que como pessoa é um dos caras mais engraçados que conheço.

E por que juntei alhos com bugalhos? Ou melhor, Alterios com Viáforas? Porque recentemente ambos lançaram trabalhos novos pra alegria dos ouvidos sensíveis e carentes de boa música. Celso nos presenteia com seu belo A vida é, que traz um leque de canções que mesclam variados ritmos e temas — muitos dos quais, naturalmente, mostram São Paulo através da lente de quem sabe do que está falando; mas há muitos outros temas, como a minha preferida, Uma canção bonita, em que diz que “quando tudo dá errado, ouço uma canção bonita e choro / e ignoro o mau agouro e me revigoro”. Já na canção-título, A vida éCelso, humilde, diz que “Eu nunca fui um assombro / mas conheci quem é”, e fecha, agradecido aos deuses da arte, dizendo que “se não for o bastante / eu vi jogar Pelé”. Golaço!

Garga não fica atrás: seu belíssimo Amuleto é brasileiro até a medula, e trata de fé, crenças, crendices, simpatias e outros quitutes que fazem do brasileiro um povo sem par neste planetinha periférico. A canção-título é uma pérola de humor em que um sujeito diz que não tem superstição, mas, na dúvida, sua casa é cheia de quinquilharias que lhe servem de… amuleto. Minha preferida é a linda e doída Hoje e nunca mais, em que diz que “Tanto ter estios e temporais / Tanto ter vazios e vendavais / Tive filho e compreendi meu pai / Me querer bem junto ao cais. / Tanto ver que fruto cresce e cai / Tanto ver que gente chega e sai / Vi também que vida vem e vai / Hoje é hoje e nunca mais”.

Detalhe: todas as canções do disco de Rafael Alterio são parcerias com… Celso Viáfora.

Como diria o saudoso Wilson das Neves, “ô sorte”!


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*Publicado originalmente aqui.

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A vida é...

... Amuleto.

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