quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Crônicas Desclassificadas: 119) As impertinências da Morte

Algumas mortes que ocorreram nos últimos dias me fizeram pensar a respeito do assunto. Não me pergunto nem qual o significado da vida, pois cada um dá (ou não) significado à sua, mas, sim, qual o da morte. Em seu romance (que me impactou bastante) As intermitências da morteJosé Saramago deu-lhe mesmo vida e a transformou em personagem. E é assim que eu a imagino. Como uma profissional fria e desapiedada, meio que como um matador que trabalhasse por conta própria e escolhesse suas vítimas a esmo. Quem manda em suas escolhas? Quais seus motivos? Por que este e não aquele? Por que João e não José? São coisas nas quais tenho andado pensando, mas, confesso, tais pensamentos até agora não me levaram a nenhum lugar.

Tudo começou com aquele raio no Guarujá, perversa ferramenta que a famigerada usou pra roubar de uma família a presença da mãe. Num momento, lá está ela, alegre, desfrutando de suas férias; um segundo depois, não passa de um corpo frio, inerte, desprovido de vida. O que será que passa pela cabeça de uma pessoa numa hora dessas? Será que dá tempo de pensar em algo? Será que sofre, que sente dor? Hem, Morte? Diga aí! Compartilhe com os vivos suas memórias! Escreva sua autobiografia e revele se aquela mulher no Guarujá sentiu dor. Ou se você não sentiu nem um pingo de remorso por praticar um assassinato tão idiota. Pô, Morte! Um raio? E agora, como vão ficar aqueles filhos? Você não parou pra pensar em como eles podem crescer traumatizados, sentindo-se culpados pela morte da mãe? Morte essa pela qual só você, Morte, foi a culpada...

Às vezes acho que deviam te internar num hospício, com direito a camisa de força e doses cavalares de sossega-leão, pois você não passa de uma sem-noção, uma leviana. É um perigo pra sociedade manter uma tresloucada que nem você solta por aí. Vejam o caso recente no Rio, na Linha Amarela, em que a caçamba de um caminhão derrubou uma passarela de 120 toneladas. Quantas mortes inúteis! Cada um indo cuidar da vida, daí chega a Morte ("ou coisa parecida..."), sem pedir licença, sem aviso prévio, e sai fazendo das suas. Este, sim, aquele, não, aquele outro, sim... Qual o critério? Roleta-russa? Minha-mãe-mandou-eu-escolher-esse-daqui? E as histórias? O que mais me choca são as histórias. Um rapaz, que sempre ia trabalhar de ônibus, resolveu ir de moto naquele dia. Justo no dia em que a Morte passava por ali. Confesso, Pálida Dama, que não vejo graça em seu humor negro!

Isso sem falar em quando você se enfeza e resolve, por conta própria, amenizar o problema do excesso de contingente de viventes em nosso planetinha. Ora, faça-me o favor, dona Morte! Imagine você como deve ser cruel morrer num tsunami. Quando você vê diante de si aquela língua de água gigante vindo em sua direção e sabe que tem nove entre dez chances de sair morto dela, você morre antes de morrer, só de pavor. Já pensou? Ser levado por quilômetros que nem garrafa pet no rio Tietê, daí não aguentar mais e morrer afogado... ou bater com a cabeça, sei lá, num carro boiando... Como dizem por aí, ninguém merece! Nem aqueles que merecem! Por que você não experimenta trocar de lugar com alguma dessas vítimas pra saber o que é doce, hem?

Terremotos, furacões, atentados, rebeliões, guerras, quedas de aviões... E o ônibus que caiu da ponte em Muriaé (MG) dia desses e causou a morte de um bebê de três meses? Isso é coisa que se faça? Pô, tenha dó! Imagine! Uma vida inteira pela frente jogada fora, atirada no grande rio do Nada. Você nunca parou pra pensar que aquela criança podia crescer, estudar e de repente encontrar a cura da aids, por exemplo? Cada pessoa que morre antes do tempo é uma oportunidade que perdemos. E eu fico pensando que fulano podia no futuro vir a ser um novo Tom Jobim, um novo Pelé, um novo Einstein, uma nova Madre Tereza de Calcutá... Você não pensa nisso, não? Tá, tudo bem, vai que crescesse e virasse só mais um número no censo... E daí? Quem te dá o direito de tirar uma vida? Você é Deus, por acaso?

Sabe que ando até pensando em ir lá no facebook e convocar uma manifestação contra você? Com cartazes bem grandes escritos em letras garrafais "ABAIXO A MORTE". Nessa manifestação os black blocs iam sair por aí ajudando velhinhas a atravessar a rua, recolhendo bitucas de cigarro no chão, abraçando-se uns aos outros e cantando a plenos pulmões "viver e não ter a vergonha de ser feliz/ cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz...". É. Nessa manifestação a polícia ia sair atirando balas de chocolate; e ia haver até um minuto de silêncio em homenagem a mais um dia de vida, ainda mais porque a gente sabe que, nesses dias, a vida anda pela hora da morte. A manifestação ia ser um sucesso, e terminaria com um boneco da Morte sendo queimado (tipo Judas, manja?), pra aprender a não mexer com quem tá quieto.

Eu sei, eu sei que se você parar de trabalhar isso aqui vai virar um caos. Já até comentei isso no Samba Funerário (em parceria com Ayrton Mugnaini Jr.), no qual dizia que "Ninguém quer morrer/ Nem eu nem você/ Ninguém quer morrer/ Nem vovó, nem neném/ Ninguém quer morrer/ Mas se ninguém morrer/ Aqui não vai mais ter/ Lugar pra ninguém". Eu sei, eu sei. Não é também assim, que ninguém vai mais morrer e pronto, acabou. Não, tudo bem, ninguém deve ser impedido de exercer seu ofício. Eu só peço um pouco de critério. Bom senso, sabe? Já ouviu falar? Mata, mas mata com critério, escolhendo as cabeças a dedo. Por exemplo, tem tanto político sobressalente por aí ganhando uma fortuna por dentro e por fora... e imorrível! Mata esses! Se você pesquisar um pouquinho vai perceber que tem muita gente merecendo morrer. Matando uns tantos desse bando, a vida dos vivos ia ficar bem melhor.

Mas não! Você é burra que nem uma porta! E o pior é quando fica previsível. Aí é que eu não te aguento! Poxa, matar uma pessoa doente é covardia! Ainda mais quando essa pessoa é amiga da gente. Tá, tá, eu sabia que Lucia Helena Corrêa ia morrer mais cedo ou mais tarde, mas precisava ser mais cedo? A mulher tava com tantos projetos... Essa, sim, era uma mulher de fibra! Uma batalhadora! O lúpus lá xeretando as entranhas dela, e ela nem aí, cantando, gravando CD, exercendo seu ofício de jornalista... E ainda arranjava tempo pra defender um monte de causas (algumas, perdidas)! Caramba, Morte! Logo ela? Eu sei que você não sabe perder nesse nefasto jogo de xadrez que inventou, mas custava vez em quando dar uma de distraída e errar uma jogada de propósito? Custava? Nem que fosse como um gesto de humildade, pra mostrar que nada é eterno, nem a morte. Agora estamos nós do lado de cá chorando por essa incalculável perda, e os do lado de lá comemorando. Quer saber, Morte? No dia em que eu te encontrar, você vai ouvir umas verdades! Mas, por enquanto, vê se me erra!

Em memória de LHC.

***

E, pra mostrar que eu não tô sozinho nessas minhas divagações, trago a presença ilustre de ninguém menos que Gilberto Gil, que vai contar (cantar) um pouco de seus receios em relação aos atos dessa indesejada visita, que atrasa, mas não falta:


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2 comentários:

  1. Respostas
    1. É, Igor, meu caro... é a morte!

      Sabe que me lembrei de uma bela canção de Toquinho e Vinicius? Chama-se "Sem Medo", e é toda linda, mas tem uma estrofe que é – desculpe o trocadilho – mortal. Saca só:

      "Chega um belo dia de qualquer semana
      Alguém bate na porta, é um telegrama
      Ela está chamando, é um telegrama
      Ela está chamando
      Pra uns ela vem cedo, pra outros vem tarde
      É que cedo ou tarde, ela vem de repente
      Chega pro covarde, chega pro valente
      Só tem que ninguém gosta de ir na frente
      Mas atravesse a morte sem medo."

      Bora marcar uma breja qualquer dia desses, enquanto há vida!

      Abração,
      Léo.

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