Este não é somente o relato de um disco, antes diria que se trata de sua saga. Quando deixei de ser um bichinho engatinhante, ao mesmo tempo que tropeçava nas pernas e nas palavras – estas, novidades em minha boca –, fui aprendendo a reconhecer os sons musicais de tanto ouvir um disco de Luiz Gonzaga, que provavelmente foi o primeiro que meu pai comprou pra estrear nossa radiolinha nova. Tratava-se de Sanfona do Povo, que, só muitas décadas depois, descobri que era não um disco de carreira do Rei do Baião, mas uma coletânea de seus maiores sucessos lançados na década anterior. Inclusive, em 1964 já havia saído um disco de Gonzagão com o mesmo nome deste, título também de canção homônima. Mas preciso voltar um pouco no tempo pra explicar a importância desse disco.
Minha mãe, que nunca dançou, conta, com mais orgulho que pesar, que seu namoro com meu pai começou, num dos muitos bailes que costumavam acontecer em nossa cidade (Senador Pompeu-CE), justamente porque ela não dançava. Explico: meu pai era exímio dançarino e, como tal, bastante requisitado pelas moças casadoiras de plantão. Minha mãe, apesar de não dançar, encontrava nesses bailes oportunidade rara de sair de casa (claro que sempre acompanhada de um ou mais irmãos), mas sempre respondia negativamente quando meu pai a convidava pra uma dança. O rejeitado, de tanto ouvir "não", acabou se apaixonando por ela, por achar que se fazia de difícil. Assim, desistiu das outras e investiu pesado na pretendida. Contudo, depois que transpôs a barreira e a desposou, viu-a proibi-lo de frequentar os tais bailes... Anos depois, já em São Paulo, o disco de Luiz Gonzaga tornou-se pra ele a lembrança viva daqueles áureos tempos.
Assim, Luiz Gonzaga acabou sendo um de meus primeiros ídolos. Muito antes de eu aprender a ler e escrever, já sabia de cor todas as letras das canções desse LP. Pra mim ele funcionava mesmo como um disco infantil, até porque, naquela época, sem ter televisão em casa, e devido aos escassos recursos ($) de meu pai, precisávamos nos adaptar. Havia, inclusive, algo de gostosamente contraditório nas audições de discos em casa. Por um lado, havia uma tia adolescente que morava conosco que só ouvia Roberto Carlos e Jovem Guarda (já escrevi sobre isso aqui), por outro, meu pai, com Gonzagão, Genival Lacerda, Teixeirinha & cia. Digo contraditório porque eu ouvia tudo, e pra mim todos esses artistas possuíam um mesmo peso em minha preferência (tempos depois o Rei atingiria o primeiro posto, mas essa história já contei).
Dentro dessa contradição, destaco uma de minhas canções preferidas do disco, o Xote dos Cabeludos. Vim a saber muito depois que por essa época Gonzagão começava a entrar num período difícil, seus shows não lotavam mais, suas novas canções não faziam o mesmo sucesso das antigas, enfim, esse período em que despontaram o iê-iê-iê, os festivais de MPB e a tropicália não foi exatamente generoso com a música tradicional e regional que o Rei do Baião fazia. Por isso, até como um desabafo, ele compôs o Xote dos Cabeludos, no qual satirizava vestuário e trejeitos do outro rei (Roberto Carlos) e de seus súditos. Não sei se um pouco pelo tom preconceituoso ou se por culpa dos fatores acima mencionados, esse xote não é muito conhecido, mas pra mim era um de meus favoritos, apesar de eu adorar também RC. A letra do xote:
"Cabra do cabelo grande/ Cinturinha de pilão/ Calça justa bem cintada/ Costeleta bem fechada/ Salto alto, fivelão/ Cabra que usa pulseira/ No pescoço medalhão/ Cabra com esse jeitinho/ No sertão de meu padrinho/ Cabra assim não tem vez não./ No sertão de cabra macho/ Que brigou com Lampião/ Brigou com Antôin Silvino/ Que enfrenta batalhão/ Amansa burro bravo/ Pega cobra com a mão/ Trabalha sol a sol/ De noite vai pro sermão/ Rezar pra Padre Ciço/ Falar com Frei Damião/ No sertão de gente assim/ No sertão de gente assim/ Cabeludo tem vez não." É ou não é uma pérola? Pela letra dá pra visualizar toda aquela turma da Jovem Guarda. Ah, detalhe: quando ele cantava "cabeludo tem vez não", eu, em minha ingenuidade infantil, cantava "cabeludo três vez não". (rs)
Nesse disco há alguns clássicos do "Lua", como Forró no Escuro ("O candeeiro se apagou/ O sanfoneiro cochilou/ A sanfona não parou/ E o forró continuou"), Noites Brasileiras ("Ai que saudades que eu sinto/ Das noites de São João/ Das noites tão brasileiras na fogueira/ Sob o luar do sertão"), Olha pro Céu ("Olha pro céu, meu amor/ vê como ele está lindo" – regravada muito mais tarde, e lindamente, por Ceumar) e, principalmente, A Morte do Vaqueiro, outra de minhas preferidas ("Numa tarde bem tristonha/ Gado muge sem parar/ Lamentando seu vaqueiro/ Que não vem mais aboiar/ Não vem mais aboiar/ Tão dolente a cantar/ Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo, lengo, tengo"). Sem falar em canções que, apesar de não serem dele, tornaram-se, pela interpretação inconfundível que lhes imprimia, como a que abre o disco, Óia Eu Aqui de Novo, de Antônio Barros.
Mas eis que o pior aconteceu: minha família, muito católica, sempre foi de frequentar a igreja, e, de tanto frequentar, passou a participar mais ativamente dos eventos locais. Foi assim que meus pais se viram trabalhando em algumas das muitas barracas da festa junina anual organizada pela paróquia do bairro. Numa dessas ocasiões, como houvesse uma pessoa responsável pela música, meu pai se animou a levar pra tocar o bendito disco de Gonzaga. Antes não o tivesse feito. No final da noite, após a arrumação geral, ele percebeu que o disco havia sumido(!). Os membros da comunidade fizeram uma pequena investigação, mas a Sanfona do Povo nunca mais apareceu ("quem roubou minha sanfona eu bem sei, foi alguém sem coração")... Meu pai ficou triste como se tivesse perdido um membro da família, portanto, eu, já adolescente, no intuito de lhe devolver a alegria, dei uma busca geral pelas lojas de discos paulistanas... em vão.
Os anos se passaram, a dor amainou, comprei outros discos de Gonzagão pra meu pai, mas nunca mais encontrei o Sanfona..., que era seu xodó. Até que, mais um tempo depois, as idas e vindas da vida me levaram a Campina Grande (PB), cidade tradicionalmente conhecida por seus muitos eventos ligados ao forró. Nessa cidade há uma feira nordestina muito grande e bonita. Passeando por ela, deparei-me com uma barraca cujo dono possuía uma quantidade incrível de LPs de Gonzaga. Com os olhos esbugalhados e as mãos um tanto trêmulas, procurei avidamente pelo tal disco... e não é que o achei? O preço era salgado, mas não me importei. Comprei-o. Meu pai não é desses que deixam as emoções transparecerem no rosto, mas quando, já de volta a São Paulo, surpreendi-o com o presente, notei que a custo segurou as lágrimas. O sorriso, ao contrário, era o de uma criança. Naquele dia, senti-me pai de meu pai.
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Luiz Gonzaga – Sanfona do Povo (1974 – RCA)
Lado A
1. Óia Eu Aqui de Novo
(Antônio Barros)
(Antônio Barros)
2. Hora do Adeus
(Onildo Almeida – Luiz Queiroga)
(Onildo Almeida – Luiz Queiroga)
3. Xote dos Cabeludos
(Luiz Gonzaga –José Clementino)
(Luiz Gonzaga –José Clementino)
4. O Jumento é Nosso Irmão
(Luiz Gonzaga – José Clementino)
(Luiz Gonzaga – José Clementino)
5. Sanfoneiro Zé Tatu
(Onildo Almeida)
(Onildo Almeida)
6. São João do Carneirinho
(Luiz Gonzaga – Guio de Morais)
(Luiz Gonzaga – Guio de Morais)
7. Quase Maluco
(Luiz Gonzaga – Victor Simon)
(Luiz Gonzaga – Victor Simon)
Lado B
1. Sanfona do Povo
(Luiz Guimarães – Luiz Gonzaga)
1. Sanfona do Povo
(Luiz Guimarães – Luiz Gonzaga)
2. Noites Brasileiras
(Luiz Gonzaga – Zé Dantas)
(Luiz Gonzaga – Zé Dantas)
3. A Morte do Vaqueiro
(Nelson Barbalho – Luiz Gonzaga)
(Nelson Barbalho – Luiz Gonzaga)
4. A Festa do Milho
(Rosil Cavalcanti)
(Rosil Cavalcanti)
5. Olha Pro Céu
(José Fernandes – Luiz Gonzaga)
(José Fernandes – Luiz Gonzaga)
6. De Juazeiro a Crato
(Luiz Gonzaga – Julinho)
(Luiz Gonzaga – Julinho)
7. Forró no Escuro
(Luiz Gonzaga)
(Luiz Gonzaga)
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(temporariamente não estou conseguindo colar a playlist aqui, então deixo o link:
https://open.spotify.com/playlist/0AgP7DpcZ7y48PrmGF1Fyj?si=b21cc036018543e0
Não encontrei a versão original de Quase Maluco no Spotify, então segue na sequência "roubada" do Youtube:
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