quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Crônicas Desclassificadas: 169) O aniversário do filho pródigo

Era a primeira vez em 15 anos que ele ia passar o aniversário na casa dos pais. Aproveitou a viagem da esposa e lá foi, ele também numa viagem, só que de volta ao passado. Quando desceu do metrô, podia pegar um ônibus, mas, como o tempo estava agradável (fazia mesmo um friozinho bom, raro naquela estação), resolveu caminhar. A cada metro quadrado tropeçava, não em astros, mas em lembranças. Era como se visse um filme antigo, mas do fim pro começo, ou rebobinasse uma velha fita. O bairro evoluíra, era verdade – aliás, como a maioria dos bairros da cidade –, contudo ainda conseguia ver por trás do progresso as tintas desbotadas de um tempo em que, se não era tão bom quanto o de hoje, ao menos tinha a vantagem de, por meio da nostalgia, lhe fazer parecer que fora melhor.

Em compensação, na casa dos pais tudo permanecia como sempre tinha sido. Quando adentrou pelo portão, lembrou-se de uma canção antiga de Roberto Carlos que dizia que "tudo estava igual como era antes, quase nada se modificou, acho que só eu mesmo mudei". Abraçou e beijou os pais, viu a alegria irradiada naqueles rostos agora já um tanto envelhecidos e sentiu uma pontada de culpa misturada com constrangimento, pois, como filho ausente, achava que eles eram eternos e iriam permanecer ali pra sempre a sua espera. Agora, percebia que isso não era verdade. Os passos de sua mãe estavam mais lentos, o rosto denotava cansaço, mas a garra de mulher "trabalhadeira" era a mesma. Já seu pai, pra variar, havia esquecido de comprar algo, como sempre, e a velha discussão comezinha entre ambos o fez rir.

O almoço simples, mas caprichado, como se lembrava de que fora sempre, pareceu-lhe um banquete dos deuses. E, também como sempre, seu pai, madrugador, já havia feito uma boquinha. Nada que, contudo, impedisse o velho de se sentar à mesa com o filho e comer com ele. De sobremesa, bananas e um doce cearense de cujo nome ele se esquecera. Naquele momento, tudo estava em harmonia; o pai contava velhos "causos", a mãe falava de dores, remédios, médicos, e vez por outra comentava sobre alguns falecimentos de pessoas que o filho devia conhecer, mas de quem ele não tinha a mais vaga ideia. Aquilo o entristeceu. Ficou triste menos pelos mortos e mais por não saber quem eram. E pensou em quando chegasse o fatal dia em que fosse a vez de um dos dois ir nessa viagem sem retorno.

Havia duas novidades na casa: a primeira eram os gatos. Muitos! Quando ele era jovem, nunca faltaram naquela casa cachorros. Mas gatos? A gata dera cria, disse a mãe, e, como ela não havia conseguido ainda quem os quisesse, lá estavam eles. O filho, alérgico e avesso a felinos, pediu à mãe que os deixasse do lado de fora. Ela acedeu. Filhos têm prioridade sobre gatos. A segunda novidade era um sobrinho. Seu pai pegava o neto na escola e este costumava passar a tarde com os avós até que, à noite, seu irmão viesse pegar o filho. O menino, traquinas e glutão, comia frango com a mão repetidamente com uma volúpia de quem comesse bombons. Seus pais pareciam felizes com o único neto. Ele, que, apesar de ser o mais velho, nunca lhes dera um, sentiu uma ternura quase invejosa pelo sobrinho.

Tanto que, após o almoço, contrariando seus princípios resolveu tirar um cochilo no sofá, ao lado do garoto. Podia subir pra seu velho quarto, mas instalou-se ali, aninhado desconfortavelmente entre as almofadas. Antes de dormir como uma pedra, pôde escutar as vozes dos desenhos animados que saíam da tevê, numa altura ensurdecedora, que, no entanto, embalaram-no. De olhos fechados, achou um tanto forçada a dublagem; será que em seu tempo de criança já era assim? Teve um repousante sono sem sonhos. Quando acordou, com o corpo um tanto avariado pelo mau jeito, soube que o sobrinho havia dormido também, "mas eu acordei primeiro do que o tio", falou o garoto, como se tivesse ganho uma competição.

Resolveu subir ao velho quarto. Sua mãe perguntou se ele ia dormir mais; não, não, só estava com saudades, queria dar uma olhadela, quem sabe ler um pouco... O quarto, sim, estava bastante mudado. As duas camas (a dele e a do irmão) ainda estavam lá, mas tudo o mais estava diferente. Havia um ar-condicionado, dois quadros – um em especial lhe chamou a atenção: o de um castelo em meio a uma paisagem que envolvia montanhas, floresta e neve... E ele se sentiu triste subitamente, como se pertencesse mais ao quadro que ao quarto. Foi até a janela dos fundos e reparou nas casas da favela da rua de baixo que podiam ser vistas dali. Também elas haviam progredido; antes de madeira, hoje todas eram de alvenaria. Só ele, que antes era de alvenaria, sentia-se agora de madeira.

Foi aí que ouviu a vizinha cantarolar Roberto Carlos (novamente ele), como sempre fazia anos antes, religiosamente, quando pendurava as roupas no varal. Quantos anos haviam passado? E aquela mulher ainda cantarolava as mesmas canções! De repente, ouviu vindo de baixo um assovio. Era seu pai, que, após ouvir a vizinha, por sua vez resolvera entoar a mesma canção. Foi até a cama e, sem motivo aparente, deixou que fartas lágrimas lhe rolassem pelo rosto. Entre soluços, ouviu a conversa dos pais, que vez por outra paravam pra repreender o neto. E nesse momento sentiu-se mais velho que eles. Eles tinham um propósito que os mantinha vivos, ativos, ocupados. E ele, o que tinha? Os restos mortais de uma antiga esperança.

À noite, chegou o irmão. Jantaram juntos, conversaram um pouco sobre o trabalho daquele, depois comeram um bolo que sua própria mãe fizera (ele lhe havia pedido que não convidasse outras pessoas, pois se sentiria constrangido com os parabéns – ao contrário de quando tinha a idade de seu sobrinho), então, de repente, resolveu voltar pra casa. Quando ligara, no dia anterior, havia combinado de ficar pra dormir, mas agora algo o expulsava dali. Ainda amava os pais – talvez mais que antes –, mas algum sentimento opressor apertava seu peito. Precisava de solidão. Estava feliz ali, mas era uma felicidade falsa, desbotada, como a de uma foto antiga. Aquilo não combinava mais com ele. Despediu-se carinhosamente de todos e aceitou a carona do irmão até o metrô (teria preferido voltar a pé, mas uma garoa com vento o fizera mudar de opinião). Quando chegasse em casa, a esposa não estaria; poderia então, passivamente, sucumbir a seus fantasmas.


***

4 comentários:

  1. Eu também tenho uma relação frágil com meu passado.
    Conflituosa com o presente e um tantinho (mentira) ansiosa com o futuro.
    Talvez todo mundo, mas entre os criativos, acredito, fica mais pontudo e introspectivo.
    Ainda bem que inventaram lápis, pincel, violão, máquina fotográfica, e tal e tal.

    Adorei o texto, mas isso vc já sabia.
    bjbj

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    1. Criar é importante pra mapear (maquear?) nosso passado e tentar melhorar nosso futuro, né não, Curcinha?

      Beijos,
      Léo.

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    2. Tinha três comentários seus com "é isso". Removi dois, ok? Mas fiquei com aquela impressão "chaveana" de "isso, isso, isso". rs

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